quarta-feira, 21 de setembro de 2022

POLÉMICA: PROFESSOR CONTRA PADRE  



SOARES, António Joaquim. // Foi professor na escola do ensino primário de Paderne, Melgaço. // A 15/5/1929 escreveu uma carta aberta ao padre “Amigo”, pároco de Paderne (ver Notícias de Melgaço n.º 13, de 19/5/1929, e Notícias de Melgaço n.º 16). Podemos ler: «Carta aberta ao padre Amigo, abade da freguesia de Paderne. Alguns dias depois da minha chegada a esta freguesia entrei na igreja e vi orar Vossa Reverência com gestos e modos tais que me deram a impressão de que observava um libidinoso, prestando culto a Adónis e não a ideia de que via um padre ou um crente encomendar-se a Deus. Pareceu-me ver, por este motivo, que V.R. não seria aquele padre bom que – dotado de amor e de abnegação humana – educa e instrui o povo da sua freguesia. Assim como percebi que V.R. somente poderia conviver com pessoas hipócritas ou que fingiam submeterem-se e obedecerem à sua vontade caprichosa e jesuítica, também conheço que não me perdoa as ideias rasgadamente liberais que sempre e em toda a parte espalho e apregoo, sem outro intuito que não seja o de contribuir para dar satisfação à minha consciência e rasgar novos horizontes ao povo que V.R. tanto empenho tem em embrutecer (...) E, como bom jesuíta que é, vai fazendo uma campanha de infamiazinhas contra mim, quer como cidadão, quer como professor. Eu sei que V.R. vê em mim o seu maior e o seu mais terrível adversário na faina que empreendeu de converter esta freguesia em bando jesuítico, em rebanho que V.R. possa tosquiar sem que ele esboce o mais leve sinal de revolta. Sei também que lhe convinha na freguesia um professor que não educasse, não instruísse, e não republicanizasse. V.R. não estava acostumado a ouvir cantar pela rapaziada o hino nacional, a Portuguesa, a Maria da Fonte, e outros hinos patrióticos, e canções educativas cujo ritmo lhe fere os ouvidos. Teme o ensino e a educação racional que hoje se ministra nas escolas. Desgosta-se ao saber da alegria e satisfação dos petizes quando ouvem exaltar os atos dos nossos santos heróis dotados de bondade, fé cristã e abnegação, que fizeram de Portugal a primeira nação do mundo, e que tanto contribuíram para a emancipação humana! Encoleriza-se ao ouvir dizer o que foi a inquisição e outras quejandas delícias que em outros tempos faziam a felicidade dos povos! V.R. não quer que se diga que a inquisição, cujos membros faziam parte da classe clerical, foi obra de jesuítas, e que a confissão foi imposta por estes? Não gosta de ouvir a verdade, senhor abade? Pois ouça esta: “Fez no dia 31 de Março cento e oito anos que em Portugal foi extinta a inquisição. Só em quatro tribunais matou ela [no país] 6.542 pessoas! Em Lisboa queimou vivos 355 homens e 221 mulheres! Nos cárceres morreram 546 mulheres e 706 homens e sofreram ainda os horrores dos primeiros castigos 6.005 homens e 4.960 mulheres! E, isto, senhor abade, em nome de Deus! V.R. sabe muito bem que na escola de Paderne se ministra educação e instrução, que se formam carateres e vontades. A prova disto dão-na a petizada que vem com satisfação para a aula, saindo cantando. V.R. já não ouve dizer que as crianças que frequentam a escola praticam atos malfazejos pelos caminhos. Já ninguém vem queixar-se à aula que este ou aquele menino fizera qualquer judiaria! Porquê, senhor abade? É que procuro formar o coração das crianças para a prática do bem, do que é belo, do que é justo e sublime, encaminhando-as sobretudo na senda da verdade, da honestidade e do trabalho. E, sempre que tenho oportunidade, e encontro no livro a palavra Deus, explico-lhes assim: “Deus é a suprema e soberana inteligência, é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições”, e não pode ser de outra maneira. Dou-lhes o sentido de todas as palavras. Assim: imaterial quer dizer que difere de tudo quanto chamamos matéria; de outro modo não seria imutável por estar sujeito às transformações da