quinta-feira, 16 de julho de 2015

ENTRE MORTOS E FERIDOS 
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

romance

Por Joaquim A. Rocha



... (continuação)

- Chegamos finalmente a Melgaço. Nos anos sessenta do século XX era uma Vila minúscula, sem alma, triste e semi-desértica! Os jovens tinham emigrado. As raparigas, em grupo, aos domingos à tarde, pareciam andorinhas na primavera procurando o seu companheiro para, juntos, construírem o seu ninho. As fadas do lar, atingidas no âmago do seu peito, choravam amargamente. Umas… porque tinham os seus rebentos por essa Europa fora; as outras, em menor número, porque eles combatiam em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. As mães estão sempre em pranto quando os seus meninos estão ausentes.
- Eu nunca passei por essa experiência – lembra Henrique. - Estive sempre com a minha mãe. Quem sabe, um dia…
- Não tenhas pressa, rapaz; é bom viver com os nossos pais, com aqueles que o são, porque há criaturas que não merecem esse nome. Mas é melhor não abordar esse assunto, pois quando falo disso fico sempre triste.
- Continue com a sua narrativa – propôs Henrique, amavelmente, verificando que o seu amigo estava deveras emocionado.
- Durante o período que estive na terra natal trabalhei arduamente, a fim de juntar uns tostões. Os preços praticados eram baixos, não dava para amealhar; os meus clientes eram pobres, quase todos pequenos agricultores, mesmo assim ainda consegui umas centenas de escudos. O implacável calendário ia-me informando de que o dia de regressar ao CICA-1, assim se designava o quartel, se aproximava vertiginosamente. Andava taciturno e pensativo. Que raio, por que não podia fugir, ir para França ou Alemanha, como os outros foram?! Que força, maldito fado, me obrigava a caminhar em direcções opostas à minha vontade, ao meu sentir, à minha maneira de ser, à minha ingénita passividade? Estaria a ser posto à prova por entidades superiores, divinas?! – pensava eu, temeroso, mergulhado ainda na fase do obscurantismo religioso!  Não lera, só alguns anos mais tarde isso aconteceu, Bertrand Russell (Porque Não Sou Cristão), nem o surpreendente romance “Jean Barois”, de Roger Martin du Gard, editado pelas Éditions Gallimard em 1914.
- Nem Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mão Tsé-Tung…
- Antes de 25 de Abril de 1974 não se podiam ler essas obras em Portugal. A igreja católica portuguesa, sobretudo a sua hierarquia, e a PIDE, estavam atentos, as livrarias não podiam colocar à venda esses livros, sob pena de ficarem sem eles e arranjarem problemas graves com a “justiça”. A censura era implacável, meu amigo. Se alguém estivesse sob suspeita, a sua vida tornava-se num inferno, corria perigo. A sua casa podia ser invadida a qualquer momento, submetê-lo-iam à tortura do sono, podia, inclusive, ir parar ao aljube, ao Tarrafal, essa maldita colónia penal de Cabo Verde...
- Mas não eram apenas os militantes do Partido Comunista os alvos da PIDE? – perguntou Henrique, cheio de dúvidas.
- Qualquer um podia sê-lo, desde que mantivesse um comportamento social que suscitasse suspeitas aos esbirros de Salazar. Para eles, nós, os que estávamos contra o regime, éramos todos comunistas!
     Mas, dizia eu, que essas leituras me ajudaram a compreender o mundo. Eu estava de olhos fechados, completamente! O padre Emiliano, o «santinho», como as beatas lhe chamavam, mais as catequistas, obstruíram o meu cérebro de criança. Tudo era pecado: desobedecer, recusar, pensar! Ter imaginação era considerado heresia! Até brincadeiras inocentes eram, por vezes, vistas com maus olhos. A repressão era o pão-nosso de cada dia. Tínhamos que rezar o credo, a salve-rainha, eu sei lá, como castigo! E a cana-da-índia funcionava sempre: na escola e na catequese. Há pecados mortais e não mortais. Um deles, que alguns padres jamais cumpriram, é aquele que diz: «Não cobiçarás a mulher do próximo»! Quanto a mim os padres católicos deviam casar, para saberem o que é amar um filho, e o que custa educá-los com dignidade.
- Esses grandes sábios ajudaram-no a libertar-se desse jugo irracional, dessa escravatura do espírito…
- Em parte sim; o resto é a experiência, o rolar dos anos, o contacto com os outros, os altos e baixos da vida, a infinita curiosidade. Muitas pessoas não querem sair do fosso – ficam lá, chafurdando! É cómodo.                

