quinta-feira, 19 de maio de 2016

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha


Um crime em Melgaço no século XIX

     Fevereiro de 1828. Miguel, irmão de Pedro IV, assume a regência do reino e jura a Carta Constitucional. Em Março do mesmo ano dissolve o parlamento; em 3 de Maio convoca as Cortes. Estas restauram o regime tradicionalista, isto é, proclamam Miguel rei absoluto! Os liberais não gostaram; organizam a oposição. É a guerra civil! Acaba em 1834, depois da derrota dos miguelistas. O “rei” parte para Viena de Áustria e nunca mais pôs os pés em território nacional.
     Estávamos em plena guerra fratricida; por todo o país Miguel perseguia incansavelmente os liberais; estes defendiam-se como sabiam e podiam. Pedro, imperador do Brasil, vendo que as coisas não se resolviam, abdica em 1831, a favor de seu filho, e dirige-se a França e Inglaterra em busca de auxílio, a fim de reconquistar o trono português para sua filha Maria da Glória (mais tarde Maria II).


     Melgaço vivia dias agitados. Tomás das Quingostas aterrorizava toda a gente. Ninguém sentia segura a vida nem a fazenda. Com a sua temível quadrilha, matava e roubava com o maior desplante. A lei era ele. Por onde passava deixava rastos de sangue e amargura. Uma das suas vítimas mortais foi o jovem João Vicente. Rapaz pouco dado a bens materiais e a folguedos, tencionava seguir, logo que as condições o permitissem, a carreira clerical. Só a sua mãe conhecia o segredo. A 17 de Março de 1829 esta faz-lhe saber que tudo está pronto para ele poder concretizar seu sonho. Enquanto não ingressa no Seminário vai tentando não se envolver em conflitos ideológicos ou bélicos. Ajuda na administração da casa e de vez em quando visita as pesqueiras que a família possui no rio Minho, fiscalizando também a faina dos pescadores. Nesse ano as lampreias, os sáveis e os salmões saíam em abundância. Era, sem dúvida, um bom ano de pescaria. João Vicente tinha a estima de toda a gente de Melgaço. A sua índole calma e generosa granjeava-lhe amizades e respeito. Parecia que a sua vida decorreria sempre assim: ajudando quem dele precisasse, materialmente ou com a sua palavra amiga e sábia. No entanto, o seu destino já estava traçado. A morte estava próxima. Naquela noite fatídica de 21 de Março de 1829, noite chuvosa, trilha o caminho que o leva ao rio. Parecia até um fantasma com a croça sobre o seu corpo miúdo. Não se via um palmo à frente do nariz, mas como ele conhecia bem o caminho não haveria qualquer problema. A croça não lhe serviria de muito com a chuva intensa, mas pelo menos ajudava a aquecer-lhe o corpo. Chega perto das pesqueiras, ouve o barulho amigo das águas do rio e, com seus olhos habituados à escuridão, perscruta-as. As redes lá estão. Tudo em ordem. Na tarde do mesmo dia um grupo de homens, à cabeça Tomás das Quingostas, combinava um assalto a uma aldeia galega. Tinham lá gente da mesma laia que com eles colaboravam e desse modo esperavam roubar o suficiente para uns longos dias. Depois de tudo combinado até ao pormenor, foram lentamente descendo o monte em direção ao rio. Aguardariam ali o sinal e a seguir atravessariam na batela que estava escondida sob umas espessas ramagens. Esperaram, esperaram, e nada de sinal. Pensaram então que algo se tinha passado com os seus amigos galegos. «Outro dia seria.» Tomás disse aos seus homens que se dispersassem; com ele ficariam Caetano Paulo e o Pitães. Virando-se para eles, diz-lhes: - Não regressaremos de mãos vazias! Vamos às pesqueiras ver se têm peixe, arranjaremos depois alguém que nos faça o jantar ou a ceia. Conhecedores das margens do Minho, avançam afoitamente, sem cautelas especiais. João apercebe-se do movimento, e das vozes, e pergunta: - «Quem vem lá?!» O Tomás, astuto como uma raposa, responde-lhe: - «Gente de bem e de paz.» O rapaz, confiante e contente por ter companhia, aproxima-se deles sem qualquer receio. O monstro, logo que vislumbra a silhueta esguia, aponta-lhe o bacamarte e dispara sem hesitar. Um segundo depois os restantes facínoras descarregam as suas armas num corpo cambaleante. Pum! Pum!
     O som dos disparos ecoou ao longo do rio durante momentos; a seguir, um silêncio pesado ficou pairando no ar. A besta aproximou-se do cadáver e com as suas botas de militar virou-o, confirmando assim a sua morte. Cruel, como abutre que era, disse aos outros: - «Agora temos o caminho livre, vamos ao trabalho.» A justiça, depois de avisada, foi ao local do crime. Junto ao corpo perfurado pelas balas assassinas encontrava-se a croça toda ensanguentada. // (ver «Melgaço e as Lutas Civis», I volume, páginas 87 a 92, de Augusto César Esteves).
     Já neste século, um poeta anónimo, escrevia estes versos acerca do Tomás das Quingostas:

Homem de muitas matanças,
Na guerra civil andou;
Herói das extravagâncias,
Vidas sem conta ceifou!

Mais dum século decorreu
Sobre a morte do malvado;
Que, por ironia, morreu
Sob as balas dum soldado!



Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1005, de 15/4/1994.

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