sábado, 17 de setembro de 2022

MELGAÇO: PADRES, MONGES E FRADES

Por Joaquim A. Rocha


// continuação de 30/07/2022

 

DOMINGUES, Manuel José (Padre). // A 4/7/1831, na igreja de Paderne, foi padrinho de Isabel Maria, nascida dois dias antes, filha de Manuel Lourenço Lamego e de Ana Joaquina Pereira Bacelar, lavradores. // A 9/2/1836, na igreja do mosteiro de Paderne, foi padrinho de Maria Apolónia, nascida no dia anterior, filha de Manuel Lourenço e de Maria Joaquina Pereira Bacelar. // A 16/2/1838, na igreja do mosteiro de Paderne, foi padrinho de Maria de Jesus, nascida dois dias antes, filha de Manuel Gonçalves e de Rosa Joaquina Domingues. // A 14/5/1838, na igreja de Paderne, foi padrinho de Teresa de Jesus, nascida dois dias antes, filha de Manuel Lourenço e de Maria Joaquina Pereira. // A 30/1/1839 morreu o famoso “Tomás das Quingostas”; foi este padre que redigiu o seu assento de óbito. // No dia 10/3/1840, na igreja de Alvaredo, batizou, e foi padrinho, de Manuel, nascido no lugar do Padreiro, Alvaredo, três dias antes, filho de Manuel Joaquim Mendes e de Rosa Maria Rodrigues. A madrinha era Ana Maria Domingues, ambos os padrinhos do lugar de Longarinha, freguesia de Paderne. // A 3/12/1842, na igreja de São Paio, foi padrinho de Francisco Xavier, nascido dois dias antes, filho de José Joaquim Dias e de Maria do Carmo de Araújo Azevedo. // A 4/2/1849, na igreja de São Paio, foi padrinho de Maria da Anunciação, nascida dois dias antes, filha de José Joaquim Dias e de Maria do Carmo Araújo, moradores no lugar de Soutulho, São Paio de Melgaço. // A 26/3/1851, na igreja de Paderne, foi padrinho de Manuel José Rodrigues, nascido dois dias antes. O sacerdote morava no lugar de Longarinha.    

 

DOMINGUES, Manuel José (Padre). Filho de Jerónimo do Carmo Domingues e de Maria Rosa Vaz, lavradores. Nasceu em Penso por volta de 1836. // A 19/3/1871, na igreja de Penso, foi padrinho de Aparício, nascido nesse dito dia, filho de José Maria Domingues e de Germana Esteves, rurais, moradores no lugar de Bairro Pequeno. // A 29/5/1872, na igreja de Penso, serviu de testemunha no casamento de António Manuel Fernandes com Francisca do Carmo Esteves Cordeiro. // A 1 de Abril de 1873, na igreja de Penso, foi padrinho de Justino, nascido a 31 de Março desse ano, filho de Francisco Manuel Vaz e de Maria José Domingues, rurais, moradores no lugar de Pomar. // A 7/5/1876, na igreja de Penso, foi padrinho de Josefina, nascida nesse dito dia, filha de Francisco Pires e de Maria Joaquina Pires, rurais. // Morreu a 2/11/1893, em sua casa de morada, sita no lugar de Barro (ou Bairro) Pequeno, com todos os sacramentos da igreja católica, com cinquenta e sete anos de idade, sem testamento, e foi sepultado na igreja paroquial. 

 

