domingo, 26 de julho de 2015

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha


Interior da igreja de Lamas de Mouro


OLIVEIRA MARTINS E OS MINHOTOS


     Na sua História de Portugal (Guimarães Editores – 16.ª edição, páginas 44 e 45) Oliveira Martins pinta o retrato do homem minhoto com cores assaz cinzentas. Diz ele: «o transmontano, vivo, ágil, robusto, destaca-se para logo do minhoto, obtuso mas paciente e laborioso, tenaz, persistente e ingénuo.» Mais à frente afirma: «a humidade (70 a 100%) torna flácidos os temperamentos e entorpece a vivacidade intelectual, que nem um frio demasiado irrita, nem um calor excessivo faz fermentar, à maneira do que sucede nas zonas genesíacas dos trópicos. Temperado o clima (12 a 15 graus), sem excessivos afastamentos hibernais, a população satisfeita, feliz, e bem nutrida de vegetais e de ar húmido, oferece a imagem de um exército de laboriosas formigas sem coisa alguma do alado e brilhante de um enxame dourado de abelhas.»    
     Oliveira Martins nasceu em Lisboa em 1845. Viveu no Porto durante algum tempo e foi deputado por Viana do Castelo em 1886. Devia, por conseguinte, conhecer razoavelmente o Minho e os minhotos: por isso, não se admite que tenha tido tão má impressão do nosso povo. Ele sim, foi obtuso quando chegou a essa infeliz conclusão.
     Está mais do que provado que, em relação a nós, essa asserção é errada: então os minhotos emigrantes não alcançam ótimos lugares de chefia, não se tornam excelentes técnicos, grandes gestores, em países tecnologicamente avançados? Se fossem estúpidos, isso não seria possível. Oliveira Martins viveu pouco tempo e escreveu demasiado para os quarenta e nove anos de vida. Não teve tempo suficiente para aprofundar os seus conhecimentos das pessoas e das coisas. Tudo quis abarcar e o resultado está à vista: como historiador ficou muito aquém de Alexandre Herculano, e como escritor de ficção (que o poderia ter sido e dos melhores) falta-lhe o principal, a personagem convincente. As suas personagens estão eivadas de uma ganga histórica, que as penetra até à raíz. O leitor das suas obras não sabe se está a ler uma obra histórica ou um romance! Oliveira Martins falou com desprezo e desdém. E tão aligeiradamente o fez que até se esqueceu das contradições em que constantemente caía! Primeiro afirma que a humidade torna flácidos os temperamentos – logo, o minhoto seria molengão; mais abaixo acrescenta que o minhoto é feliz e trabalha como as formigas, isto é, todo o ano! Ora, um povo obtuso não pode ser feliz, porque a felicidade advém de uma consciência tranquila, lúcida, viva. Logo, o minhoto é feliz porque é inteligente. Por outro lado, está provado que uma alimentação rica em vegetais e um ambiente puro torna as pessoas bem-dispostas, alegres, saudáveis de corpo e de espírito. Oliveira Martins não tinha razão e ofendeu-nos levianamente. António José Saraiva e Óscar Lopes escreveram (ver História da Literatura – 9.ª edição, página 947) - «o pitoresco de Oliveira Martins é, todavia, quase sempre convencional e forçado, geralmente um pitoresco de segunda mão, tendo por fontes textos literários e não uma percepção pessoal da realidade.» Estes autores não são suspeitos, visto serem, sobretudo o primeiro, admiradores de Oliveira Martins.
     Não é minha intenção reduzir a cisco a obra de um homem que, apesar de a vida lhe ter sido adversa na infância, nunca deixou de lutar. Alcançou mesmo um lugar de destaque na sociedade do seu tempo, chegando a ministro da Fazenda no reinado de Carlos I. Algumas das suas obras ainda hoje se lêem com agrado – Oliveira Martins foi um artista da palavra escrita. Vamos, portanto, dar-lhe um certo desconto, considerando-o apenas um teórico imaturo, que não pôde comprovar as suas extravagantes teorias.
     José Leite de Vasconcelos, um dos maiores sábios portugueses de todos os tempos, conheceu muito bem o Minho e as suas gentes, e nunca delas disse algo de mal – bem pelo contrário. As opiniões sobre os minhotos, que abaixo transcrevo, foram extraídas da sua monumental obra «Etnografia Portuguesa». Agostinho Rebelo da Costa, na sua «Descrição da Cidade do Porto» (Porto, 1788, páginas XIX e XX) diz dos minhotos: «na guerra não há soldados que se mostrem mais impávidos e se arrojem mais intrépidos aos maiores perigos; na paz não há gente nem mais quieta, nem mais benigna… na religião são constantes, no trato agasalhadores, graves nos costumes: os que seguem as letras fazem nelas admiráveis progressos, de sorte que a Universidade de Coimbra os distingue sempre com louvor entre os alunos.» Alberto Sampaio (Estudos Históricos e Económicos, I, páginas 530-534, Porto, 1923), diz: «a sua inteligência não tem um desenvolvimento precoce, nem a faculdade de compreender no primeiro momento qualquer questão; a raça é morosa e pesada, mas tem no grau mais elevado a paciência e tenacidade do trabalho, a sensatez ou juízo prudencial; a feição, enfim, de dirigir lentamente o pensamento, característica fundamental do seu génio.» Teixeira de Queirós (Campos da Minha Terra, in Atlantida Lisboa, 1915, páginas 45-52) escreveu acerca do minhoto: «… sempre afectivo, pouco desconfiado, dando-se facilmente, mesmo com aqueles que não conhece
     Apesar destes juízos, uns favoráveis outros desfavoráveis, poder-se-á afirmar sem grandes receios de erro, que a gente do Minho é pouco diferente da outra gente, sobretudo da população do norte e centro de Portugal.
     P.S. – já tinha o artigo terminado quando, por mero acaso, dou de caras com a famosa secretária de Oliveira Martins. Trata-se de uma secretária enorme, em boa madeira e em ótimo estado. Nela está incrustada uma placa em metal, com os seguintes dizeres: «secretária de constante trabalho do escritor Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894). Oferecida em 13/10/1978 à Sociedade de Língua Portuguesa por sua sobrinha-neta Senhora Dona Maria Beatriz Salema Barbosa Cobeira


Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 953, de 15/12/1991.

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