segunda-feira, 2 de outubro de 2017

LEMBRANÇAS AMARGAS
 
romance
 
Por Joaquim A. Rocha








XVII

Entre dois fogos beijei a sereia

 
     Estas discussões entre mim e a minha mãe deixam-me sempre desolado. Se pudessem acabar… Agora, aproveitando o facto de ele estar de férias, vou contar ao meu irmão cenas de terror, acontecimentos que me apavoraram, que me deixaram marcas para toda a vida. Ouçam:

- Tinha eu dez anos, tu acabaras de partir para a capital do país. Sentado à mesa, pés descalços, esmagando com os pés pedras gigantescas de sal, encontrava-se o tendeiro: velho, bruxo e feiticeiro, capaz de quebrar nozes com uma só mão! Gritava como um possesso, pedindo aos maus espíritos, em altos berros, que se afastassem dele e daquela casa: «ide-vos, aqui não sois bem-vindos, ide para as profundezas do inferno, de onde nunca devíeis ter saído, ide para o mar coalhado, profundo, deixai esta casa e esta gente.» Eu chorava baixinho, tremia de frio e de medo. A mamã, disforme, espumava pela boca e de repente desatava aos gritos. Da sua garganta libertava-se uma voz rouca, áspera, que dizia: «não quero sair daqui, não quero.» Em seguida rebolava-se no chão da sala e as janelas abriam-se de par em par, agitadas por um vento estranho e violento. As meias portas batiam uma contra a outra com um estrondo medonho. Eu chorava, tinha vontade de sair para a rua, mas não podia, mão poderosa e cruel retinha-me ali, obrigava-me a assistir àquela dantesca cena. As cortinas da janela rasgaram-se em pedacinhos e voavam como pequenas aves. Depois o silêncio. O bruxo ficou com a cabeça deitada sobre a retangular mesa de pinho, cabelo desgrenhado, exausto, e a mamã estendida desajeitadamente no soalho da sala, desfigurada, com as pernas e parte da barriga à mostra. Desde que aquele homem-diabo tinha entrado em nossa casa estas cenas de espiritismo e feitiçarias repetiam-se com pontual regularidade. Falava constantemente no livro de São Cipriano, que eu nunca vi nem li, antes de ser santo teve um pacto com o demónio, segundo dizem, dizia que o tal livro continha segredos de tesouros escondidos, contou-nos que tinha ido uma vez ao monte de Santiago, aí estava, segundo ele dizia, enterrado um grande tesouro, joias, moedas em ouro, que levariam muitos meses a contar! Foi com ele uma mulher de corpo aberto, uma espírita, e um homem com uma enxada e uma picareta para desenterrar o fabuloso tesouro (talvez, quem sabe, daquele tempo em que sarracenos andaram pela Península Ibérica; aquando das investidas cristãs enterravam as joias junto às árvores para mais tarde, quando tudo acalmasse, as virem recuperar; por vezes alguns deles morriam e as preciosidades ficavam ali a aguardar que alguém as descobrisse).

     Esperaram que o sino da torre batesse as doze badaladas da meia-noite e começaram a escavar. De repente o céu ficou de várias cores, predominando a cor do enxofre a arder, os raios desenhavam figuras geométricas esquisitas, as faíscas eram tantas que pareciam capazes de incendiar todas as florestas do mundo. A mulher gritava como uma doida, parecia ter no seu peito todos os espíritos malignos da galáxia, espumava pela boca, os olhos saíam-lhe das órbitras, inchava como um sapo quando lhe dão a fumar um cigarro. O homem da enxada desatou a fugir pelo monte, todo borrado, o pânico apoderou-se dele, a mulher não aguenta a emoção e tomba desfalecida, com aspeto de morta. O velho feiticeiro, sozinho no meio daquele cenário sobrenatural, naquele palco de terror, capaz de arrasar os nervos aos mais valentes, abandona o local, o tesouro, fugindo a sete pés! No dia seguinte iria buscar o que ali deixara.