DOMINGUES, Manuel José (Padre). Filho de João Manuel Domingues e de Maria Rodrigues, ela do lugar de Várzea Travessa e ele do lugar de Covelo, lugar onde moravam. Neto paterno de Manuel Luís Domingues e de Ana Afonso; neto materno de José Bernardo Rodrigues e de Maria Domingues. Nasceu em Castro Laboreiro a 29/1/1875 e foi batizado na igreja no dia seguinte. Padrinhos: José Domingues e sua mulher, Rosa Rodrigues. // Foi pároco de Lordelo, de Cubalhão (1899), de Gondar (Cerveira), e de Remoães. Na Vila de Melgaço esteve de 25/6/1903 (cuja posse foi festejada com girândolas de foguetes) até finais de 1917 (*) Foi-lhe concedida a pensão eclesiástica anual de 300$000 réis (ver Correio de Melgaço n.º 85, de 1/2/1914, e Jornal de Melgaço n.º 1020, de 5/2/1914). // A 10/3/1903, na igreja de Cubalhão, foi padrinho de Recordina Dias, nascida no dia anterior. // A 6/1/1904, na igreja de Cubalhão, foi padrinho de Manuel António, nascido dois dias antes, filho de Manuel José Domingues e de Maria Rodrigues, rurais, moradores no lugar de Cima. // A 16/3/1905, na igreja de Cubalhão, foi padrinho de Armando Tito, nascido dois dias antes, filho de Manuel José Domingues e de Maria Rodrigues, moradores no lugar de Cima. // A 22/8/1906, na igreja de Cubalhão, foi padrinho de Amadeu Rodrigues, nascido três dias antes. // Em 1908 acompanhou José Leite de Vasconcelos a Castro Laboreiro, a fim do grande investigador tomar «algumas notas etnográficas e dialetológicas…» Iam montados em mulas, conduzidas por «duas robustas mocetonas». Seguiram por Fiães. // Nesse ano de 1908 foi vogal substituto da Comissão Administrativa Municipal de Melgaço. // A 30/1/1909, na igreja de Cubalhão, foi padrinho de José Bento, nascido quatro dias antes, filho de Manuel José Domingues e de Maria Rodrigues. // Embora de ideologia monárquico-liberal, aderiu à República em 1910. // Era uma pessoa dinâmica: fundou a Associação Artística Melgacense «pela qual muito se bateu, e que outros não saberiam aguentar.» Fundou, com outros, um Externato, em que alguns alunos foram preparados para os exames dos primeiros anos do Curso Geral dos Liceus. // No jornal (Correio de Melgaço n.º 7, de 21/7/1912), pode ler-se: «Por causa de estarem suspensas as garantias neste concelho foi transferida sine die a festa de São Bento que se celebra no lugar de Várzea Travessa (…), e que prometia este ano, graças ao esforço do juiz da mesma, José Rodrigues, há pouco chegado do Brasil, ser feita com todo o luzimento, estando contratada para a mesma a excelente Música Nova, de Melgaço, e sendo orador sagrado o reverendo Manuel Joaquim Domingues, missionário africano. Pelo mesmo motivo teve pouca concorrência a feira quinzenal (…), havendo poucas transações.» E a seguir: «Tem estado um tempo de verdadeiro inverno, chegando, no domingo passado, a cair neve, o que tem feito muito mal à agricultura.» Estávamos em Julho! // A 11/8/1911, na igreja da vila de Melgaço, foi padrinho de Cândido, nascido oito dias antes, filho de Manuel Maria Afonso e de Clementina Rosa da Lama. // Em 1913, na festa da Assunção de Jesus, realizada na Orada, SMP, provocou uma desordem (ver Correio de Melgaço n.º 48, de 4/5/1913). // A 30/9/1914, na igreja de SMP, foi padrinho de Aldemiro Augusto de Castro, nascido a 22 de Janeiro desse dito ano. // Chegou a fazer parte da Comissão Camarária (Jornal de Melgaço n.º 1237, de 9/3/1919, e “Obras Completas do Dr. Augusto César Esteves”, volume I, tomo I, página 65). // Lê-se no dito Jornal de Melgaço, n.º 1256, de 27/7/1919: «a expensas de alguns devotos, celebra missa na capela da Senhora da Orada, aos domingos e dias santificados, o nosso amigo reverendo abade Manuel José Domingues que, de Sua Excelentíssima Reverendíssima, novamente obteve ordem para celebrar.» // Por razões políticas (e talvez religiosas – veja-se o conflito com o padre Francisco António Gonçalves, pároco de Prado) deixou de exercer o sacerdócio e tornou-se aspirante de Finanças. Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 10, de 28/4/1929: «Sufragando a alma de Albina Ferreira, saudosa mãe dos senhores Gregório Ferreira e José Augusto Ferreira, nossos estimados conterrâneos da praça do Pará, Brasil, rezaram-se três missas no dia 20 do corrente, na igreja matriz desta vila, sendo celebradas pelos reverendos padre Manuel Domingues, abade de Chaviães, padre António Manuel da Cunha, pároco desta Vila de Melgaço, e padre Manuel José Domingues, aspirante de Finanças, às quais assistiram muitas pessoas das relações daqueles nossos amigos e avultado número de pobres, aos quais foram distribuídas esmolas.» // No Notícias de Melgaço n.º 68, de 13/7/1930, lê-se: «para efeitos da redução do quadro do funcionalismo da Direção Geral das Contribuições e Impostos foi transferido para o concelho de Monção (…) o padre Manuel José Domingues, inteligente aspirante de Finanças. Os nossos desejos de pouca aturada permanência no referido concelho e breve regresso ao nosso, onde conta inúmeros amigos». // Tornou-se também um doutrinador.