matéria. Deus não tem forma apreciável aos nossos sentidos. As imagens que apresentam Deus sob uma forma de figura de longas barbas, coberto com um manto, são ridículas; têm o inconveniente de rebaixar o Ser Supremo às mesquinhas proporções da humanidade. Daí a emprestar-se-lhe as paixões humanas e a fazer dele um Deus colérico e ciumento não há mais do que um passo. E esforço-me, para que os meus educandos compreendam quem seja Deus e se lhes assemelhem nas suas ações, adquirindo a completa purificação do seu espírito pelo rigoroso cumprimento dos seus deveres para com os pais, para consigo mesmos, para com os velhos, e mais fracos, para com os animais e plantas, ilustrando-os com os conhecimentos de história e das forças da natureza. Atenda, por isto, à diferença que existe entre nós dois na maneira de educar. Eu educo, ensino e instruo; V.R. deseduca, desensina, e animaliza. Qual é, pois, o medo de V.R. à escola? Eu sei. V.R. prevê daqui a quatro anos, não as rixas fratricidas como disse na missa conventual do penúltimo domingo, mas sim a existência de alguns rapazes conscientes de espírito lúcido e esclarecido, bons portugueses, bons republicanos, homens livres, enfim, perfeitos e capazes de elucidar aqueles que tiveram a desdita de não passarem além da doutrina ensinada pelas beatas ao serviço de V.R. Antes V.R. tivesse dito: “Foi publicado um decreto pelo governo da República com força de lei proibindo a saída de Portugal a todo o cidadão maior de catorze anos que não tenha exame da terceira classe das escolas primárias”. Mandai vossos filhos à escola para se instruírem (…) Para que persiste em não (…) e espiritualizar os seus fregueses? Prefere os ignorantes para serem seus escravos, para serem católicos à sua semelhança e maus cristãos como V.R.? Porque lhes não ensina os deveres que os pais têm para com os filhos, a maneira daqueles educarem estes no lar? Os deveres dos filhos, para com os pais, e a forma de respeitar estes? Os deveres, para com os seus semelhantes? O respeito que devem aos velhos e aos mais fracos? O respeito que devem às crianças; os deveres para com os animais – nossos irmãos espirituais –, a estima e o amor que devem ter às plantas, o carinho e cuidado que devem ter com os ninhos das aves e a proteção que lhes devem? Porque lhes não dá algumas instruções sobre higiene e os não elucida sobre os agentes naturais e certos fenómenos para lhes tirar o medo e a superstição? Porque lhes não faz compreender que o mal é obra do homem e não de Deus? Não procure atemorizá-los com o quadro das chamas, nas quais acabam por não acreditar, e que lhes fazem duvidar da bondade de Deus. Mostre-lhes as descobertas da ciência como revelação das leis divinas e não como obra de Satanás. Ensine-lhes, enfim, a ler no livro da natureza, constantemente aberto diante de si, nesse livro inesgotável, onde a sabedoria e a bondade do criador estão escritas em cada página. Então eles compreenderão que Deus, ocupando-se de tudo e tudo prevendo, deve ser soberanamente poderoso. O lavrador, traçando os sulcos, o verá. O infeliz o bendirá em suas aflições, dizendo: “Se sou desgraçado é por minha culpa”. Assim os homens serão sobretudo racionalmente religiosos; muito mais do que acreditassem nas pedras que transpiram sangue, nas imagens que piscam os olhos e derramam lágrimas. Para findar: modifique-se, senhor abade, contemporize e apascente racionalmente as suas ovelhas, se deseja ver-me no seu rebanho. Contribua com a sua inteligência para a unificação das religiões, embora lhe pareça difícil, atendendo às diferenças existentes entre elas, e o antagonismo entre os seus adeptos. Porém, ela se fará em religião, como já tende a fazer-se social, política e comercialmente. Os povos do planeta terra já fraternizam, e não está longe a sua felicidade. Para a frente é que é o caminho do bem.» // Paderne, 15/5/1929. O professor: António Joaquim Soares


