sexta-feira, 29 de setembro de 2017

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha





 

     «Destinos» é o título de um maravilhoso livro escrito pela senhora professora Lydia San Payo. Penso que o seu objetivo principal ao escrevê-lo foi homenagear e perpetuar a memória de seu pai, o artista-fotógrafo Manuel Joaquim Alves, mais conhecido por Manuel Alves de San Payo, natural do lugar de Baratas, freguesia de São Paio, nascido a 15/4/1890 e falecido a 8/5/1974. Como esta obra não chegou a ser lançada nos circuitos comerciais, só alguns privilegiados (entre os quais me incluo) a possuem. Confesso-vos que já li muitos livros: uns agradáveis, outros assim-assim; este, pela maneira poética de escrever, de narrar, pela ternura que as suas páginas emanam, pela sua quase religiosidade, foi sem dúvida um dos livros mais interessantes que passaram pelas minhas mãos. Para mim foi uma surpresa, e uma revelação, este encontro com a vida e a obra de um melgacense que em quaisquer circunstâncias sempre soube honrar o seu nome e o nome da sua e nossa terra. É possível que alguns preconceitos subsistam relativamente à sua pessoa; contudo, a arte deverá estar acima de mesquinhas e efémeras paisagens ideológicas. É sob o signo da Arte e do Sublime que eu escrevo estas linhas sobre San Payo.

     Com dezanove anos de idade, juntamente com um vizinho, embarca no navio alemão ”Bahia”, rumo ao Brasil. «Não foram fáceis os primeiros tempos e o duro sobreviver no Rio de Janeiro», escreve sua filha. Mas também a vida na aldeia rural não era com certeza fácil. Os agricultores dependiam sobretudo dos produtos da terra e em maus anos agrícolas a miséria rondava-lhes a casa. Manuel Joaquim ainda frequentou o seminário antes de partir para a sua aventura americana, mas a sua vocação era outra – o espírito da arte tinha-se apossado do seu ser.

     O Brasil era o destino de muitos minhotos, o país das grandes oportunidades. Porém, o nosso conterrâneo tinha a alma de artista e os artistas não buscam o vil metal; em lugar de trabalhar como um mouro e aferrolhar como um avaro judeu, inscreve-se na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro e frequenta as aulas de desenho e de pintura. O seu emprego no «atelier» do patrício Bastos Dias, como retocador de chapas fotográficas, rasga-lhe horizontes no mundo do retrato artístico «que imagina poder ser feito como uma pintura». O seu nome artístico, San Payo, começa a ser conhecido. Como não tem sala de trabalho sua, e talvez cansado de andar a fotografar de casa em casa, certo dia dirige-se a Petrópolis. É aí que conhece a futura esposa, Erna, descendente de colonos alemães, fundadores dessa cidade brasileira. Manuel Joaquim tinha nessa altura 29 anos de idade. «Em 1918, chegado a Petrópolis, Manuel Alves de San Payo toma conta do atelier da fotografia situado na Avenida 15 de Novembro e instala-se na cidade…»

     Roído de saudades, a 27/10/1920, regressa a Portugal. Nesse ano ele e Erna passam o natal em casa de seus pais, em Melgaço «… um natal bem diferente dos quentes natais petropolitanos…» Em Janeiro de 1921 encontram-se em Lisboa e nasce-lhes a primeira filha, Ruth. San Payo trabalha sem descanso. Finalmente em Novembro de 1921 toma de trespasse, na Praça dos Restauradores, um ateliê, de sociedade com Manuel Carreira. Passados poucos anos já a fama lhe tinha batido à porta. Em 1924 expõe os seus trabalhos artísticos na Casa Castanheira Freire, à Praça Luís de Camões; no ano seguinte volta a expor, mas agora na Casa Aguiar, na Rua do Carmo. Foi um estrondoso êxito. O seu nome de artista-fotógrafo torna-se uma referência para a gente chique da capital. Em 1925, com o seu amigo Lourenço Fernandes, viaja pela Europa, visita os grandes museus «procura inteirar-se das novas tendências no domínio das artes.» Na cidade de Madrid expõe no Hotel Ritz «e teve boa aceitação por parte do público que ali acorreu». A Europa civilizada mostrou-lhe que a sua arte tinha valor e que a sua técnica estava na vanguarda do que de melhor então se fazia por esse mundo fora. Basta uma só fotografia para o provar: Erna com sua filha Ruth; verdadeira obra-prima!