     No Notícias de Melgaço n.º 113, de 14/6/1931, página 4, surge um artigo dele, com o expressivo título SOCIALISMO. Leia-se então: «É filho primogénito da democracia o socialismo que, segundo Sittré, “subordina as reformas políticas a um plano de reformas sociais”, tendo como variantes o comunismo, o mutualismo, etc., sistemas estes que procuram formar uma nova ordem social, desprezando por completo o individualismo, o eu particular. // Lacordaire distingue três espécies de socialismo: ateu, quase ateu, e socialismo cristão. O 1.º é a negação absoluta do esse (ser) social, pois que pretende a destruição da religião, da família e da propriedade, destruídas as quais está completamente destruída a sociedade, o esse social – o objeto principal da sociedade é um fundamento essencial. Não há sociedade sem sócios, nem membros que a constituam. O 2.º, ou quase ateu, tenta destruir a propriedade sem ligar importância aparentemente à religião e à família, bases da sociedade. É também insubsistente e reprovável. Finalmente o 3.º, ou socialismo cristão, respeita a religião, a família e a propriedade, pretendendo, por meio de associações, propagadas e aperfeiçoadas, elevar o melhor possível o bem-estar da comunidade, ou, antes, da maior parte dos homens que constituem a sociedade. // Assim considerado o socialismo, quem poderá deixar de ser socialista? Socialismo é uma palavra que assombra e espanta muitos espíritos que nele veem um sistema anárquico e só capaz de inverter a sociedade convertendo-a num [caos] desordenado, numa babilónia incompreensível, quando ele pode produzir na mesma sociedade um grau de perfeição a que mais não pode aspirar o homem. Não é uma doutrina que se discuta somente nos antros secretos das sociedades chamadas perigosas (!), discute-se em pleno dia e é doutrina digna de aparecer na imprensa mais importante, nas revistas, nos parlamentos, nas universidades, e até nas ruas e nos clubes. // Aceitando a constituição da família como Deus a constituiu e Jesus Cristo a sublimou, e que é a base fundamental da sociedade, aceitando a religião conforme a Igreja a ensina, tão pura como Jesus Cristo lha entregou, e tratando tão-somente do fim temporal do homem, e sem entraves ao fim do homem para que a Igreja o prepara, o socialismo é aceitável pelas doutrinas de Jesus Cristo e pela sua Igreja. // E não só é aceitável, como é perfeitamente adaptável à vida cristã. // Confessamo-nos incompetentes para procurar essa adaptação; mas ela deve ser objeto de discussões, e os cristãos não devem abandonar esse campo de combate e, antes pelo contrário, escudados com as luzes da Igreja, devem entrar nessa luta e jogar armas com os inimigos da religião, porque têm a seu favor as importantes luzes da revelação. // Esse combate é em terreno alagadiço e por isso o combate tem de entrar nesse terreno com pé firme, mas convicto em que o adversário não pisa melhor terreno e não dispõe de melhores armas. Jesus Cristo só evitava os fariseus quando reconhecia que a luta era inútil ao seu fim; mas defrontou-os sempre que a luta era necessária e útil ao fim que tinha em vista conseguir. // Não quero que se vá combater o socialismo ateu porque hoje, e sempre, ateu pode considerar-se sinónimo de bruto (!). É tão visível, tão palpável a existência de um Deus Criador e Omnipotente, que não tem lugar na sociedade ateu (ateia), a não ser que queira pertencer às classes zoológicas inferiores ao homem. É tão palpável e tão visível a necessidade de uma religião que quem negar tal necessidade pode e deve entrar num hospital de doidos [a fim de] se curar de doenças do cérebro. // Basta, pois, o socialismo cristão, esse sistema que deve discutir-se, procurando aperfeiçoá-lo, aperfeiçoando as associações que o compõem, tornando-as aptas para serem úteis ao homem em toda e qualquer escala social que se encontra, e tudo por meio de uma evolução pouco sensível e o mais suave possível. // Trabalhos comuns, produção comum, consumo comum, produção regulada, despesa também regulada, recompensa equitativa com o trabalho, propriedade do Estado, regulada pelo Estado, e propriedade particular, mas regulada pelo Estado, tudo isto e outras mais reformas que o socialismo entenda fazer ofendem a religião? Ofendem os direitos de cada um? Não. Absolutamente não. // Cada qual recebe segundo os seus merecimentos, e esta é a igualdade bem compreendida. Não se pode compreender que um homem de inferiores qualidades mentais receba e adquira do seu trabalho uma remuneração igual a uma inteligência [melhor] disposta e mais desenvolvida, e que mais produza, e esse homem não se pode queixar de injustiça, de desigualdade, recebendo menos que o seu semelhante, porque de facto produziu menos

     E no Notícias de Melgaço n.º 120, de 9/8/1931, lê-se: «Decorre o tempo próprio para festas populares, as mais simpáticas, as mais atraentes e as únicas que retemperam o espírito do nosso povo, atormentado por tão mau estado e por tão má e triste vida. São estas festas tradicionais que de algum modo aliviam momentaneamente o espírito cansado de tanto lutar e de tanto sofrer, porque fazem lembrar outros tempos mais felizes e a lembrança do passado é alguma coisa da vida presente. Melgaço tem as suas festas tradicionais. Aproxima-se a festa de Nossa Senhora da Pastoriza, cuja branca ermida, simples como uma pomba elegante, como o perfil de uma formosa dama, se eleva num pequeno cerro que domina uma soberba e entusiasmante paisagem que envolve as margens do mimoso rio Minho, que ao longe docemente serpenteia. A essa romaria, pois, ninguém deve faltar, porque ela é nossa e tão-somente nossa, é Senhora que entre nós adquiriu esse título ligado a belas tradições que enlevam o nosso espírito com as recordações do passado e com a esperança de um provir agradável e risonho. É absolutamente preciso que os nossos conterrâneos ausentes sintam profundamente sensações de saudades profundas ao ler no nosso jornal a descrição dessa pequena e humilde festividade que brevemente nos propomos celebrar em honra de Aquela Senhora cuja devoção está radicada profundamente nos corações dos melgacenses. E se algum coração melgacense não pulsa com entusiasmo ao ouvir falar naquela excelsa Senhora, naquele local e naquela festa, esse coração está morto perante Deus e perante os homens. A devoção e a festividade de Nossa Senhora da Pastoriza tem tudo de amor à terra de Melgaço e obriga os melgacenses a concorrer para o seu brilhantismo com a sua presença; bem como obriga os ausentes a dedicarem às mesmas uns momentos de recordação, recordação esta que lhe lembra deliciosos momentos do passado e preciosos sonhos de um feliz futuro. Padre Domingues