    No Notícias de Melgaço n.º 16, de 9/6/1929, escreveu o professor António Joaquim Soares: «Diário do Minho, Paderne, 1/6/1929. A propósito da nossa carta aberta ao reverendo padre “Amigo”, de Paderne, o Diário do Minho de 23/5/1929 publica um artigo abordando a nossa vida particular e íntima. O marujo, autor do artigo, esconde-se atrás do pseudónimo “Particular” e diz que não nos conhece, honrando-nos muito com isso, porque só desejamos ser conhecidos de pessoas de cavalheirismo e de caráter nobre, e não de canalhas como o tal “Particular”, que não tendo outros processos de crítica às nossas afirmações serviu-se de meios adotados por qualquer garoto que não sabe defender-se, ou atacar, senão com insultos. Nós não falamos na vida particular de padres, nem de católicos, mas já que o senhor “Particular” assim o quer, seja feita a sua vontade. Não somos católico, mas sim cristão, e envergonhamo-nos de certos atos praticados pela grande maioria de padres católicos que se dizem diretos representantes de Cristo. Assumimos em todas as ocasiões a responsabilidade que praticamos. Nunca aconselhamos as amantes a encobrir os filhos para que depois desapareçam por qualquer forma, ou conseguir-lhes supostos pais por juntas de bois, ou seu valor. Não exploramos a ignorância e bondade dos nossos semelhantes em proveito próprio, ou de quem quer que seja. Obedecemos somente a ocultas leis fisiológicas, pelas quais miríades de pessoas de bem se deixam dominar. Declare, pois, o senhor “Particular” a sua identidade para lhe expormos tudo claramente, já que assim o provocou e deseja. Alguma coisa lhe tocará, também. Ainda que seja do inferno, lá teremos amigos que nos informarão. Entretanto, com a nossa literatura de cordel lhe iremos tecendo um cabresto e uma cilha para segurar bem aquele grande animal, o jesuitismo, que não o deixa proceder com correção.» 


 Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 16, página 5: «Ex.mo Sr. Professor de Paderne. Por acaso, não sei se feliz ou infelizmente, li há dias no Notícias uma carta aberta ao senhor padre “Amigo”, da autoria de V. Ex.ª // É deveras uma carta original em desvergonha e atrevimento, fruto, como não podia deixar de ser, de uma inteligência desorientada, só própria de boçais qualificados. Francamente, conto já bastantes primaveras e não tinha tido ainda carta ou artigo de jornal que provocasse em mim tão violentos frémitos de indignação, de mistura com (…) estrepitosas gargalhadas, como a carta em questão. É, que, a inteligência humana, feita só para a verdade, não pode sofrer de bom ânimo que o disparate alardeie infrene, que o erro adquira foros de legalidade, que a mentira grosseira passe em julgado e tenha ingénuo acolhimento por parte de muitos simples, cujo espírito é uma tábua rasa, na qual nada está escrito. Por outro lado, a tolice teve sempre a sua graça. Hesitei em escrever, porque à primeira vista pareceu-me que se tratava de uma questão meramente pessoal, mas, refletindo melhor, vi nessa carta uma afronta pública à dignidade e nobre missão do clero católico e um enxovalho blasfemo lançado sobre a Religião Santa de Jesus Cristo. Prescindo das razões particulares e pessoais que determinaram V. Ex.ª a exautorar e a cobrir de hediondos vitupérios o reverendo abade de Paderne, que não tenho a honra de conhecer. A este, peço eu licença para repelir na arena da imprensa uma afronta, que [visando] ofender a consciência dos católicos, considero feita à minha pessoa. É-me impossível reduzir a uma ou a poucas proposições todas as afirmações de caráter doutrinário que V. Ex.