     A 20/2/1930 é inaugurado na Praça Marquês de Pombal novo ateliê de San Payo, estúdio que eu próprio visitei nos finais dos anos sessenta. O bom gosto e o saber casavam-se naquelas decorações, naquele requinte de simplicidade e harmonia. Havia poesia em todas as coisas. Escritores, políticos, artistas, todos quiseram estar presentes nesse dia especial. O que muita gente não sabe é que o retrato oficial de Salazar, aquele que se encontrava nas salas de aula, e de Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Tomás, foram tirados por San Payo! Se o artista tivesse antes, na I República, adquirido a fama que depois teve, teria feito certamente o retrato de Manuel de Arriaga, de Teófilo Braga, de Bernardino Machado, Sidónio Pais, e de tantas outras figuras públicas. Para nós, melgacenses, o que conta é que San Payo soube como ninguém elevar a sua arte, enobrecê-la, aproximá-la estatutariamente das outras artes. Em 24 de Agosto de 1933 foi feito Cavaleiro da Ordem de Santiago de Espada. Não se envaideceu. Ironicamente comentou: «Tenho porém de ir levar lá cento e dez escudos, para poder usar daqui por diante penduricalhos ao peito».

     Em Julho de 1934 falecia, com trinta e sete anos de idade, a sua esposa. Deixava seis filhos: Ruth, Lydia, Nuno, Walter, Irene e Vasco, este último com apenas quinze meses de idade! Para San Payo foi um rude golpe. No ano seguinte, 1935, viaja até África, e aproveita essa magnífica ocasião para realizar o filme «O Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias». No Brasil já tinha realizado o filme policial «A Quadrilha do Esqueleto», «A Cabana do Pai Tomás» (tragédia), e «O Senhor de Posição», além de vários documentários. Esse filme foi projetado pela primeira vez no cinema São Luís, em Lisboa, no dia 29/6/1936. Seguiram-se várias exposições. A última ocorreu no Palácio Foz, em Março de 1950, e intitulou-a «Trinta Anos de Fotografia».

     Manuel Joaquim nunca esqueceu a sua terra. Logo que lhe foi possível mandou construir na freguesia de São Paio, em granito da região, uma casa de férias para si e seus descendentes, com adega e poço de água, e rodeada de pomar e vinha. A fama não lhe subiu à cabeça, como a tantos outros! Em 1968 quis ainda visitar essas Américas longínquas. Tinha família no Canadá e na Argentina e imensas saudades do Brasil – havia quarenta e dois anos de separação! Essas impressões de viagem, publicou-as no jornal Novidades, mais propriamente no seu suplemento Letras e Artes, com o título «Memórias de um Fotógrafo».

     Depois de muito viver, Manuel Alves de San Payo morre a 8 de Maio de 1974. É com mágoa que a autora de «Destinos» nos diz: «A notícia da sua morte, nesse tempo tão conturbado, não teve o realce que merecia…» Dorme o sono eterno no cemitério de São Paio, junto de sua querida esposa Erna Belger. O seu estúdio da Rotunda do Marquês já não existe; o edifício foi demolido e nesse espaço vê-se agora o Banco do Brasil. A arte cede perante o capital. «O espólio fotográfico do artista San Payo foi considerado património cultural nacional…» e encontra-se no Arquivo Nacional de Fotografia do IPPC.

     San Payo foi também um teorizador. Os seus escritos «A fotografia e o futurismo», «Como se deve encarar a crítica de arte», etc., provam isso mesmo. San Payo possuía mais um predicado que me é especialmente caro: escrevia poesia! Em «Destinos» encontra-se um magnífico poema seu dedicado à sua filha Lydia. Pouco conheço da sua obra, mas brevemente irei ao A.N.F. deliciar-me com ela.

     À sua filha Lydia San Payo agradecemos a oferta e o excelente livro que escreveu. Revela uma grande sensibilidade e cultura.

 

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1022, de 1/2/1995.

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