segunda-feira, 16 de novembro de 2015

ENTRE MORTOS E FERIDOS

(Dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

desenho de Luís Filipe Gonzaga Pinto Rodrigues

5.º Capítulo

ACADEMIA MILITAR


     O número de carros começava a aumentar na cidade, a poluição crescia proporcionalmente, Lisboa alterava, impavidamente, a sua fisionomia. Alguns estabelecimentos comerciais encerravam mais cedo por causa dos assaltos, a noite começava a ser perigosa. Os dois amigos encontram-se de novo e encetam longa conversa:

- O trabalho na Academia Militar não matava ninguém, chegava a aborrecer-me de fazer tão pouco, e o comer não era mau de todo.
- Seria sinal de que já se estava a habituar ao rancho?
- Talvez não; a comida era de facto melhor, embora não fosse boa. Os cozinheiros não eram militares.
- Sendo assim!...
- Na Academia trabalhava, como empregado civil, o marido da minha irmã, de seu nome Rudolfo. Era rijo como um touro bravo. Nunca vira ninguém com tanta força. Levantava um saco de cem quilos de batata com a mesma facilidade com que eu levanto dez quilos! Viera da província de Trás-os-Montes para Lisboa, com as mãos cheias de calos, provocados pela enxada, cumprir o serviço militar, e por cá foi ficando depois daquele concluído. Quando podia chamava-me e perguntava se eu queria moquir alguma coisa, visto que amiúde os seus chefes lhe pediam para ajudar na cozinha. Raríssimas vezes aceitei – nunca fui comilão.
- Podia ter aproveitado.
- Pois podia! Dizia-me ele, constantemente: «Dou aos outros, que não me são nada, por que não hei-de dar ao meu cunhado?!» Mas eu, não sei por quê, não queria, não aceitava.
- Orgulho?
- Quem sabe… talvez. Há coisas que não têm explicação, essa é uma delas. Eu julgo que era mais vergonha, embora uma coisa e outra pudessem existir em mim. Sabes: é a personalidade de cada um de nós. Somos todos diferentes, apesar de termos muitíssimas características em comum. Por outro lado, herdamos traços dos nossos antepassados – pais, avós…
- Por falar nisso, nunca me falou do seu pai!
- É verdade, nunca te falei dele… mas crê-me, nada há para dizer a esse respeito. Partiu, teria eu três meses de vida. Emigrou para as Américas, segundo me contou a minha mãe. Deve ter arranjado por lá outra mulher, rodeou-se de fedelhos, ou então morreu, mas não de saudades certamente.  
- Lamento.
- Nem sequer o conheci. A minha mãe também pouco me falava dele. Ficou apenas uma fotografia, um pedaço de papel. O tempo tudo faz esquecer. Não se pode ter saudades daquilo que não se viveu, do que não se amou.

         Henrique compreendeu. Em Cândido existia uma mágoa profunda, algo de inexplicável, uma ferida nunca fechada, talvez um segredo. Não insistiria.

- Desviou-se do assunto! – lembrou Henrique.
- Pois desviei. Falava da Academia Militar. Sabes que a condução em Lisboa jamais se tornou fácil para mim. Não me sentia com competência bastante para guiar naquelas ruas movimentadas e com aqueles polícias sinaleiros sempre a fazer sinais, pareciam autênticos robôs! Questão de medo, de carácter, sei eu lá! Os jipes, tudo bem, mas as outras viaturas…
- Para se conduzir bem é necessário concentração. A sua mente andava agitada. E agora já não tinha o instrutor ao lado.
- Pois não. Era eu o máximo responsável pela condução. Certo dia, na subida da Rua Joaquim António de Aguiar, a caminho de Sintra, com vários cadetes dentro, um a meu lado e os restantes nos bancos de trás, o motor deixou de funcionar. Acelera, não acelera, estava a ver que não conseguia sair dali! Os carros, na minha retaguarda, começavam a buzinar ininterruptamente, pessoas ansiosas, olhando para os relógios de pulso, enervando-me ainda mais, se possível. «Com os diabos!» - resmunguei entre dentes. «Sou um zero à esquerda a conduzir, não sei como me vou livrar desta
     O meu Cireneu, quem me socorreu naquela aflição, foi um dos cadetes. Pede-me, com esmerada educação e ao mesmo tempo com autoridade: «Você está muito nervoso, passe para o meu lado, eu guio
     Obedeci prontamente – queria sair dali, ultrapassar aquela ridícula situação.
- Sentia-se humilhado! – comentou, com semblante triste, Henrique.
- Eu sentia-me mais frustrado. Não gostava que traçassem o meu destino. A tropa não era nenhuma etapa da minha vida – estava ali contrariado. Eu até poderia um dia aprender a conduzir, comprar um carro, mas assim não – eu não nascera para escravo, para obedecer...
- E para mandar?! – atira Henrique, como um repto.
- Nem para isso, meu amigo. A minha filosofia de vida resume-se a pouco: todos somos iguais, homens e mulheres, e devemos viver em liberdade e responsabilidade; cada um de nós dá à sociedade o melhor de si e recebe aquilo de que necessita. Para sermos felizes não precisamos de muito. Todos devíamos ter direito à instrução, ao conhecimento, e depois cada um escolhe, mediante as suas potencialidades, a sua profissão.
- Há profissões melhores do que outras…
- Aparentemente é assim. Um mineiro pode queixar-se de levar uma vida dura, pouco saudável; mas se ele gostar dessa actividade, só quer uma coisa – boas condições de trabalho, além de óptima remuneração, que lhe permita viver bem, sem sobressaltos. Os pescadores, por exemplo, arriscam a vida no mar, mas vai dizer-lhes para abandonarem essa faina! Não querem, gostam daquilo que fazem, sentem-se livres como as aves do céu e também úteis à sociedade. Contudo, quanto a mim, devem ser bem pagos e dar-lhes a oportunidade de se instruírem. Um barco pode estar bem equipado, ter uma pequena biblioteca, música, etc. E por aí fora. Todos os mesteres são dignos desde que as pessoas que os desempenham o sejam.
- Até certo ponto estou de acordo, mas isso é utópico.
- A utopia só o é enquanto não se torna realidade. Não era utópico desejar a República? Pois em 5 de Outubro de 1910 uns quantos republicanos conseguiram-no! Não penses que foi fácil, muitos obstáculos surgiram, mas por fim a vitória surgiu radiosa.
- Não durou muito! – contrapõe Henrique.
- É verdade, não durou muito, apenas dezasseis anos. A igreja católica, apoiada pelos monárquicos, e também alguns pseudo republicanos, tudo fizeram para a derrubar. Paiva Couceiro, refugiado em Espanha, invadiu o país pelo norte, mas saiu-lhe o tiro pela culatra. No entanto, a minha história não é essa.
- Fiquei com curiosidade: no regresso levou a viatura para a Academia?
- Sim, com alguma facilidade. Acalmei, os cadetes fizeram por esquecer o triste episódio, e tudo correu bem. Nunca ouviste dizer que «para baixo todos os santos ajudam?!»
- Ainda bem, senão seria traumático para si.
- Ainda procurei mudar de especialidade. Argumentei que era baixo, mal chegava aos pedais, enfim, que não queria continuar a conduzir.
- E eles?
- Esperei pela resposta. Nunca me foi dada!