    Também no Notícias de Melgaço n.º 121, de 16/81931, se pode ler: «Acordei de manhã, muito cedo, lembrei-me do sonho que tivera durante o repouso noturno e senti-me agradavelmente impressionado; uma grande satisfação enchia todo o meu ser; exultava de alegria. Uma viagem em automóvel a Castro Laboreiro! Numa manhã amena do mês de Julho, o carro a deslizar suavemente, docemente, através da encosta que se sobrepõe à nobre, velha, prática e tradicional vila de Melgaço! Como era agradável sentir aquele suave e alegre canto das aves nos pequenos bosques que revestem essa encosta, como era surpreendente aquela paisagem do vale do Minho salpicado de casas brancas, cortado pelo mesmo rio e além as paisagens galegas não menos formosas, não menos atraentes. Conversava-se, ria-se, e caminhava-se, ouvindo o alegre canto da pastora que apascentava o seu rebanho, do lavrador que rasgava a terra com o arado puxado por possantes e pachorrentos bois até às alturas de Pomares, onde a paisagem sofre uma grande modificação. Aqui deixa-se a sonhadora paisagem do rio Minho com as suas margens revestidas de arvoredo coberto de viçosa folhagem para contemplar um pequeno regato que ousada e atrevidamente, com ímpetos de ferocidade, se precipita entre montanhas ásperas, elevadas, e quase desprovidas de arvoredo, caminhando nesta visão até Lamas de Mouro, atravessando a freguesia de Cubalhão. Chegados aqui, e mais propriamente a Solar de Muros, a paisagem é quase completamente outra. Solar de Muros, uma pequena e estreita garganta entre duas elevações de penedos, sobrepostos irregularmente, é a passagem à entrada para a freguesia de Castro Laboreiro, onde a paisagem perde o caráter do Minho para se aproximar das terras transmontanas. É um planalto extenso, extensíssimo até, cercado de serras elevadas sem variedade de vegetação. Apenas o seu solo é revestido de gestas, urzes, carrascos, e os campos de centeio e batatas. É uma freguesia populosa, mas a população é muito infeliz porque o solo é ingrato à agricultura, já porque o clima é excessivamente frio, já, e talvez principalmente, porque a composição da terra tem como elemento predominante a areia proveniente da fragmentação das rochas. Cheguei finalmente à chamada vila que em outros tempos foi capital do concelho de Castro Laboreiro, depois de caminhar uns bons sete quilómetros da freguesia, calcado por elevadas penedias em cujas bases se veem alguns campos para cultura de centeio e batata, únicos produtos da malfadada terra de Castro Laboreiro. E na vila, então, sofri um desgosto profundo. É a capital da freguesia com a sua igreja paroquial muito mal tratada e vergonhosamente adornada, tendo à sua frente um cura de almas, Petrus in cunetis, nihil in omnibus, a quem os castrejos cognominam “governador do castelo e da praça” quando pretendem propalar urbi et orbi a sua importância pessoal, nobiliárquica e científica, e a quem conhecem pelo simples nome de “bruto”, quando se lembra de prelecionar sobre o Código Civil e as suas posturas paroquiais. É juiz, é regedor, e é não sei que mais, até vê mosquitos na lua e uma tempestade num copo de água. Quando se procedia à retirada acordei e entrei na realidade da vida; isto é, reconheci que só cavalgando por íngremes caminhos, e subindo ásperas montanhas, se poderá conseguir um tal passeio

 

     Lemos no Notícias de Melgaço n.º 123, de 6/9/1931: «Castro Laboreiro é uma freguesia pobríssima do concelho de Melgaço; não é, contudo, pobríssima porque os seus habitantes se poupem a trabalhos os mais custosos e os mais penosos, é pobríssima porque o seu solo é infrutífero e incultivável. Nada há que ali se possa desenvolver - nem as árvores florestais. Os seus montes são escarpados e nus de vegetação, vivendo com dificuldade o próprio carvalho que pobremente os reveste. Existem pontos no solo português mais elevados, mais frios; mas não existem com elementos tão pobres como o terreno de Castro Laboreiro. Aquele povo glorioso, profundamente económico, nasce na miséria, vive na miséria, e morre na miséria, e os poderes públicos parecem comprazer-se em os ver sofrer os maiores trabalhos e as maiores dificuldades da vida. Não queremos referir-nos aos senhores da atual situação, nem aos das situações anteriores, como não queremos referir-nos à república ou à monarquia; mas sim a todos, porque todos têm a mesma culpa, todos têm manifestado por Castro Laboreiro o mesmo abandono e a mesma culpa pela sua pobreza, pelo seu analfabetismo e, finalmente, pela sua infelicidade. Ainda ninguém levantou uma voz que se fizesse ouvir nas altas regiões do Estado; somente um, ou outro, gemido, quase apagado, costuma aparecer em público nas humildes colunas deste semanário, e somente de tempos, a tempos. Que triste situação é ser habitante de Castro Laboreiro! Os seus habitantes têm de abandonar o seu solo para irem a longínquas terras ganhar o pão quotidiano para poderem viver e os seus, e isto continuamente e sempre. Não se emigra para saciar o desejo do ouro ou da riqueza; emigra-se por necessidade de ganhar o pão quotidiano, e emigra-se desde os doze aos vinte anos, e emigra-se todos os anos e todos os meses, podendo somente descansar um ou dois meses cada ano. É uma vida verdadeiramente insuportável, e o que ainda é mais triste, e penoso, é o isolamento a que o habitante de Castro Laboreiro está condenado. A única estrada que lhe fica mais próxima (20 km) é a Estrada Nacional n.º 1, que passa pela vila de Melgaço [e vai até] à fronteira. Esta freguesia é servida por caminhos velhos, destruídos, e verdadeiramente intransitáveis; e, contudo, o movimento desses caminhos é grande, porque a freguesia é muito populosa e importa todos os géneros de consumo de primeira necessidade, desde o pão e o vinho até à própria fruta. Em Castro Laboreiro não há uma única árvore frutífera, não há hortaliça, não há pão, não há vinho, e tudo isto que lá se consome é transportado à distância de 20 km, por caminhos aspérrimos, às costas humanas ou ao dorso da mula. E esta situação não encontrará um ser humano que a lastime e nas regiões do poder não haverá um ser humanitário que queira remediar tão grande mal, tão deplorável situação?! Uma estrada para Castro Laboreiro minorava de alguma forma a lastimável situação do seu habitante pelas seguintes razões:    

