sábado, 15 de agosto de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




As cartas de um castrejo

8.ª - «Senhor Redactor: esqueçamos todas as contrariedades a afrontar, temos vistas largas para todas as misérias que nos rodeiam e a alma disposta aos maiores sacrifícios; plagiando o imortal Camões: “braços às armas feito”, alma dedicada a tudo, tudo o que redunde em benefício da nossa pátria querida. Os jornais que juncam a nossa mesinha de trabalho (…), onde à luz dum candelabro de latão lemos com frenesi, noticiam o rompimento de relações de Portugal com os impérios centrais – Alemanha e Áustria. Nós, que fomos à inspecção e que a sorte nos livrou (…) e os nossos conterrâneos que por uma aversão inata ao serviço militar, estejam julgados refractários, todos os castrejos, enfim, aonde pulse um coração, nem por sombras lhes passa pela mente, agora, que a pátria tem de defender a sua autonomia, eximirem-se aos sacratíssimos deveres de, por ela, arriscarem o sangue e a vida – dando-os, se preciso for. A nossa caçadeira dorme, com gáudio dos javalis, que por aí enxameiam e nos fazem estragos consideráveis; (…) e as balas espreitam a ocasião de entrarem em cena; pois, para o resto, cá está a nossa energia, provada pela tenaz resistência que opomos a todas as inclemências dos homens e dos elementos. Temos a maior fé no Ministério constituído há dias, sob a presidência do Dr. António José de Almeida. (…). // Senhores: é verdadeiramente impossível e insustentável este estado de coisas. Nós, que passamos a vida neste meio inverneiro, só tarde, muito tarde, nos chegam as notícias; mas que de desmandos, e o que nos ferem a alma! No dia 15 passado, quando de Porto-Malhão, propriedade fronteiriça e pertencente aos senhores Domingos Gregório, Manuel Alves Canelas e António Afonso, de Portelinha, Castro Laboreiro, conduziam os seus gados para o povoado - gados que, registados cá tinham a certidão na aduana de São Gregório – a fim de certificados de lá e de cá, poderem transitar nos dois países; como a Guarda Fiscal daqui o não entendesse assim, apreendeu os gados daqueles senhores, que pagaram uma multa considerável. Desconhecemos, por completo, as leis aduaneiras – decerto por sermos uns lorpas, pouco curiosos; mas queríamos – e exigiremos quando a lei não seja um mito e as razões não sejam fictícias, e quando a Guarda Fiscal, em vez de lei busque pretextos frívolos e insofríveis, os seus superiores lhe apontem e imponham o caminho do deverque só é áspero e duro para quem não está habituado a cumpri-lo. Temos um avisinho a fazer ao comandante do posto fiscal desta freguesia: é que, doravante, não busque, pelo terror, subtrair-nos direitos; mas, sim, que consulte os seus superiores hierárquicos, sabedores e conscientes. Calamos, até ver. // No dia 17, as neves que em montanhas álgidas e alvas se aglomeravam por estas redondezas, começaram a derreter-se. Os riachos tornaram-se caudalosos; mas as nossas patrícias recomeçaram o seu tráfico diário. // No posto do registo civil desta freguesia há deslizes… É de justiça, demais a mais, para um castrejo “pur sang”, nado e criado aqui, que atenda com a máxima urbanidade e correcção – qualidades que, aliás, estão ligadas ao seu belo carácter, as reclamações de quem, a não lhe bastarem os incómodos morais, vai esbarrar com ápices inesperados e pouco justos. (…) // Outro caso grave e para que chamamos a esclarecidíssima atenção da digna autoridade administrativa: gado e cereais estão sujeitos a uma guia de trânsito, passada pela autoridade administrativa da freguesia – Regedor… Pois, se cada lugar tem um cabo de polícia, porque este não fará as funções de regedor, muito especialmente entre nós, onde os lugares estão muito distanciados? Esperamos de S. Ex.ª mais este melhoramento, tão justo como imprescindível para esta freguesia. // (…) O acaso fez-nos lembrar a afirmativa que fizemos aqui, de que Castro Laboreiro não exportava milho; e, assim, se não com precisão matemática – porque só sabemos as quatro operações aritméticas, e estas deficientemente, pois no-las ensinaram os picos, os cinzéis e as brocasora por terras de Castilha (…), ora nas linhas da Beira Alta (…), ao menos com boa vontade e com a certeza de convencermos ainda os mais incrédulos de que importamos milho só exclusivamente para o consumo da freguesia. Temos 875 fogos que, a cinco alqueires, média mensal, gastam 4.365 alqueires. Em dez meses (pois supomos que o centeio colhido dará para dois) precisamos de 43.650 alqueires de milho! Imaginem, os que nos pensam exportadores, que, durante um ano, precisam entrar por Portelinha 7.275 mulas, com um carregamento de seis alqueires cada uma; e, por dia, vinte, sem guardarem dias santos, nem recearem afrontar as neves e os medonhos temporais! Convenceram-se? Pois não são tantas as récuas de mulas que nos visitam carregadas do bom cereal. Castro Laboreiro, 23/3/1916.»                 

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