ª fez na sua carta. Elas são tantas e tão variadas! De cada uma farei a devida crítica, guiado somente pela verdadeira história e pela luz da ciência sem preconceitos. Verá que o odioso da Inquisição não recai sobre a Igreja; e que não é com uma frase destacada e nua que se resolve uma questão histórica tão delicada e que tem feito correr rios de tinta. Verá como a ação singularmente humanitária da Igreja Católica jamais conheceu eclipses totais; verá que a árvore gigantesca da caridade cristã acariciou com a sua sombra benfazeja as gerações de vinte séculos; verá que a Igreja está distribuindo os seus frutos de bênção e de ternura maternal entre todos os povos do mundo; verá que o seu campo de ação não se acha limitado, senão pelos gelos intransitáveis dos polos; verá que o facho luminoso da verdade, acendido há 1929 anos por Jesus Cristo, não tem cessado de dissipar as trevas do erro e da ignorância; verá que a Igreja Católica não está circunscrita ao concelho de Melgaço, mas que só tem por balizas os confins da Terra. Senhor Professor! V. Ex.ª abriu fogo! Agora tem de esperar o avanço das tropas inimigas. Não o magoe, porém, este vocábulo – inimigas, porque os católicos sabem odiar o erro mas ter caridade para com os que erram. Importa, contudo, que V. Ex.ª expectore tudo quanto sabe e sente contra a Igreja, contra a religião, e contra Deus. Importa saber se V. Ex.ª é protestante, deísta ou ateu encoberto, porque conforme a posição que tomar assim urge dirigir o ataque. // Isto já vai longe e eu não quero abusar da generosidade do diretor deste jornal. Por isso, para já, fica V. Ex.ª intimado a provar-me em que ano foi instituída a Ordem dos Jesuítas, pois que V. Ex.ª lhe atribui a imposição da confissão (sic) quando eu julgava que ela tivesse sido instituída e imposta por Jesus Cristo. Fica intimado a provar-me historicamente qual foi esse concílio célebre em que os jesuítas deliberaram inventar e impor a confissão, ou – se atribui essa invenção a um só jesuíta – quem foi esse homem notável, o seu nome, a sua nacionalidade, o tempo em que viveu, e quais os protestos de todos os que não eram jesuítas, quer padres, quer simples fieis, contra essa imposição odiosa? Sim! Importa conhecer esse homem. A humanidade, por dever de gratidão, tem de erigir uma estátua ao autor de tão proverbial invento, que tantas vezes tem feito chegar o alheio às mãos do legítimo dono, que a tantos tem afastado do caminho asqueroso do vício, que de criminosos tem feito grandes santos. V. Ex.ª, que se apelida de apóstolo do bem, não deixará certamente de tomar interesse nesta empresa, gratíssima aos corações generosos, de tributar a devida homenagem a tão extraordinário benfeitor da humanidade. Importa solicitar do Estado uma emissão de selos para levar a esse efeito a justa glorificação desse grande personagem. Pois quê! Teve o marquês de Pombal essa honra, e… não a há de ter também o inventor da confissão? Portugal deve, pois, importar-se ao mundo, dando esse exemplo de rasgada gratidão. Então as outras nações, envergonhadas de tão longo e injusto silêncio, imitarão também o nobre gesto desta nação, que nos tempos jesuíticos deu cartas ao mundo inteiro. Auxilie-me, senhor professor, auxilie-me nesta empresa. Junte a sua autorizada voz à minha, que é débil; mais tarde, talvez num futuro próximo, receberá V. Ex.ª uma retribuição condigna – uma estátua em sua honra, pois ao que parece já descobriu um meio ou, ao menos, possibilidade de instruir e educar os animais, seus irmãos espirituais (sic). Oh! Então a humanidade receberá um numeroso contingente. No reino animal haverá perfeita camaradagem. Desde o sapo ao homem mais categorizado ouvir-se-á uma só voz: - viva a liberdade! Todos somos irmãos! Mas antes, senhor professor, terá necessariamente de haver conflitos sangrentos, uma conflagração universal e a subversão completa das leis que agora regem os elementos. Coisa estupenda! Espetáculo aterrador, cuja só antevisão me faz gelar o sangue nas artérias. Ver-se-ão então os homens saindo das igrejas, transformados em brutos (como V.Ex.ª pensa) e os jericos e demais camaradas a sair das escolas, entoando com entusiasmo bestial o hino da liberdade animalesca, escrito pelo seu próprio punho perissodatílico. Às armas! Às armas, contra o chicote marchar, marchar! Então iniciará a liberdade o seu período áureo2 de Junho de 1929. Atanásio. 