2.º Capítulo

CICA – 1
  
     Os dias agora eram compridos, o sol brilhava, banhando de luz a cidade, mas não havia aquele calor excessivo do verão. Tudo convidava ao passeio, mas os dois amigos preferiam conversar, sentados na esplanada, beber umas cervejinhas em garrafa, e os populares “finos” ou “imperiais”, acompanhadas de tremoços ou amendoim. Cândido, sabendo do interesse do outro, iniciou a conversa:
     - Finalmente a hora da partida chegou. Muito triste, choroso, amargurado, quase doente, apanhei a camioneta no Largo da Calçada, ou Largo José Cândido Gomes de Abreu, em homenagem ao fundador do Hospital da Misericórdia, conhecida por carreira, e depois o comboio em Monção, em segunda classe, para a grande cidade do norte. O primeiro dia destinou-se a receber a fardeta cinzenta, cujo capote pesava quilos – só em Abril ou Maio desse ano de 1965 é que nos entregaram as novas fardas, de cor verde – e as instruções acerca do funcionamento do quartel.
     Tínhamos que conhecer os cantos à casa, apreender as regras para as cumprir escrupulosamente. As fardas, por mais estranho e absurdo que isso pareça, não as davam à medida do nosso corpo – botas com o número 44 entregavam-nas, por vezes, a rapazes que calçavam o número 39! Essa forma de distribuir os fardamentos mostrava-se, à primeira vista, caótica, sem sentido, e quanto a mim, era, mas depois, já na caserna, tudo se resolvia através da troca. Não seria isto também um teste à nossa inteligência? Ao lançarem esta confusão, os militares de carreira iam verificando como os jovens recrutas encontravam a saída do labirinto.
- Engenhoso! Genial! – reconheceu Henrique, até ali calado.
         Cândido, ao ouvir a voz do seu amigo, quase deu um salto! Imaginara-se sozinho, a discorrer sobre o seu passado, matando-o se possível, esquecendo-o, pelo menos. Não estava só, e ainda bem. Aquela amizade livrava-o do isolamento, libertava-o de pesadelos horríveis. Logo a seguir continuou:
 - Uma gritaria imensa atroava os ares; entregues a nós próprios, extenuados e numa babel sem rumo, sentávamo-nos sobre as caixas de madeira de pinho que no futuro nos iriam servir de roupeiro e despensa. Essas caixas tornaram-se mais tarde motivo para muita rixa, pois os filhos de camponeses e agricultores levavam nacos de presunto e chouriços da sua casa, da sua adega, e metiam-nos ali; como cheirava, os improvisados ladrões rebentavam as frágeis arrecadações, as que não tinham aloquete, e comiam regaladamente essas iguarias. Quando descobriam o guloso gatuno, havia porrada pela certa. Tinha que vir o cabo, ou o sargento de dia, apartá-los, de contrário o sangue jorrava.
- O Cândido chegou a andar à tareia com algum colega?!
- Não vais acreditar! Um dia, ou melhor, uma noite, quando me ia deitar não tinha roupa na cama! Que fazer? Comprá-la não podia! Onde havia dinheiro para isso? Por outro lado, não podia sair do quartel a essa hora. Fiz o que outros fariam nessa situação: procurei uma cama onde não estivesse ninguém e levei a roupa para a minha. No dia seguinte aparece um soldado e atira-se a mim! Andamos aos socos, eu até parecia o Belarmino, e depois veio o cabo e separou-nos. Depois de tudo esclarecido, fizemos as pazes.
- E a roupa? – interroga Henrique.
- Já não me lembro, mas penso que o oficial dia resolveu isso. Os que furtavam as coisas – sobretudo fardas e calçado – era para depois as vender. Não sei como conseguiam passá-las para a rua, é um autêntico enigma, pois a vigilância era apertada!
        Eu tinha imensas saudades da minha terra, da minha gente, dos meus hábitos quotidianos, da minha equipa de futebol, da minha saborosa comida, do jogo da sueca e dos matraquilhos. A Vila de Melgaço estava algures, longe, muito longe. Eu sonhava. Primeiro começava a vê-la vagamente, mergulhada em densas nuvens, de variadíssimas cores; depois, pouco a pouco, elas adensavam-se de tal modo, que me ofuscavam totalmente a visão. Possuía asas e voava, sobre os mares e montanhas, mas regressava sempre àquele sítio onde eu nascera; mas quando me aproximava a minha vilazinha fugia, desaparecia como levada pelo vento em fúria! Eu gritava desesperado: «Não, não roubem o meu adorado Melgaço, eu preciso de ver o seu rosto, de respirar o seu ar, de o abraçar afectuosamente
      