 

1.ª – Fornecia-lhe trabalho para na sua terra ganhar o pão quotidiano;

2.ª - Facilitava-lhe a condução dos géneros de 1.ª necessidade;

3.ª – Como belo ponto de turismo, facilitava a visita de quem se entrega a esse desporto;

4.ª – Pela convivência, tornava o castrejo mais sociável, abrindo-lhe horizontes mais largos para exercer a sua atividade intelectual;

5.ª – Não só era útil a Castro Laboreiro, como o era às freguesias de Lamas de Mouro, Cubalhão, Cousso, Paderne e São Paio, que corta quase em meio, sendo também útil às freguesias de Parada e Gave, das quais muito se aproxima;

6.ª – E principalmente [beneficiava] a capital do concelho, a vila de Melgaço, porque a tornava ponto forçado de passagem dos povos galegos de além de Castro Laboreiro a comunicar com o comboio que sobe a margem direita do rio Minho, ou com o nosso, que parece estacar eternamente em Monção. Indiretamente favorecia as nossas praias e termas, cuja comunicação era mais fácil aos referidos povos galegos do que as suas.

     Muitas mais utilidades se poderiam apresentar; mas isto será chover no molhado, como diz o ditado popular

  

     No Notícias de Melgaço n.º 124, de 13/9/1931, pode-se ler: «Terminamos o artigo anterior sobre este assunto com a transcrição do ditado popular (…) chover no molhado e temos a certeza moral de que mais uma vez terá este ditado a plena confirmação, contudo isso não obsta a que uma e muitas vezes tratemos a necessidade absoluta da referida estrada, e dizemos necessidade absoluta pois cremos que em todo o nosso Portugal não há outra que se possa antecipar a esta. Realmente não pode admitir-se que uma freguesia com aproximadamente 4.000 habitantes (!) que povoam uma superfície de terreno talvez superior a 300 km2 (!)* esteja desligada de todo o convívio social por falta de uma estrada! Não pode admitir-se que nestes tempos que vão decorrendo se submeta à escravidão um tal número de viventes humanos e não se faça algum esforço para minorar a infelicidade daquela pobre e humilde gente. Os poderes públicos fariam uma grande obra humanitária se procurassem amenizar um pouco aquele triste viver quase selvagem dos habitantes de Castro. Como? Haja boa vontade e Castro produzirá para a atual população e para o dobro da mesma população. Dediquem-lhe alguma atenção e o progresso será um facto em poucos anos. (…) Procure-se fazer um exame minucioso à composição química do seu solo nos diversos pontos da sua superfície, estude-se a temperatura nas quatro estações do ano, e assim preparados com estes elementos povoem-se os montados com arvoredos próprios daquele clima e da composição do terreno e Castro fornecerá enorme quantidade de madeiras que hoje têm grande valor. Procure-se também adaptar-lhe cereais próprios dos mesmos terrenos e climas e ensine-se aos habitantes o cultivo dos mesmos e teremos mais do que o necessário para a vida dos seus habitantes. / Forneçam-lhe as primeiras sementes e obriguem-se os proprietários dos terrenos a fazer o cultivo conforme lhes for ordenado e eles mais tarde agradecerão os benefícios prestados pelo bom resultado que usufruirão dos seus trabalhos. / Somos de opinião, e pela experiência sabemos, que em Castro pode haver magnífica produção de trigo, centeio, milho e muitos e variados frutos, e até algum vinho. E que quantidade de gados ali se podem criar se as ervas bravas que povoam o solo forem substituídas pouco a pouco por outras pastagens mais suaves, mais agradáveis ao paladar e sobretudo mais nutritivas. / Coadjuvem os poderes públicos aquela pobre gente no amanho do seu solo, dirijam-nos no processo de cultivo, façam-lhe uma estrada, e terão a consolação de um dever cumprido. / Continuando neste estado em que se tem encontrado há centenas de anos, o habitante de Castro não pode ter dedicação pela sua pátria, que o considera um filho espúrio, nem interesse pelo poder, que o considera de facto um verdadeiro escravo, um verdadeiro ente desprezível. / Sabemos que estas palavras não alteram o procedimento dos poderes constituídos e por isso continuamos a lastimar a situação dos habitantes de Castro e aconselhamos-lhes que vão amenizando a sua triste vida ouvindo e apreciando as asneiras do seu cura de almas, entidade com que a Providência parece também querer castigá-los, de mãos dadas com os homens que mandam na Terra. / Entretanto aproveitem o seu cura na caça aos lobos, que bastante prejuízo lhes causa nos rebanhos; já que outra utilidade não tem, [poderá ao menos substituir] os antigos guardas do rebanho, que se defrontavam peito a peito com tais feras, e se quiserem podem também aproveitá-lo para delatar para as altas esferas as mentiras que o armazém do seu duro crânio procura inventar» (Notícias de Melgaço n.º 124, de 13/9/1931). /// (*) – Trata-se de um exagero; Castro Laboreiro tinha mais ou menos duas mil pessoas e a sua área é cerca de 90 km2.