 A resposta não se fez esperar. Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 17, de 16/6/1929, páginas 5 e 8: «Ao Ex.mo Senhor Atanásio – Quando recebi o Notícias de Melgaço e abri para ler, sedento de sensacionais notícias políticas, deparei com a carta de V. Ex.ª que li como por desfastio, por a ver firmada de um pseudónimo. É, que, detestei sempre os (…) e os embusteiros profissionais. Porém, reli e pasmei que (…) de maus afetos e de (…) engendrada fossem (…) de manejar, também, (…), e a frase, como qualquer afamado fadista maneja a navalha para ferir insensivelmente o seu adversário. Leio, depois, o artigo “A Inquisição” firmado por Vaz de Castro. Atenda V. Ex.ª à diferença de forma, de sentimento e de caráter. A carta de V. Ex.ª, verdadeira peça de estilismo, revela um sentimento e um caráter vulgares, uma inteligência e uma credulidade mórbidas. Vaz de Castro tem uma bagagem cheia de luz, de vida de honestidade e de santa paixão pela verdade. Deixa transparecer um caráter nobre que ilumina e inspira simpatia. Sente-se em Vaz de Castro o sentimento de um cavalheiro de reconsideração admirável, de correção e justificação de princípios. Assim, aprende nele quem aprova o que ele afirma e justifica. A lição também deve ter servido a V. Ex.ª e a qualquer outro pusilânime. Com esta lição fica sem efeito a intimação que V. Ex.ª me faz, para declarar o ano da instituição dos jesuítas, o que não era difícil por estar atestada em qualquer livrinho de história para a instrução primária. V. Ex.ª sabe tão bem – ou melhor do que eu – que a verdade não é monopólio de ninguém e que a maior desgraça da humanidade consiste em não ter vontade própria para a compreender e estimar, assim, os seus adversários. Ainda que sejamos muito inteligentes temos necessidade de que outras inteligências bem mais poderosas trabalhem para nós. Os sábios e os filósofos destruindo ideias, que amamos, trabalham para restabelecer a verdade. V. Ex.ª percebe muito bem que não há sábio, não há escola e que não há igreja que conheça a verdade inteira, porque esta somente se descobre a pouco e pouco. Que importa a V. Ex.ª saber a minha religião? Não é pelas crenças que devemos apreciar os homens; mas sim pela religiosidade do cumprimento dos seus deveres sociais e profissionais. V. Ex.ª não sabe, mas eu explico: há uma maneira única de provar se as nossas crenças são sinceras – é procedermos em conformidade com elas. Há muitos homens e padres (!) que se dizem cristãos e católicos e que praticam todas as formalidades do culto, mas são injustos, odientos, maldizentes, não são caritativos, e exploram o próximo! É sincera a sua crença? Esta, nada prova. Os atos, é que têm significações. Que predicados, morais, encontra V. Ex.ª na maioria dos homens? A hipocrisia e o embuste. E porquê? Porque não receberam uma educação moral e espiritual. Nenhuma doutrina a respeito de Deus, da origem do mundo, da origem e destino do homem, é aceite por todos os que pensamos. A este respeito só podemos fazer suposições. Temos três grandes religiões seguidas pela imensa maioria dos homens: o budismo, o cristianismo e o maometismo. Os princípios e os fins são os mesmos; os meios são diferentes, e os dogmas destas religiões estão em desacordo. Os próprios cristãos dividem-se em protestantes, católicos, ortodoxos, etc. Os crentes de cada um destes grupos hesitam naquilo que devem acreditar. Isto prova que ninguém conhece a verdade. Por esta razão é insensato e criminoso perseguir aqueles que não partilham das nossas crenças. Quem melhor conhecerá do que V. Ex.ª que os homens primitivos foram extraordinariamente ignorantes? E que o progresso se tem realizado durante milhares de anos? Os livros que os sábios de outros tempos escreveram estão cheios de erros e de preconceitos. Nenhuma verdade eles podem conter sobre o que quer que seja, porque os antigos, em relação a nós, eram verdadeiras crianças ignorantes. A marcha do progresso foi extraordinariamente lenta devido aos homens impulsivos, orgulhosos e violentos. Os impulsivos não atendiam aos factos, detestavam as investigações difíceis e fatigava-os as observações minuciosas. Os orgulhosos não empregavam a sua inteligência na descoberta das verdades mais modestas. Preferiam, a estas, as crenças arquitetadas, ao acaso, sem o menor exame, que lhe davam a ilusão de conhecerem, pormenorizadamente, a criação do mundo e a