quarta-feira, 25 de novembro de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Por Joaquim A. Rocha



V

O saber é a fonte de todos os padecimentos


      Estou na idade das perguntas, a curiosidade não me larga, quero saber o porquê das coisas, porque aconteceram assim, poderiam ter sucedido de outro modo, enfim, o saber não ocupa lugar, diz o povo, e eu desejo ter esse conhecimento, o prazer mórbido do saber. A minha mãe pode ser uma verdadeira fonte de informações, e hoje encontra-se bem-disposta, palradora. Eis-me a perguntar:

- Mamã, por que é que os seus pais a deixaram ir para São Justo, para junto da sua madrinha? Na sua idade, oito anos, sempre seria melhor ter estado com eles, o carinho é muitas vezes mais importante do que a comida.
- Eu ressenti-me sempre dessa ausência, era como se não tivesse pais; ao teu avô era raríssimo ver, a tua avó ia-me visitar, mas poucas vezes, até parece que evitavam ver-me. Sofri muito com isso, em silêncio, e de que eu tinha muitas saudades era dos meus irmãos, quase nunca tinha o prazer de os ver. A minha madrinha gostava muito de mim, só era mais velha do que eu nove anos, o meu padrinho, irmão dela, foi estudar para Braga, só vinha a casa nas férias, com ele não tinha tanta confiança. Os pais dos meus padrinhos eram pessoas de muito respeito, ele passava o dia na Vila, no hospital da Misericórdia, e ela estava sempre em casa, a dar ordens às criadas e a verificar se tudo corria bem; tinham caseiros, colhiam pão e vinho, matavam todos os anos dois grandes porcos, tinham sempre a casa muito cheia, muito farta, mas ela não era mulher de se assoar, dizia sempre: «olhem para o pão como se olha para Deus», na altura não compreendia e quase não comia pão, eu que tanto gostava daquela broa com centeio, mas pensava que não se devia comer, pois também não se come o senhor Deus.
- Eles tratavam-na como criada?
- Sim e não. Eu tinha de trabalhar como as outras, não me mandaram à escola, diziam que não era preciso, pois filha de jornaleiro o que necessitava era de saber tratar da casa, casar e ter filhos, para isso é que tinha nascido. Estudos que os fizessem os da classe alta, esses tinham de governar o país e o povo, para que é que o Estado estaria a gastar dinheiro com os pobres, a abrir escolas em todas as aldeias portuguesas, como fizera o conde Ferreira, se depois iam trabalhar nos campos e nas fábricas, pescar por esses mares fora, servia de muito a escola. Assim eles pensavam e não me deram estudos. A minha madrinha sim, estudara, sabia piano, cantava maravilhosamente, fazia renda, que mãos! Depois arranjou um namorado endinheirado, trabalhava no Brasil, era filho de um fulano da nossa terra que tinha emigrado para lá há muitos anos, era muito rico, dizia-se, embora não fosse fidalgo como ela, mandara fazer ali na aldeia dele uma grande casa, parecia um palácio, andava sempre de cavalo, também tinha um carro, foi o primeiro automóvel que vi na vida, mas as estradas não prestavam, ele preferia o cavalo; bem vestido, fato branco, ele dizia «o meu terno», toda a gente tirava o chapéu quando ele passava. Tempos!
- Quando você foi para Lisboa, em 1926, a sua madrinha embarcou para o Brasil.
- Sim, casou e foi para lá; nunca mais a vi, nem sei se já morreu, oxalá que não, coitada, se tem filhos, parece que sim; o meu padrinho também se casou, era professor, foi viver para Braga ou Porto, não sei. Os pais deles morreram há pouco tempo, de velhos.
- Bem, você não me disse a razão por que saiu de casa, os seus pais não podiam sustentá-la?
- Não foi bem isso: onde comem quatro, comem cinco. O problema não estava na comida, mas sim naquilo que acontecera. Quando eu tinha seis anos de idade morreu o meu irmão, que não era filho do meu pai Gaspar, parece que era filho de um guarda da alfândega, por quem a minha mãe se apaixonara; nessa altura a minha mãe ainda era solteira e rapariga nova. Esse meu irmão, o Roberto, espetou um ferro em brasa nas partes, quando trabalhava na serralharia, e foi morrer ao Porto, no hospital de São João; os médicos tudo fizeram por ele, lancetaram-no e tudo, mas não conseguiram salvá-lo. Eu era muito pequenina, mas lembro-me que naquela casa nunca mais houve sossego, a tua avó ficou louquinha, coitada, não fazia mais nada se não chorar, andava sempre metida na igreja, a pedir a Deus pelo filho, mas ele já tinha partido, o meu pai começou a bater-lhe, ela não fazia o comer, não tratava das roupas, não tinha gosto pela vida, ia todos os dias ao cemitério chorar, chamar por ele, até chegaram a dizer que os largos portões do cemitério, feitos pelo meu avô materno, se abriram para ela entrar e carpir na campa, eu não estava lá, não vi, não sei quem viu, mas dizem que é verdade, que foi o espírito dele que os abriu, estas coisas acontecem. Não te estejas a rir que isto são coisas sérias, com isto não se brinca, até nos pode acontecer qualquer coisa – «para longe satanás».
- Fica-se com a impressão de que a avó gostava mais desse filho do que dos outros, nascidos do casamento do meu avô Gaspar! A você não ligou nenhuma, e tinha apenas seis anos. Além disso tinha a Marília com onze anos e o Vítor com oito, três crianças a necessitar do carinho da mãe, ela devia ter sido mais forte.
- Essas coisas não se explicam, ela gostou muito do antigo namorado «não há amor como o primeiro», lá diz o adágio, e era esse filho que lho recordava; depois de ele morrer nada existia, ficou como que perdida no mar agitado, ela já não queria saber de coisa nenhuma; era como se o mundo tivesse desabado, para ela acabou quando o meu querido irmão morreu; coitado, ele adorava-nos, era o mais velho, nascera em 1896, andava na música e tinha uma serralharia, vê lá com dezoito anos já era patrão, saía ao avô e ao tio, tinha um rapazinho com ele, um aprendiz, era muito bom, os colegas da banda gostavam muito dele, toda a gente dizia bem dele, era querido de todos, mas Deus quis chamá-lo para a sua beira e quando assim é não há nada a fazer, temos de lhe obedecer, ele é que manda, ele sabe o que faz.
- Se tivéssemos um excelente hospital, bons médicos e bons equipamentos, talvez não tivesse falecido então, hoje possivelmente ainda estaria vivo; mas não, o hospital é velho, do século passado, só tem dois médicos de clínica geral, nem um cirurgião, nem um especialista, a gente até pode morrer com uma dor de dentes, nem um dentista há, é o enfermeiro que trata disso, arranca os dentes como um qualquer veterinário, desgraçados daqueles que caem doentes.
- Não penses dessa maneira, meu filho, olha que Deus pode castigar-te. Ele é que sabe, o meu irmão foi chamado à sua divina presença, ele está bem, melhor do que nós, que sofremos, que penamos os pecados que todos os homens até agora cometeram, nós temos de expiar todos esses pecados, os que morrem novos são os escolhidos por Deus para irem para a sua beira, têm vida eterna, não padecem nada.
- Estou de acordo consigo, depois de exalarmos o último suspiro não se sofre mais, mas isso da vida eterna… pode terminar, tudo termina, e a eternidade também pode ter um fim; eu prefiro sofrer, mas vivo, apesar de não ter nada, coisa alguma, gosto de viver, mesmo aqui, na espelunca, mas aqui no planeta Terra. // (continua)...                        

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