 

     O padre Domingues não desarma: «não é preciso provar a necessidade e a utilidade da estrada a construir … partindo da sede do concelho. Esta necessidade absoluta e esta grande utilidade ressaltam à vista do 1.º exame que se faça à planta topográfica de Melgaço, exame este que está ao alcance de todas as vistas. A não construção desta estrada representa (…) uma desumanidade, um desprezo pelos contribuintes de Castro e de várias outras freguesias beneficiadas pela mesma estrada. / Sabemos que a humilde voz deste (…) semanário não faz eco, onde não devia chegar o eco, mas sim a realidade. / Apelamos (…) para os nossos colegas na labuta da imprensa, principalmente para aqueles que têm o condão de ser ouvidos, a fim de que coadjuvem este humilde colega e façam chegar esta desumanidade onde deve chegar, estando certos de que prestam um relevantíssimo serviço, até de caridade, àquela fração da humanidade que tem a desdita de viver em tão inóspitos e escabrosos montes, como são os de Castro. / Este caso merece a visita dum repórter dos grandes diários, que receberão dali abundante e interessante assunto para os seus leitores. / Este assunto merece uma pena a deslizar sobre o papel, guiada por um desses jornalistas práticos que demoram mais em escrever do que em conceber as ideias. E a que série de artigos não dá lugar a referida estrada, não só pelo seu trajeto como ainda pelo figurado típico com que lá se vai defrontar. / Ainda lá lhe aparece o “Tio Forças” do século passado, escrivão do juiz daquela comarca, incarnando num solitário presbítero, que habitualmente aparece aos visitantes para lhes prestar informações e arrumar … as malas; aparece-lhe o antigo vestir daquele povo, representando um figurino criado pela necessidade de resistir àquele aspérrimo clima; aparece-lhe um dialeto, mistura de português arcaico e galego; aparece-lhe um arvoredo diferente de outras regiões, embora frias e montanhosas; aparece-lhe o velho castelo, com as suas lendas tradicionais; aparecem-lhe as antigas estradas romanas e as pontes de construção antiquíssima, e ainda lhe aparecem rudimentos de arte e objetos culinários de origem antiquíssima. / Toda a freguesia e cada uma das suas localidades são dignas de visitar, porque todas elas concorrem com elementos para uma leitura amena e agradável digna de qualquer publicação – até de revistas. / E que belas paisagens para cinema! As fitas estrangeiras inundam os nossos cinemas e contudo nós temos localidades e paisagens (atos) entre nós que talvez despertassem mais o interesse público. Em Castro pode-se coligir vasto assunto para tal fim. / São interessantes os serões, os descantes, os bailados, as orquestras, as feiras, os acompanhamentos de cadáveres à última morada, com seu padre à frente, bem digno de aproveitar-se pela sua apresentação patriarcal com misturas de papelão, etc. / Amadores e profissionais da imprensa, ajudai-nos, cooperai connosco nesta obra de caridade e recebereis a recompensa dum dever cumprido…» (NM 128, de 25/10/1931).

 