do homem. Os violentos não admitiam que outros pensassem de maneira diferente da sua, e perseguiam os espíritos livres. Estes homens, em todos os tempos, têm reprimido e sufocado as inteligências livres e corajosas, sendo estas que libertaram a humanidade da opressão do mundo material, das sobrevivências e de todas as escravidões. As perseguições estúpidas retardaram, por muitos séculos, o progresso. Ainda hoje viveríamos numa época de trevas se não fosse o trabalho dos homens modestos e meditativos que tentaram ver claro na cerração dos preconceitos e das crenças irrefletidas. Entre estes beneméritos, a quem a humanidade deve todos os seus progressos, podemos relembrar Galileu, o qual descobriu que a Terra girava em volta do sol. E que fizeram os orgulhosos ignorantes, de o seu tempo? Condenaram-no à prisão perpétua. Depois a inquisição obrigou-o, ou tentou obriga-lo, a abjurar esta verdade conhecida por todos, metendo-o numa caldeira de azeite a ferver. Ainda assim, ele morreu dizendo: - É a Terra que gira em volta do sol e não este em volta daquela! Depois, esta confirmação não seria uma grande lição para os intolerantes? Ainda hoje os homens continuam a ser estúpidos e maus para os espíritos investigadores, como prova o assassinato de Ferrer a quem a Espanha, atualmente, está fazendo justiça. Esta minha carta não é, de maneira alguma, a resposta à de V. Ex.ª. Quando lhe responder há de ficar convencido de que V. Ex.ª nenhuma diferença faz, ou fazemos, de qualquer animal, a não ser na razão e no grau de inteligência. Não se despreze, pois, de considerar seu, ou nosso, irmão espiritual o sapo, muito mais útil aos homens do que alguns membros de certa classe. É para lamentar que V. Ex.ª seja um escravo de preconceitos, de hábitos, de tradições e superstições, e revele uma mentalidade atrasada de conhecimentos científico-naturais. V. Ex.ª desculpe-me, mas eu não sei quem é o senhor Atanásio. Desvende-se, primeiramente. Se for padre, conte com a resposta. Eu farei luz e esclarecerei o povo que me ler, embora perca a amizade do clero meu conhecido e amigo. Se não é padre, deixe-me na má-língua com o reverendo “Amigo”, e um tal “Particular”, que também ainda não conheço. E V. Ex.ª para passar o tempo faça uma visita a Cambresse, jante bem e vá fazendo a digestão, cantando o “queremos Deus que seu é rei.» 

 “Atanásio” responde. Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 20, de 7/7/1929: «Ora bolas! Só ontem, 27/6/1929, é que pessoa amiga me fez chegar à mão, num recorte do Notícias de Melgaço, a resposta do ilustre professor de Paderne à minha carta. Não me surpreendeu o teor dessa resposta: uma parangona em estilo de regateira, sem lealdade, sem sentido, e sem coerência – uma autêntica meada de frases, por vezes sem contradição, uma amálgama de divagações confusas e difusas, e de afirmações de caráter histórico [retintamente] falsas. É o que se (…) afinal, dar às de vila diogo. Em certa altura, talvez por lamentável descuido, julgando-se empoleirado na sua cátedra de lente da instrução primária, discursando perante um auditório de estudantes [dos primeiros anos] do ABC (pobres crianças que se veem forçadas a acreditar em tudo quanto lhes querem impingir) [entende] fazer uma preleção complicada sobre religiões, sobre o grau de verdade de cada uma e sobre malogradas tentativas de filósofos dos tempos pré-históricos, dos tempos de intolerância, dos tempos novos e dos novíssimos, na pesquisa da verdade. Pobres cavaleiros da Tábula Redonda que não lograram conquistar a célebre taça! Pobres argonautas [o que padeceram para darem] com o paradeiro do Velo de Oiro! // Verá que não é bem assim, senhor professor. A verdade religiosa só a não descobre quem, como o jacobino Paulo Janet (*), prefere a liberdade do erro à escravidão da verdade. Senhor professor, V.Ex.ª fugiu à questão. Estamos pois desentendidos. Esta é a primeira vez e última vez que lhe respondo. Para o futuro farei de conta que V.Ex.ª nem no número dos possíveis é contado. Terei diante de mim tão-somente os seus erros e é com estes – só com estes – que eu quero “conversar”. Então usarei de um estilo mais suave e mais ameno, por isso, mais didático. Foi com grande surpresa minha que no número do Notícias de Melgaço em que veio publicada a minha carta, vi, e li com agrado sempre crescente um artigo, assinado por Vaz de Castro, sobre a inquisição – que tantos arrepios lhe causa. Ainda bem que esse ilustre articulista, cuja erudição e são raciocínio tanto admiro como V.Ex.