     Levantou-se manhã cedo, dirigiu-se ao sítio onde o presumível tesouro estaria escondido e ficou boquiaberto, pois estava tudo como quando lá chegara no dia anterior. Nem enxada, nem picareta, nem o buraco escavado, nem mulher, zero, absolutamente zero! Dava a impressão de que ali nada tinha acontecido. Pensou que se enganara, percorreu aqueles espaços circundantes, nadinha! Parecia um sonho. Resolveu ir ter com o homem da enxada: «ó tio Hipólito, então aquilo de ontem à noite assustou-o a valer.» O camponês olhou para o bruxo com temor, espelhado naqueles olhos pequenos e manhosos, e disse-lhe: «não me fale nisso, senhor Acúrsio, olhe que cheguei a casa em cinco minutos, e ainda era caminho para bem meia hora; voei como as aves!» «Vossemecê borrou-se todo, homem!» «Pudera! Aquilo assustava o mais destemido, não me convide para outra, vá o senhor Acúrsio sozinho, já está habituado a essas coisas da bruxaria

     O feiticeiro dirigiu-se depois a casa da medium, veio esta abrir-lhe a porta, olhando-o com azedume: «ó senhor Acúrsio, ia-ma arranjando bonita, por um triz não fui desta para melhor, aquilo é dose excessiva para o meu corpo, fique sabendo que fui transportada pelos ares até à minha porta. Fui, fui! Aquilo não está ao nosso alcance, deixe lá o tesouro, está muitíssimo bem guardado, o São Cipriano fez um bom trabalho, ninguém o tira dali, a não ser que ele assim o queira.» «Vossemecês são uns cobardes, aquilo que viram é só fogo-de-vistas, é só para assustar, se não fugissem, hoje estávamos todos ricos, nem saberíamos o que fazer a tanta moeda de ouro.» «Está bem, está! O mais certo era estarmos todos mortos, a caminho do cemitério, com espíritos daqueles jaez não se brinca

     Contava também histórias de ciganos, vendiam burros velhos por novos, davam aos porcos uma determinada erva, depois de ingerida acabavam por morrer, e então eles depois iam desenterrá-los e comiam-nos; os guardas prendiam-nos, mas eles terminavam sempre por se livrar das acusações; certa vez, não tendo nenhuma espécie de alimento, comeram a sua avó velha: «ai, mi abuela, mi abuela», gritava desesperada a pequenita Carmen, que adorava a sua avozinha. Histórias! Certa altura, um cigano novo roubou qualquer coisa a um lavrador e este acusou-o; a GNR prendeu-o, mas como era menor tiveram de chamar o pai dele. Então este virou-se para o ciganito e pediu-lhe: «fala a verdade Zé-Nega, diz tudo que sabes a estes senhores.» O rapaz, de imediato, replica: «meu pai, ainda aquela porta vá e venha se eu não estou dizendo a verdade.» Os guardas presentes, desconfiados, de pé atrás com a astúcia daqueles melros, ainda contrapuseram: «mas você está a pedir-lhe para ele negar!» «Nada disso! É mesmo o nome do catraio
 
     A mamã chafurdava na bebida, vinho e bagaço; dizia-se possuída de espíritos de pessoas que tinham morrido. A noite era para mim um calvário, aquela luz elétrica de 110 volts, cor amarelada, mal alumiava a casa (depois do feiticeiro sair deixou de se pagar e foi cortada pela empresa que a fornecia), as sombras dos móveis pareciam bailar a dança macabra dos mortos! Saía da escola primária a meio da tarde, ia jogar a bola com os colegas, à tardinha voltava para casa com o coração apertadinho, a assobiar, tentando desesperadamente distrair o espírito. A ceia podia decorrer sob o signo do terror, ou cenas de álcool, nunca decorria sob o signo da concórdia. Certo dia, levanto-me, como habitualmente, manhã cedo, cantavam os galos na capoeira, e vou caçar com as ratoeiras de madeira alguns pardais.

- Eu é que as deixei ficar quando fui para Lisboa.