     Acordava sobressaltado. Estava ali, naquele casarão de cimento, com rapazes que se pareciam vagamente comigo, mas que não falavam a mesma linguagem, embora utilizassem o mesmo idioma. Quem seriam? Tinham outros costumes, vozes roucas, palavras rudes; ao falarem, denunciavam a sua origem; palavrões obscenos faziam já parte do seu parco vocabulário; a agressividade era inerente ao seu temperamento. Olhava para as suas enormes mãos e pareciam-me garras de ave de rapina, prontas a sonegarem a qualquer momento, se me distraísse, os meus escassos bens. Tive medo, confesso, mas não gritei. Esperar; a solução para o meu infundado terror seria esperar. «O tempo será o meu grande aliado», comentei em surdina.         
      A corneta tocou a alvorada. Seis da manhã. Levanto-me a correr, no meio de uma algazarra ensurdecedora. Da camarata íamos para as casas de banho cortar a barba, no meu caso uns pêlos que no meu rosto tinham aparecido clandestinamente, sem aviso prévio, e tomar um refrescante banho. Antes fôramos buscar as toalhas, brancas umas, outras amareladas, de tanto terem sido lavadas, de um pano grosseiro, a imitar o linho. Todos nus. A vergonha, o pudor, iriam desaparecendo, pouco a pouco. Depois do banho fardei-me e dirijo-me ao espelho. Afinal, o meu esqueleto franzino e o meu pé miúdo, ainda não tinham crescido para a vida de guerreiro!

- Você tinha vinte anos, era um homem – comenta Henrique, quase esquecido, enterrado na cadeira, bebericando cerveja e comendo uns tremoços.
- É verdade, fizera vinte anos havia sete meses, mas o meu corpo era pequeno e magro, pouco mais pesava do que cinquenta quilos!
- Depois engordou com o rancho – riu-se Henrique.
- Nem sequer fazes ideia do que era aquela porcaria. Ao pequeno-almoço davam-nos um pão grande, chamado casqueiro, para todo o dia, um púcaro de café com leite e um bocadinho de margarina ou marmelada, feita, salvo erro, de maçã! Ao almoço e jantar um caldo de couves, aguado, sem azeite, com uns bocados de carne, ou gordura de porco, de terceira categoria, sem lavar, quantas vezes fora do prazo, provocando um cheiro nauseabundo, e o presigo, carne ou peixe, acompanhado de batatas, arroz ou massa. Tudo mal confeccionado e sem higiene. Muitas vezes na sopa apareciam pedaços de piaçaba, que caíam da vassoura quando os faxinas – ou ajudantes do cozinheiro – esfregavam as panelas. Não esquecerei jamais a primeira refeição: arroz de polvo. Intragável! A cem metros de distância já se obtinha a indescritível sensação de estarmos perto de uma fossa a céu aberto. Não comer, seria o nosso fim; comer, era um sacrifício. De qualquer modo, não existia alternativa. Comparecer às refeições e comer, ou fingir que se comia, era obrigatório – fazia parte do regulamento. O homem, o ser humano, senhor do mundo mas não senhor dele próprio, tem de se adaptar ao meio que o rodeia. Teríamos que nos habituar, e quanto mais depressa melhor.    
- Você é fidalgo! – ironizou Henrique, desejando desdramatizar.
- Nem por isso. A minha mãe era cozinheira profissional, num hotel das Termas do Peso, e por isso eu estava habituado a comer comidinha bem feita. Mas também te digo: por incrível que isso pareça, alguns jovens das zonas rurais, campónios, maltratados pela vida dura do campo, não estranharam. Pelo contrário: muitos deles até engordaram como texugos! Comiam que nem labregos. Tudo que viesse à rede era peixe. Lembro-me de um que aumentou o seu peso em vinte quilos bem medidos, no período de quatro meses. Parecia um cevado!
     Depois de um dia fatigante, exercício físico, manejo de armas, condução de pesados, reunimos na parada. Eram seis horas da tarde e o corneteiro estava pronto a tocar para a janta. Momentos antes mirei novamente a minha ridícula figura no espelho. Sorri, sem querer. Que diriam os meus conterrâneos se vissem este pequenino corpo enfiado naquele desmedido uniforme? Troçariam de mim, de certeza absoluta! A corneta tocou. Era o relógio de ponto, o ditador implacável, o hitler mecânico. A partir desse dia andaríamos sempre ao toque dela: para levantar, para as refeições, para os exercícios, para recolher, para tudo!
     Destroçar e refeitório. Desatei a correr atrás dos outros. À nossa espera estavam os “velhos”; queriam rir à nossa custa. E riram! Tinham sido, no passado recente, também eles, alvo de chacota, de gargalhadas mil. Vingavam-se.
           