     Lê-se ainda no Notícias de Melgaço n.º 128, de 25/10/1931: «Este semanário não é anticatólico, não é contra as doutrinas da Igreja, doutrinas que respeita e observa. Alguns artigos ferem a nota de liberalismo, mas os seus autores estão prontos a emendar o erro - desde o momento, em que sejam convencidos de que versam nele. Que dúvida, pois, podem ter todos uns e outros de cooperar, discutindo em termos hábeis e dignos de se apresentar aos leitores, nesta publicação, onde todos cabemos, e onde não precisamos de nos ofender com insultos. É no mesmo campo de batalha que se ganha, ou perde, a vitória. A devolução de um jornal nunca representou um desforço, somente pode representar uma economia que acusa falta de amor à terra onde se publica, falta de interesse pelas coisas públicas da mesma localidade. Seria muito preferível melhorá-lo, moralizá-lo, torna-lo interessante e agradável para se insinuar no público e merecer autoridade. Haja, por conseguinte, um esforço que domine o génio da vingança, haja um esforço que domine essas paixões dominantes, mas filhas de outra mais dominante: a vaidade; unamos forças para engrandecer o nosso semanário e torná-lo digno de ser lido, de ser acreditado, e de ser respeitada a sua opinião. De outra forma concorremos para a destruição das pequenas coisas da nossa terra e terminamos por a tornar uma aldeia sensaborona e desinteressante a nós e aos visitantes. Melgaço, se já não tem, pode e deve ter elementos que o tornem interessante e mais [apetecível] do que qualquer outra vila do seu distrito. Dirão que isto é uma loucura; mas eu insisto na afirmativa, sem ser teimoso. Construa-se a estrada de Castro Laboreiro, ligue-se ao Gerês e Peneda, melhore-se a estância das águas do Peso, ligue-se a estrada de São Gregório à Galiza, e terão em Melgaço um centro de turismo digno de ser invejado pelas grandes estâncias. Tudo isto não é um impossível, nem demanda muitos anos, não exige muitas despesas. A situação topográfica de Melgaço, parecendo à primeira vista que não tem importância, ela é, contudo, o fundamento da sua maior beleza e da sua futura maior grandeza. Os seus montados sem explorar, parece que têm em si alguns minérios de bastante interesse. Percorram-se e estudem-se, amem-se e explorem-se, e – segundo pequenas informações – darão abundante resultado prático aos industriais

               

     O padre Domingues era imensamente persistente. Fustiga, sem tréguas, os poderes públicos, para que deem início às obras. Porém, o ministro das Finanças, Dr. Salazar, não abria os cordões à bolsa: «Esta estrada pode, deve, e é absolutamente necessário construir-se. O contrário significa um crime moral, um crime social. Qual é a obrigação moral e social do Estado? A principal missão do Estado (excluindo toda e qualquer situação política e até de regímen) é dirigir e auxiliar a sociedade para a realização do seu fim natural e, sendo esse fim natural a prosperidade temporal pública, daí segue que o Estado tem obrigação de favorecer o desenvolvimento da vida social e vir em auxílio dos interesses gerais dos cidadãos. / O contrário disto é um crime social e o Estado pode ser um criminoso, como o pode ser um indivíduo particular. / O Estado tem as suas normas de moralidade, das quais deve ser um escravo, e a violação dessas normas é um crime que deve ser e é condenado pela opinião pública, que nunca perdoa sem uma satisfação condigna. / Ora a estrada de Castro é um bem público, não é um benefício só para Castro, é uma necessidade social; é um crime deixar de a construir, é um crime que estigmatiza a Monarquia e a República, os republicanos passados, os presentes e os futuros, se não emendarem o erro, se não expurgarem o crime. Será tempo de expiar este crime? Sim. Creio positivamente que será tempo de expiar a culpa passada, atendendo ao adágio popular: «vale mais tarde do que nunca». Em todo o caso já há lugar a pedir àqueles infelizes (…) perdão, do desprezo a que até agora têm sido votados… E eles são excessivamente generosos para perdoar e ainda agradecer a consideração que agora os mesmos poderes públicos tenham por eles. / Mas será proximamente um facto positivo e concreto a construção dessa estrada? Assim o creio, e nenhuma razão me pode demover desta crença (…) porque a atual situação política não procurará agradar a este ou àquele vulto político, a esta ou àquela fação política, caminha, e caminha sem tropeços, sem embargos, sem dar ouvidos a conveniências partidárias, tendo em vista o bem público e só o bem público. / Avante, pois, faça-se a estrada referida e será louvada a justiça distributiva da atual situação política. / Não queremos dizer com estas palavras que pertençamos a esta fação política, queremos somente aproveitar o que ela pode ter de útil e não deixaremos de louvar quem tenha direito a isso, porque os castrejos são sobretudo gratos e respeitadores de quem tem jus à gratidão e ao respeito.» (Notícias de Melgaço n.º 130, de 15/11/1931).

 

     O padre Domingues parece querer despedir-se: «Imos deixar este assunto para voltar a ele mais tarde, pois é possível que ele mereça as atenções dos poderes públicos e que num período não muito longe comece a realizar-se o início da obra tão necessária. Temos alguma confiança no progresso deste pobre Portugal que tem andado à mercê das furiosas ondas da sociedade perdida; isto é, parece que a sua capa velhinha e rota começa a ter conserto. Assim seja. Pertença a quem pertencer a glória, contanto que seja português… / Começam a aparecer os factos reais e positivos que iluminam o horizonte até agora carregado de grossas nuvens. Não temos opiniões políticas, não nos pesa esta ou aquela individualidade política, este ou aquele programa mais ou menos sonante, mesmo este ou aquele regímen e só os factos nos convencem e persuadem. Os factos são os únicos argumentos que nos persuadem e que nos levam a defender os sistemas e as opiniões das diversas fações políticas. Queremos dizer que, dentro do mesmo sistema, e até dentro da mesma opinião, existe o bem e o mal, e por isso concluímos que se deve aproveitar o bem, venha de onde vier. [O vigor] (*) de um sistema governativo, de uma opinião política, ou de uma fação, depende somente da boa intenção do seu dirigente, ou dirigentes. / Tem boa intenção, apresenta novidades salvadoras, começa a praticá-las e cumpri-las, merece a confiança pelas suas aptidões, e deve ser apoiado até prova em contrário. / [Se] talhou por má-fé, deve ser execrado e exposto à opinião pública. / Vamos à estrada de Castro: continuamos a ser ludibriados, torpemente enganados; concluamos que são nulidades que não sabem quem são e para onde vão. / Cumpram um dever, moral e social, construindo a referida estrada, tem fins honestos e dignos, são os homens da situação. (NM 131, de 22/11/1931). /// (*) No texto: «A vigorização». // Em Janeiro, ou Fevereiro de 1933, a estrada de Castro Laboreiro foi finalmente iniciada!