- É verdade, já o esquecera. Tinha sido dia de feira na véspera e no chão ficavam sempre restos: grãos-de-milho, grãos de centeio, etc. Armei as ratoeiras, e ao fim de uma hora já apanhara onze pardais. Pedi à minha mãe que os cozinhasse para a ceia, onze já davam uma boa arrozada, ela quando queria cozinhava divinalmente, ia ser um verdadeiro petisco. Porém, eu não contava com a gulodice do velho bruxo; quando regressei das minhas brincadeiras (nesse dia demorei mais do que o costume, o jogo tinha-se prolongado, teríamos de encontrar um vencedor, estava mesmo renhido) uma incrível surpresa me esperava: a besta-fera tinha comido quase todos os pardais, nem os ossos se aproveitavam! Fiquei, como calculas, irritadíssimo, não quis cear nessa noite, tanto trabalho, tanto entusiasmo, para encher a pança àquele labrego, àquele barrigudo guloso. Ainda bem que a mamã se zangou com ele, ficámos mais mirrados de bens, mas mais livres, mais independentes, sem bruxedos, pensava eu; no entanto, ela herdou essa perigosa arte, continuando a queimar ervas nos cruzamentos, a esconjurar os espíritos malignos com sal e estranhas rezas, a berrar e a espumar pela boca como cão rafeiro, a levar-me àqueles terríveis e enfadonhos velórios. Afogava-se em vinho e em bagaço, embirrava com toda a gente, espiava, através das cortinas já rotas e sujas, a casa dos vizinhos, sobretudo a da que botava as cartas, a fim de descobrir segredos de alcova que depois revelava com pormenores delirantes. As suas amizades eram as pessoas rudes dos campos, as raparigas namoradeiras que procuravam nela a alcoviteira, a recadeira barata e inócua, pois tudo o que ela revelasse já ninguém acreditava, não tinham crédito as suas palavras, começou a arranjar moças novas para o ricaço da terra, o Atílio, em troca recebia umas sujas e magras moedas de níquel.

- E pensava eu que tinhas ficado na melhor, caramba, sofreste para raio! Eu, apesar de ter trabalhado que nem um mouro, não assisti, felizmente, a essas diabólicas cenas; mas também te digo uma coisa: comigo eles não faziam farinha, acabava-lhes depressa com essas histórias de espíritos e bruxarias, que fosse fazer feitiçarias para a terra dele, caramba, ia ele, ia tudo, pela porta fora, ali em casa é que eu não consentia que o bandido fizesse essas coisas.

- Isso dizes tu agora, queria ver-te lá, no meio daquela gente desfigurada, eu nem reconhecia a mamã, parecia outra, e então com aquela voz que não era a dela, era voz de homem mau, roufenha, assustava qualquer um, ainda hoje tremo só de me lembrar, na altura já nem sabia se era melhor estar em casa ou fora dela, a luz elétrica ia-se abaixo de vez em quando, era fornecida pelos espanhóis, fraca e incerta, quando se apagavam as lâmpadas só via fantasmas à minha volta, se ao menos tu estivesses em casa, os dois sempre seria melhor.
 
- É preciso tê-los no sítio, tu sempre foste um medricas, se tivesses ido, como eu fui, alta noite, por esses montes fora, com treze anos de idade apenas, os lobos a uivar, eu carregado com os alimentos para a semana, urinavas-te todo, pedias a todos os santinhos que te socorressem; eu ia afoito, a cantarolar, como se nada fosse comigo. Na maior parte das vezes levava por companhia o “Cabras”, mas semanas houve que não quis, ou não pôde ir, não compareceu, disse-me mais tarde que esteve doente, o que o tipo não queria era dar o corpo ao manifesto, que aquilo era a doer. E então, quando caía neve, nem queiras saber, os pés enterravam-se, mais de um metro de altura, os trabalhos tinham de ser interrompidos, não se podiam plantar os pinheiros com a neve a cair, ficávamos completamente isolados e impotentes.             

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