     Henrique não fizera a tropa, porque quando tinha vinte anos a guerra colonial já terminara. Não precisaram dele. Por um lado lamentava tal facto, pois dizia-se que quem não fosse militar não era homem, mas por outro lado agradeceu, visto ter-lhe permitido estudar sem sobressaltos. Perguntou:

- E os sargentos e oficiais, não comiam com vocês?
- É óbvio que não, meu amigo; eles possuíam refeitórios separados, a que chamavam messes, e aí, a comida, segundo constava, era óptima. Servidos com delicadeza, com abundância… Até vinho bom bebiam – nós bebíamos a zurrapa, vinho batizado e mesmo assim, pouco. Ao contrário da maioria dos soldados, a sua pele era luzidia, bem tratada, o que só se consegue através de uma saudável alimentação. Eu lembro-me de algumas crianças da minha parvónia, raquíticas, com pele de velhos, porque andavam mal alimentadas.
     Permaneci no Centro de Instrução de Condução Auto (CICA-1) dois meses. Sessenta dias de intensos e temerários exercícios: capacete metálico na cabeça, armas às costas… Sabes que muitos rapazes apanharam uma doença qualquer no couro cabeludo por causa dos capacetes?!
- Não me diga? – exclamou Henrique, admirado.
- É verdade! Não punham nada entre o capacete e o cabelo e assim os micróbios que havia na armadura passavam para a raiz do cabelo, sobretudo quando se suava, o que acontecia diariamente. Alguns ficaram sem um único cabelinho!       
- E você, não apanhou o vírus?
- Não, porque eu colocava um lenço enorme na cabeça; tinha nojo, asco, do capacete – já tinham servido, segundo constava, na Primeira Grande Guerra, em 1917 e 1918, quando os portugueses lutaram em França contra os alemães. 
- Caramba! Eram antigos, os bichos!
- Todos os cuidados são poucos para preservarmos a saúde. Mas o que mais me custou naqueles longos dois meses foram os vexames, aquelas ordens que soavam como vergastadas no meu frágil corpo – doíam por dentro: «Não pára. A correr, a correr.» «Quem cair leva um pontapé no traseiro.» «Salta o galho, seu nabo!» «Não sou capaz, meu aspirante.» «Filho da mãe, levas cinquenta flexões de castigo.» E as humilhações eram contínuas: «Ó recruta!» «Sim, meu sargento.» «Sabes andar de bicicleta?» «Sei, meu sargento.» «Então vais varrer a parada!» A vassoura era enorme! Os prontos passavam e riam-se, aquele riso sarcástico, que penetra fundo na alma da gente.
     Quando queria sair à rua, o que raras vezes era permitido, tinha que pedir no portão de saída ao oficial de dia, normalmente um aspirante ou alferes. «Posso sair, meu alferes?» «Ora deixa-me ver. As botas não estão mal engraxadas, não senhor, mas esses amarelos… deixam muito a desejar.» «Meu alferes, estive quase meia hora a limpá-los, até brilham…» Ele irritava-se, ou fingia: «Eh, pá! Estás a gozar comigo? Vais limpá-los imediatamente.» «Sim, meu alferes.» Cabisbaixo, resignado, lá ia eu outra vez para a caserna, dar mais uma esfregadela nos metais da farda – parecia ouro a brilhar! O estômago podia estar vazio, mas o exterior, esse tinha que estar bem tratado!
- Isso revoltava – reagiu Henrique com espontaneidade.
