sábado, 18 de julho de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha





Cartas de um castrejo
... (continuação)

7.ª - «Sr. Redactortrocadas as nossas impressões no pretérito dia 9, a fim de que a indulgência do “Correio” continue a ser, para nós, uma garantia segura de que as nossas necessidades serão do conhecimento público, retiramos com a nostalgia do lar – do nosso lar, onde o fogo crepita e o escabelo espreita a nossa chegada, rodeado de mesinhas, ocupadas pelos garotos, que esperam as coisas da feira. Chegamos, enfim, mas que de peripécias no caminho! Descrevê-las todas, no curto âmbito de uma carta, seria impossível: mas vamos àquelas que mais nos impressionaram: encapotados, com a nossa calça de cabedal e a chuva inclemente a fustigar-nos o rosto e a cegar-nos a montada, largamos do Vila Verde às 16 horas. Calçada arriba, alto a Cabana, Costa da Rolha, Fiães e Breia (aqui já a neve começa a dificultar-nos a viagem), Alcobaça, Costa de Portelinha e, atingida, cá estamos em plena "Rússia". A derrota facilita-nos a chegada à vila, mas que desolação! Na orla dos caminhos divisam-se-nos vultos negros a destacarem-se da alvura da neve: são reses que a fome e o frio abateram. Um ou outro candieiro de petróleo, cujas résteas de luz se coam pelas frinchas das janelas e portas, indicam-nos que estamos na vila castreja. Não tomamos nada. Vamos para o nosso querido e almejado lar. Ali, depois de fazermos a muda do fato e o arranjo da montada, ocupamos o nosso lugar à lareira, onde a esposa carinhosa e os filhos estremecidos nos acalmaram das fadigas da viagem. E, depois dum caldo reparador e quentinho, filosofamos: que triste a nossa vida! A neve põe uma insuperável barreira ao nosso convívio: não temos caminhos transitáveis; as messes nada produzirão, por vergastadas com estas furiosas intempéries, os batatais morrem; e os javalis, em quantidade, assaltam-nos as covas, onde ainda guardamos a colheita anterior. Decididamente, somos um povo enteado desta querida pátria, que tanto amamos e por quem trabalhamos! Ninguém se lembra (…) que a vida que levamos é um martírio, lutando com a fereza dos elementos e com a ingratidão e olvido dos homens. Para a cama, pois, onde a manta já nos reclama, com a esperança de que sonhos fagueiros nos retemperem a alma. Acordamos que só sonhamos coisas tristes… Castro Laboreiro, 16/3/1916.» // (continua)...        

     Nota: ainda demoraria muitos anos, mais de trinta, a construção da estrada para Castro Laboreiro; até 1950, mais ou menos, era uma freguesia esquecida, com cerca de duas mil criaturas a sofrer o rigor do inverno e o sol escaldante de verão. Por estas e outras razões é que em 2015, segundo dizem, só ali moram cerca de quinhentas pessoas, apesar de agora terem boas casas e acessos em ótimas condições. A serra é boa para a caça, para o turismo; para residir, o ser humano prefere a vila ou a cidade, mesmo com a maldita poluição.   





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