     Com altos e baixos, asneiras e proezas, alguns reveses, os dias morriam um a um; dias que ia abatendo no meu canhenho. O tempo, no seu rolar lento e imperturbável, começava a ganhar volume. Dez, onze meses – contava desde Janeiro – é muita hora para um soldado que anda na tropa por obrigação, como se estivesse no presídio. Comecei a criar ilusões e a fazer perguntas, interrogações, a mim próprio: «Ter-se-iam esquecido de mim, porventura?! já não irei para a guerra colonial?!»
- Porém…
- Pura ilusão! Sonho infantil! Finalmente chegara o momento da terrível notícia, aquela que nos destroça, nos fulmina. É como subir ao cadafalso, ao patíbulo, para nos separarem a cabeça do resto do corpo! O amanuense avisou-me de que o 1.º sargento me esperava na Secretaria. Era um homem aparentemente simpático, mas cruel. Nem sequer rodeou a questão. Não queria perder tempo: «Arruma a trouxa, foste mobilizado para a província da Guiné-Bissau; tiveste pouca sorte, seria muito melhor Angola, ou mesmo Moçambique. Paciência, alguém teria de ir para lá
- Teve azar… - lamentou sinceramente Henrique.
- Já não faltava muito para completar um ano de serviço militar. Tive, de facto, pouca sorte. Não me podia esquecer de que representava um simples número, e os números jogam-se, não se esquecem!                    
- Como reagiu?
- Perdi completamente o apetite; esperneei de raiva. A Guiné-Bissau apavorava qualquer um: o clima, a guerra, as doenças, feriam, matavam, dizimavam, diziam os que de lá vinham! Um camarada de caserna, fervoroso católico, aconselhou-me a fazer uma promessa a Nossa Senhora de Fátima e aos dois pastorinhos que morreram logo a seguir a 1917, primos da Lúcia. «Vais ver que te protegem», garantiu-me.
     Eu, desiludido com tudo, descrente, digo-lhe: «Não adianta, morre quem tem de morrer!» Ele não ficou nada convencido com a minha precipitada resposta: «Não é bem assim – olha que conheço muitos que se salvaram oferecendo promessas aos santos da sua devoção.» E mencionou uma caterva de santinhos, com os seus milagres.
     Eu, que não estava interessado na conversa, rematei: «Sopraram, para as suas bandas, ventos benfazejos; do meu lado apanhei com os tufões
- Ele estava a tentar somente ajudá-lo, não devia ter sido tão severo – reprova Henrique.
- Hoje estou arrependido, mas na ocasião, danado como estava, não reflecti o suficiente e fui antipático com o camarada. Há momentos na nossa vida em que a ajuda, ou pseudo ajuda, dos outros nos parece ofensiva. Eu fui mobilizado e logo para a pior frente de guerra.
- Se você não fosse iria outro…
- Isso é verdade, eles teriam que preencher as vagas; mas logo eu, que não gostava minimamente da tropa, muito menos da guerra. Quem a provocou que a combatesse; que fosse o Salazar e os seus ministros, os secretários de Estado, e podiam levar com eles as suas amantes…, a famelga completa.      
- Não adianta protestar, manda quem pode; sempre foi assim e assim continuará a ser.
- Talvez não: a inteligência e a cultura do cidadão comum levá-lo-á a rejeitar a violência, é uma questão de tempo. O cérebro evolui.  

- Optimista! – ironiza Henrique, convencido de que as coisas não mudam do pé para a mão. – As mudanças levam anos, ou séculos, a concretizarem-se – remata ele.  // Continua...

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