- Nada de armar em esperto, meu amigo, isso ali não resultava. Executar as ordens, justas ou injustas, dadas por aqueles seres sentados num pedestal, mais poderosos do que os deuses do Olimpo, e calar. Tinham muito poder aqueles sacanas, até nos podiam matar à porrada! Houve casos em que isso ia acontecendo, depois argumentavam que o soldado era anarquista, não quisera obedecer às suas ordens, enfim, ficavam sempre na mó de cima. Os oficiais superiores, até ao general, davam-lhes sempre razão, mal do soldado – ia parar à cadeia ou à enfermaria. A seguir, logo que melhorasse, mandavam-no para a frente de batalha, para morrer!
- Era quase um assassínio!
- Mais ou menos. Camuflado, mas um crime, sim…
- Tempos difíceis, meu amigo, tempos difíceis.
- Podes crer. E como se não bastasse, ainda tive que apanhar uma vacina que me levou à cama com febre. Colocaram-nos em fila indiana, junto à enfermaria, e os enfermeiros – semelhantes a magarefes – iam espetando nos nossos braços a agulha; minutos depois outros iam injectando o malvado líquido. Alguns rapazes não reagiram bem à vacina e tombaram no chão desmaiados! Nesse dia assustei-me deveras. Pensei não resistir.
- Foi dose para cavalo! – aventou Henrique.
- Era precisamente isso que todos dizíamos. Quase que nem um elefante aguentava. Os mais antigos, talvez para nos gozar, ou quem sabe, com pena de nós, aconselhavam-nos a ir ao bar beber vinho. «O álcool atenua o efeito», diziam eles. Os enfermeiros, esses, pediam-nos que aguentássemos, pois dentro de uns meses iríamos para África, e estas vacinas evitariam as febres que grassavam com frequência naqueles climas quentes.         
        O quartel ficava paredes-meias com o Palácio de Cristal e perto do rio Douro. Talvez por isso me tenha deixado algumas réstias de saudades quando de lá parti. Podendo, ia até ao rio, ver os pescadores pescarem, lembrava-me sempre o meu rio Minho, as margens mais bonitas, mais verdes, aqui e ali surgindo uma fonte natural, água fresca, nunca mais encontrei em parte alguma dessa água maravilhosa. O rio Douro era maior, mas sujinho, coitado. As suas margens, no Porto, não são belas nem naturais. Construíram casas abarracadas, onde vivem centenas de pessoas miseráveis e com pouca, ou nenhuma instrução. No Minho era diferente: os arvoredos, os campos de milho e de centeio, as vinhas, dão à paisagem um tom alegre e colorido. De um lado os galegos e de outro os portugueses, umas vezes à pancada e outras vezes aos abraços!
     O poeta monçanense João Verde soube cantar em verso como ninguém essa proximidade/afastamento: «Vendo-os assim tão pertinho/a Galiza mail’o Minho,/são como dois namorados/que o rio traz separados/quase desde o nascimento…»
     Durante esses dois meses de permanência no CICA-1 fiquei a conhecer razoavelmente a capital do norte: as suas grandezas e misérias, as suas belezas (monumentos extraordinários) e fealdades (ruas estreitas e íngremes, quase sempre sujas e mal cheirosas, gente bêbada e pouco educada).
- Mais misérias do que grandezas, talvez? – pergunta Henrique, com redobrada curiosidade.
- Na cidade média e grande está tudo equilibrado. Mas estava eu a dizer… Ah! já me lembro. As montras das lojas eram a minha atracção favorita: atraíam-me, como os brinquedos atraem o bebé. Olhava, bronco, embasbacado, para os objectos nelas expostos – um autêntico papalvo! Aquelas luzes variegadas, os milhentos anúncios luminosos, fascinavam-se, arrastavam-me para outro mundo, para o sonho, para o devaneio…      

- Estava a nascer em si um poeta. 
                                                      (continua)...

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