ª também admirou (e nisto, só nisto, estamos de acordo), tomou a iniciativa de esclarecer essa questão. Vá, pois, apreciando esses artigos tão judiciosos, e tão cheios de verdade, de Vaz de Castro, e, quando a força esmagadora de seus argumentos lhe causar indigestão ou pesadelo, poderá ler também um ou outro artigo de Atanásio, para desfastio. Como o tempo corre fresco, acho, eu, que basta de aperitivo para hoje. Quanto ao interesse que manifestou em conhecer quem é o senhor Atanásio, tenho só a dizer-lhe que pela minha parte ficará sempre em jejum. Que importa isso para o caso? Porventura julga que os três nomes com que firma os seus artigos dão mais solidez aos princípios que tenta defender, ou mais luz aos argumentos e razões que poderá aduzir? Se assim pensa, engana-se redondamente. Deixe-se de nominalismos e tratemos de realidades cujo conhecimento interesse ao público. Apresente V.Ex.ª suas razões e refute as minhas. É o caso. Quer saber quem é Atanásio? Perdoe-me o glorioso santo e eminente sábio que nos princípios da Igreja reduziu a pó a heresia ariana e cujo nome está vinculado à história como o protótipo da tenacidade e firmeza de caráter que para o não macular tantas vezes sofreu o exílio. Perdoe-me, pois, o grande santo Atanásio por lhe usurpar o venerando nome. É, que, também tentarei ser o martelo de seus preconceitos. Entendeu, senhor professor? Para terminar, devo dizer-lhe que foi muito infeliz com o remate de seu artigo. Não sabia que na mesma estrofe desse entusiástico hino, se canta também: “zombam da fé” os insensatos. Até qualquer dia.» // Viana do Castelo, 28/6/1929. Atanásio. /// (*) Pierre Janet (neurólogo e psicólogo francês – 1859-1947). // Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 21, de 14/7/1929: «AVISO – Para não passar a deixar de trilhar a senda que desejamos, e por motivos muito especiais, damos por terminada a polémica suscitada pelo senhor professor de Paderne. Não manifestamos o nosso juízo sobre a polémica, nem com isso queremos melindrar os polemistas, mas “prius vivere quam philosophare”. 


    Essas polémicas tiveram consequências. Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 25, de 11/8/1929: «No dia 4, no lugar dos Ferreiros, freguesia de Paderne, o professor desta freguesia envolveu-se em desordem com o senhor António Xavier de Figueiredo e Castro, havendo - entre os dois - cena de pugilato; e se não fossem várias pessoas que apareceram no local teria graves consequências. O caso está afeto à administração do concelho para investigar sobre o assunto.» 


 Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 121, de 16/8/1931: «A um correspondente de Melgaço do “Diário do Minho”. Descreveram-no. Estudemo-lo. Não deve vestir à homem, (nem à mulher)... Não deve ser copa de árvore onde os passarinhos possam fazer ninho. E outrossim, não é arbusto, cuja fresca sombra delicie amor de noivos. Quem será, então? Alguma besta? Não compreendemos a descrição – que nos fizeram – deste filho sem pai, que desejamos descobrir. Porém, deve ser algum animal estúrdio que usa coleira, para o diferençar dos semelhantes, odiado desde os séculos avós. Bruto – com letra minúscula –; estúpido “avasiado” de educação; ignorante e mentiroso de profissão. Animal inqualificável, dotado de toda a inferioridade e de toda a mesquinhez de sentimentos. Fiquemos, hoje, por aqui. Esperemos que o correspondente em referência – para nós, completamente desconhecido – venha dizer-nos quem é, e nos explique a inteligência da frase da sua correspondência, que não percebemos por falta de correção e clareza: “Não obstante a moral um pouco avasiada, do magistério, de Paderne, nada apareceu no programa que podesse melindrar a inocência das criancinhas, o que nos causou alguma surpresa.” Vêm aí as noites grandes. Precisamos de um passatempo. Quem no-lo proporcionará? A ver vamos.» Paderne, 15/8/1931. AJS. Diretor das escolas do sexo masculino de Paderne


 A 23/10/1932 foi publicada no Notícias de Melgaço n.º 170 uma carta escrita por si ao administrador do concelho (ver Notícias de Melgaço n.º 180, de 22/1/1933). // Em 1933 transferiram-no para a Vila de Monção (Notícias de Melgaço n.º 302, de 22/10/1933). // continua...

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