sábado, 21 de novembro de 2015

LINA - FILHA DE PÃ

romance

Por Joaquim A. Rocha

desenho de Luís Filipe Gonzaga Pinto Rodrigues

2.º Capítulo

    
     O tempo foi passando. A Lina, endiabrada, já conhecia toda a gente dos arredores. Entrava nas casas das pessoas, com um à-vontade incrível. Fazia imensos recados, e em troca recebia umas côdeas de pão e às vezes uns ovos para que a sua mãe lhe fizesse umas gemadas, a fim de ela crescer e tornar-se mulher. Um dia, próximo do natal, estando reunida com um grupo de raparigas amigas, começaram a trocar prendas entre si. Uma delas, que pronunciava muito mal as palavras, por ser gaga, diz:

- Esta boneca é prà.., é prà…, Li… Li… Lina.

      As outras riram e gozaram:

- É Pràlina! É Pràlina!

    E a alcunha nasceu e pegou. Passado algum tempo toda a turma do lugar a tratava por Pràlina. As raparigas e rapazes da sua idade brincavam com ela: «Pràlina malina, menina ladina.» Afinava e atirava pedras aos rapazes, mas eles fugiam dela como o diabo da cruz. Aqueles olhos verdes, penetrantes, infiltravam-se na alma do mais afoito. Todos a temiam, até o sacerdote! Agora andava sempre com a cruz de Cristo ao peito, não fosse o diabo tecê-las. A Lina, sabendo que a temiam, exagerava. Costumava dizer às crianças da sua idade:

- Sabem, eu tenho poderes ocultos; quando olho muito tempo para uma janela, posso partir-lhe os vidros! Se olho fixamente para uma ave ela cai do ramo!

     Elas acreditavam, e por isso pediam-lhe com veemência:

- Lina: não faças essas coisas, depois as pessoas adultas batem-te.

     Ela ria-se com gosto, e respondia:

- Estejam descansadas: eu não quero fazer mal a ninguém; mas se me tratarem como a um cão raivoso, ou como a um sapo nojento, eu mostro-lhes do que sou capaz. – E continuou com as suas pantominices.

     Nesse dia a conversa ficou por ali, pois a sua mãe chamou-a e ela teve de ir para casa. O pai já tinha regressado de fora, mas vinha com uma doença grave, a maldita tuberculose. O médico aconselhou-o a ir fazer tratamento para o Caramulo, mas ele adiava sempre, na esperança de melhorar.               

- Ó Sileno, vai para o Caramulo, aqui acabas por morrer. E é pena, porque ainda és um homem novo.
- E o dinheiro para a viagem, Senhor Doutor?
- Pede à Santa Casa da Misericórdia, não é nenhuma fortuna. Eu também contribuo com qualquer coisa. Se for necessário faz-se uma subscrição pública.

     E graças à iniciativa do clínico, um certo dia o Sileno meteu-se na carreira no lugar do Couto, junto às Termas, até à Vila de Monção, e dali partiu no comboio para aquela estância de repouso.
     Os políticos locais bem tinham lutado pelo caminho-de-ferro, «uma obra de grande necessidade», segundo afirmavam, mas nunca conseguiram trazê-lo até à sua terra; a estação do comboio do concelho vizinho fora inaugurada em 1915, com foguetes e fanfarra. Estes ficaram à espera, sentados. «Não há verba», diziam os governantes. Mas para gastar fortunas na I Grande Guerra, sobretudo a partir de 1917, e para outras coisas menos importantes e supérfluas, apareceu!

**
     
     Na primeira segunda-feira de Setembro de 1926 a Lina foi para a escola. Ficava quase a um quilómetro da sua casa. O seu lugar de nascimento, chamado Pomarães, ficava num alto, já no início da montanha, e os invernos começavam mais cedo do que nas freguesias ribeirinhas, perto do rio Minho. Foi na companhia de outras raparigas e rapazes e, como era a descer, depressa chegaram à escola. Era no antigo convento e havia instalações para ambos os sexos. As salas eram assaz pequenas, as carteiras minúsculas, o que valia era que as crianças também eram pequeninas, algumas mesmo raquíticas, e assim lá iam cabendo dentro daquele espaço exíguo.

     A professora Olívia chamou as alunas pelo seu nome próprio e algumas delas não respondiam, porque, embora presentes, sempre tinham sido tratadas por alcunhas, e desconheciam o seu verdadeiro nome.

- Lina Cancela!

    A cachopa levantou-se e disse:

- Sou eu, senhora professora. Mas todos me chamam Pràlina.

     A mestra pensou um bocado e observou:

- Aqui na sala de aulas és Lina; lá fora que te tratem como quiserem. E o mesmo serve para as tuas companheiras.
   
     As primeiras aulas foram interessantes. O livro da primeira classe trazia algumas imagens engraçadas e as moças divertiam-se à grande com elas. Passado algum tempo, as garotas já estavam fartas do livro, da loisa, do quadro negro, do giz – irritante para caraças – e até da professora, sempre aos gritos, sempre zangada, sempre pronta a malhar com a cana-da-índia ou com a régua. Todos os dias aquilo. Era uma autêntica prisão, um sacrifício quase inútil, segundo a mentalidade da época.

- E para quê? – perguntava constantemente o avô materno. – Para quê? Eu não fui à escola e estou aqui: casei, tive filhos, agora tenho netos. Aprendi quase tudo sobre lavoura, trabalhei, e trabalho, como um moiro, e tinha que vergar a espinha na mesma se tivesse tirado a instrução primária. Exemplos não faltam aqui no lugar: o Tibúrcio tem a quarta classe, e para que lhe serve? Mal sabe ler e escrever, esqueceu tudo aquilo que aprendera nas aulas. Até tem dificuldade em assinar o nome dele. Pede-se-lhe para escrever uma carta e diz logo que não tem tempo! Os filhos do Zé Cortiça, esses sim: foram os dois para padre e agora estão bem. Até dizem que um deles, o mais novo, o senhor cónego, vai chegar a bispo!
- Da maneira que falas, até parece que tens inveja deles! Não me digas que querias ser sacerdote?! – desabafa a Clotilde, despeitada.       
- Lá estás tu com os teus ciúmes, mulher! Reconheço que eles vivem bem, são ilustres, considerados e respeitados por toda a gente, mas eu não gostava de ser cura. Não tinha paciência para estudar aqueles anos todos no Seminário. E ir para a cidade, para longe dos meus pais, dos meus irmãos, da minha terra e dos meus amigos, não! Não trocava isto por nada deste mundo. Nasci para viver aqui: com a lavoura, com a vinha, com o gado, com a minha família. Não! Padre, nunca!
- Havia de dar um rico clérigo! – diz, a rir, uma das filhas do casal.
- Era como os outros! Não conhecem aquele ditado: «façam o que eu digo, não façam o que eu faço.»     

     Todos os presentes se riram com vontade, apesar da piadinha já ser velha e relha! Conheciam muito bem o que se dizia de alguns párocos do concelho, andavam com fulana e sicrana, mas os crentes perdoavam-lhes, porque sabiam que eram homens, e os homens pecam.


- Quem não tiver pecados que atire a primeira pedra – desafiou Clotilde, lembrando-se da sua juventude. // (continua)...

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