sexta-feira, 24 de julho de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

Por Joaquim A. Rocha




... (continuação - ver em 26/6/2015)

- Malditos homens! Cambada! Não me largavam a saia, sabiam que estava indefesa, ninguém me respeitava. Esse era um patifório, pior ainda do que o teu pai, ameaçava-me de morte, batia-me como se eu fora uma cadela! Fez-me uma filha, que graças a deus morreu, e depois casou com outra, mesmo depois de casado ainda quis andar comigo, fugi-lhe sempre, mas só quando comecei a namorar com o teu pai é que ele me deixou de vez – teve medo!
- E os seus pais, não a aconselhavam?
- Cheios de penas andavam eles, a tua avó, antes de casar com o teu avô, mais novo sete anos do que ela, já tinha tido três filhos, coitada, padeceu muito, dois morreram-lhe com meses, com aquela maldita doença das crianças, o garrotilho, ou o sarampo, já não sei, poucas escapavam; o terceiro, o meu irmão Roberto, ainda viveu dezoito anos, pobrezinho, foi um ferro em brasa que espetou nas partes, era ferreiro, foi um grande desgosto para nós todos, olha que o teu avô gostava dele como se fosse seu filho, respeitou-o sempre, tratava-o como nos tratava a nós, meteu-o no padrinho e tio a aprender a arte, nunca se pensou que o levasse à sepultura. Também era músico da banda da terra. Teve um grande funeral, os colegas dele não puderam conter as lágrimas! Do teu avô nasceram… nem eu sei quantos, mas a maioria morreu criança, que naquele tempo havia muitas doenças, epidemias, as febres, que levava muita alma para o purgatório e para o céu. Deus sabe o que faz; se Ele os chama para a sua beira, é porque acha que é bom para eles.             
  
II

As virtudes vegetam no sofrimento


     Venham comigo. Agora sou proprietário de uma modesta oficina de consertos em calçado, que apelidei pomposamente de “Sapataria Ideal”. O meu ex-patrão, o Hilário, emigrara para França em busca dos francos, e eu aproveitei o rés-do-chão de minha casa para instalar aí a lojita. Tudo está a correr às mil maravilhas, mas aproxima-se inexoravelmente o dia de ingressar na vida militar; sou, por temperamento, pacífico, não quero fazer a tropa, mas também não tenho dinheiro para pagar ao engajador. Aproximem-se:

- Ó mestre, as minhas botas já estão prontas?
- Mestre, sim! Um fraco aprendiz. Mestre é o senhor Tinoco, esse sim, sabe trabalhar com moldes, corta a pele e faz calçado novo; eu, não passo de um remendão, devia ter estado mais uns anitos a aprender, mas o senhor Hilário emigrou para o estrangeiro. Quando os velhos morrerem não haverá mais artistas, o calçado terá de ser comprado nas lojas. Perguntou-me pelas suas botas. Acabei há instantes de as aprontar, e muito trabalho elas me deram; só o cortar o pneu para as solas puxou-me bem pelo peito. Espere um bocadinho que lhe vou pôr mais uma camada de pomada e dar-lhe brilho. Você depois em casa ponha sebo nelas, assim não deixarão passar a humidade. Ficaram como novas, tem aqui botas para uma vida.     
- Olha que vão para França, vão trabalhar no duro. Lá os invernos não são para brincadeira, aqui queixámo-nos, mas olha que lá é bem pior, há dias em que a gente nem pode pegar ao trabalho, as mãos não se podem tirar das luvas, aquilo é que é cair neve, e o frio é de rachar, não se aguenta. Mas um homem lá ganha algum, aqui não dava nem para o caldo, é verdade que um homem se esforça, mas traz dinheiro ao fim de uns anos.
- Ó tio Anacleto, e o que me diz da França? É bonita?
- Ó meu rapaz, nós não dispomos de tempo para visitar nada, vamos de metrô para o trabalho, voltamos de metrô para a barraca, fazer o comer, lavar a roupinha, remendá-la, fazer as compras ali na loja ao lado, e nada mais; dormir poucas horas, às seis da manhã já imos a caminho, aquilo é uma vida cadela, não gozamos nada, é só trabalho. Depois, quando vimos de férias, metemo-nos a construir a vivenda, isso é importante, nunca tivemos nada de nossa pertença, era tudo do patrão, agora começamos a ter qualquer coisa nossa.
- Ó tio Anacleto, acha que eu, com dezoito anos feitos, deva ir para França?
- Não to aconselho meu rapaz, és muito fraquinho, nunca trabalhaste nos campos nem nas obras, sempre metido na oficina, não estás curtido pelo sol nem pelo vento, tens pele de homem da cidade, não tens as mãos calejadas como nós, as nossas parecem de aço, não sei se te aguentarias; mas experimenta, se não te deres bem vens-te embora. Mas agora só se fores a salto, por causa da tropa. Qualquer dia vais à inspeção militar e não te livras, que eles agora precisam de soldados para a guerra nas colónias, e aquilo está bravo, caramba! Olha que não sei se fazes bem fugir-lhe, até pode ser que arranjes trabalho numa fábrica, sempre é mais leve, e estás recolhido, embora ganhes menos do que nas obras.
- O pior é o diabo do dinheiro, este mester só dá para o caldinho, não se junta nem um tostão. Se calhar vou pedi-lo emprestado a um parente, pode ser que o arranje, depois se pagará, até com juros, o pior é se sou preso na Espanha; perco o dinheiro e ainda por cima vou preso.        
- «Quem não arrisca, não petisca.»  // (continua)...


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