domingo, 23 de agosto de 2015

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha


desenho de Manuel Igrejas


TEMPOS DE CRIANÇA


     Ao olhar atentamente para uma fotografia inserta no número 966 de A Voz de Melgaço, de 1 de Julho de 1992, apercebi-me como o tempo passa! Nela está o Zé Miguéis, o cabelo emigrando, cara de vovô! Veio-me então à memória a nossa meninice passada a brincar naquele casarão perto do Cine Pelicano. Como seu pai já tinha falecido, o José vivia com a mãe, D. Sara, com a irmã, Lalá (Laura), com o irmão, Toninho, e com seu avô paterno, um velho marinheiro já reformado. A sua mãe, uma senhora muito bondosa, deixava-nos utilizar uma sala enorme do rés-do-chão, uma espécie de armazém, com traves à vista, pelas quais passávamos uma grossa corda que atávamos a uma tábua, preparada previamente para esse efeito, servindo-nos assim de baloiço. O José distinguia-se das outras crianças pela educação esmerada, pelo asseio das suas roupas. Nós vestíamos de qualquer maneira! Díziamos asneiras com o à-vontade de uma varina; pelejávamos como autênticos arruaceiros; roubávamos fruta por prazer e por necessidade. O José Miguéis, não! As nossas brincadeiras com ele eram só entreportas. Mesmo assim ele não pôde evitar alguns insultos e ameaças das crianças semi-selvagens que nós éramos! Ainda na adolescência, suponho, foi para o Brasil. A sua irmã, que tinha casado com um dos filhos do fotógrafo e taxista, senhor Pires, e já aí se encontrava, mandou-o ir para a sua beira, convencida talvez de que nesse grande país ele encontraria condições de vida melhores do que em Portugal. Segundo me informaram, há uns anos atrás visitou Melgaço. Não reconheceu ninguém, e poucos o reconheceram a ele! Apesar de tudo, prometeu voltar; a nossa terra deixa sempre saudades. Mas voltando à meninice. Naquele tempo éramos quase todos pobres: uns mais do que outros; mas para os mais pobres os filhos dos comerciantes eram muito ricos! Os filhos dos taberneiros eram considerados ricos! Claro que havia em Melgaço ricos a valer. Contavam-se, no entanto, pelos dedos das mãos. Mesmo em pobreza a vida em Melgaço não decorria sob o signo da tristeza ou do pessimismo. Existia uma grande alegria de viver, um convívio saudável, apesar das constantes escaramuças travadas entre mulheres, mas logo esquecidas para mais tarde poderem ser recomeçadas! Os homens, de uma maneira geral, não se metiam nas brigas das esposas, pois consideravam isso indigno de um verdadeiro latino. Essas rixas começavam muitas vezes no tanque público, algures no Rio do Porto, aonde as mulheres iam lavar a roupa. Nesse tempo não havia a máquina de lavar e as mulheres juntavam-se no lavadouro; com as suas frágeis mãos lavavam toda a roupa da casa, e aproveitavam também para lavar a «roupa suja» das vizinhas. Ali nada ficava por dizer: eram “curtas” e “compridas”, “badalhocas”, “alcoviteiras” e “borrachas”! As crianças, que acompanhavam as suas mães, tudo ouviam e decoravam – eram as primeiras lições de um curso ao ar livre. Esses palavrões seriam depois atirados como setas aos rapazes mais velhos e até mesmo aos adultos!
     D. Sara não se servia do lavadouro público. Ia lavar a sua roupa à Quinta da Fonte da Vila, graças à amizade que mantinha com as proprietárias. Desse tempo ainda me lembro também dos rapazes das Carvalhiças – tinham fama de valentes e maus. Faziam equipas de futebol que jogavam com os da vila e raramente perdiam. Durante e após os jogos travavam-se alguns combates a murro e a pontapé; nisso também não se lhes pode negar a vitória. Um deles, o Zé da senhora Emília, bom a jogar e a bater, foi mais tarde pugilista em França – pobres dos adversários! Eu era um lingrinhas, mas apesar disso lá me ia metendo nos barulhos. Levava grandes coças, mas nunca desistia. Pior do que eu só o desgraçado do Zé do Mi. A avó, Tia Amália, quando o chamava era quase sempre para lhe bater! «Ó Zé! Anda cá, rapaz!» O Zé esquecia-se de fazer os recados, pois a paródia para ele estava sempre em primeiro lugar, e depois a velhota não perdoava. Ele, sabendo aquilo que o esperava, vestia um casaco enorme e aproximava-se da avó como o condenado se aproxima do carrasco! Gritava a altos berros, não sei se de dores se de puro fingimento – o Zé era capaz de tudo! Sentíamos um pelo outro uma amizade profunda, mas isso não impedia que brigássemos como dois inimigos declarados – a idade assim o exigia. Um dia fomos uns quantos chamados ao posto da Guarda Nacional Republicana. Tínhamos “roubado” lenha ao senhor António “Lareiro”, lá para os lados do rio.  Éramos quatro ou cinco: eu, os filhos da senhora Emília, e o Mário “Cuco”. O caso estava feio. Um dos guardas ameaçou-nos até com a casa da correção! Não era por causa da lenha, dizia; mas sim porque tinha aparecido uma pequena árvore derrubada. Nós, crianças de oito ou nove anos a derrubar árvores! Para susto, bastou. A fruta também nos trazia alguns dissabores; porém, nada, nem ninguém, conseguia dissuadir-nos de saborearmos, sem sermos convidados para tal, aqueles apetitosos manjares que a mãe-natureza nos oferecia. As uvas, as ameixas, os pêssegos, as maçãs de São João (tão vermelhinhas), as tangerinas, tinham em nós os seus mais ferverosos admiradores, mas comidas lá, pertinho da árvore! Até os filhos, ou netos, dos donos nos acompanhavam! «Fruta roubada é a mais saborosa», diziam. Agora já ninguém faz isso. Os “ladrões” de palmo e meio desapareceram – a fruta cai das árvores, talvez zangada com as crianças que não lhe ligam. Preferem os chocolates, os doces de pastelaria, as pastilhas elásticas! Os costumes são outros. A emigração em massa veio alterar muitas coisas. Nós, terminada a instrução primária, tínhamos de aprender um ofício, deixar a brincadeira, contribuir para o sustento da casa. Seguir estudos não estava nos horizontes de quase ninguém. Quando o ano passado assisti a uma cena na esplanada do Terreiro fiquei horrorizado: três jovens, não teriam mais do que quinze, dezasseis anos de idade, consumiam champanhe, ou espumante; às tantas, já fartos de beber, deitavam a bebida uns aos outros, como costumam fazer os vencedores de provas automobilísticas! Que pagaram com dinheiro deles, pagaram, mas três jovens, talvez estudantes, a gastarem assim o dinheiro em bebidas caras, a estragar, enquanto seus pais fazem economias para lhes proporcionar um curso médio ou superior para que não tenham de trabalhar no “duro” como aconteceu com eles. Nós jogávamos com bolas de trapo; hoje jogam com bolas que custam algumas notas; nós bebíamos água ou vinho da região; eles bebem, sem vontade, bebidas de luxo. Os governantes voltam a falar em tempo de «vacas magras!» Esperemos que essa magreza seja relativa.


Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 969, de 1/9/1992.


Nota: infelizmente o Zé Migueis já nos deixou. 







Sem comentários:

Enviar um comentário