 

     Publicou no Notícias de Melgaço n.º 132, de 6/12/1931: «Entramos no inverno, época do ano em que a natureza perde os seus encantos e o homem recolhe com mais regularidade à sua família, à sua casa, promovendo festas mais familiares, talvez mais encantadoras. As chuvas torrenciais cairão sobre a terra e a inundarão, preparando-a para a sua fertilidade ser mais pujante na primavera. Repete-se a cena muitas vezes secular, a que o esforço, a inteligência e todo o saber humano não pode pôr um dique, nem alterar uma vírgula. O homem quer explicar este fenómeno tantas vezes repetido, tantas vezes discutido, e tantas vezes experimentado, e no fim da explicação, mais ou menos nervosa, mais ou menos revestida de palavras entusiastas e entusiasmadoras, nada diz, nada explica, nada sabe, nada conclui sem recorrer a uma causa primária de tudo quanto vê e quanto ouve. Quantas vezes, quem entrar neste assunto, tantas vezes [vai] manifestar a sua inferioridade intelectual e a sua incompetência. Um analfabeto sobre este assunto produz tanto como qualquer espírito ilustrado, porque a inteligência pode conhecer, mas não pode compreender esta série de fenómenos naturais tantas vezes vistos e tantas vezes experimentados. A Igreja não proíbe ao homem o estudo da natureza e, pelo contrário, deseja que a estude, que profunde em esse trabalho; mas quer que pelo seu trabalho chegue a um resultado útil ao bem-estar social, ao progresso, à utilidade prática da vida, e não à ousadia e atrevimento de pretender desafiar o Autor da mesma natureza. Isto é simplesmente uma loucura que as inteligências bem formadas desprezam. Pode dizer-se que se compreende um fenómeno quando reproduzir outro igual. Ora o homem não pode produzir um inverno com as suas chuvas, com suas neves, com as suas tempestades, etc. Logo, não compreende esta lúgubre estação, esta variação regular e normal da natureza que acusa bem claramente ao espírito menos lúcido a existência de um poder e sapiência superior à do homem. Qual o recurso do mesmo homem quando assim se note manietado, preso, encurralado na sua infância? O recurso é sofrer o frio, aquecer-se, agasalhar-se, estar preso em casa quando chove ou neva, e engrandecer e louvar o Poder Criador. Ao mesmo tempo, nas horas vagas, deve-se ir preparando as febras dos animais suínos, o polvo, o bacalhau, e alguns cozinhados que a mão hábil de uma cozinheira saiba apresentar sobre a mesa para amenizar um pouco aquelas horas fastidiosas. Ainda que custe ao homem, é este o único meio de suportar a inclemência do temporal com que o inverno nos vai fustigar. Hoje, pois, juízo, muita paciência e conformação com a vontade de Deus para aliviar um pouco o sofrimento que o inverno nos vai impor.» // Comentário: é curioso como o padre Domingues, em poucas palavras, resume o viver simples do ser humano. Suportar os poucos anos de vida que – segundo esta doutrina – o deus criador nos concede, agradecendo-lhe, não colocando em causa o seu poder, a sua divindade. Perante esse ser divino o humano ajoelha, obedece, cumpre as ordens do Senhor. Enfim, teorias balofas e perecíveis. É verdade que não é fácil explicar o nascimento do universo, tudo que o compõem; não é. A vida, a repetição de fenómenos, ou não, tudo nos causa admiração e respeito, mas daí partir para uma teoria com pés de barro é, quanto a mim, abusivo. De acordo com estudos científicos, quando o ser humano surgiu no planeta terra já o universo existia há milhares de milhões de anos. Logo, tudo o que surge nos livros sagrados foi escrito pelo homem, sem quaisquer interferências divinas, extraterrestres... A prova-lo, estão os imensos erros que esses escritos contêm. Paraísos, barca de Noé, Sansão e Dalila, etc., são invenções humanas, cuja imaginação é prodigiosa, fertilíssima. O que há, há; e um dia poderá deixar de haver, porque nada está parado, tudo mexe, tudo se altera, tudo se transforma.  

 

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 162, de 28/8/1932: «Queixou-se-nos o coveiro do cemitério desta Vila de que não lhe foi pago o enterro da criada de um funcionário público residente nas Carvalhiças. Diz ele que a mensalidade que lhe é paga pela Câmara somente é para sepultamento dos indigentes e, portanto, a falecida não estava nessas condições, pois até teve funeral dirigido por uma das agências desta Vila. Disse mais, que fazendo ele sentir à autoridade administrativa esta falta, não lhe foram dadas providências.» // O padre Manuel José Domingues não apreciou nada essa queixa e contra-atacou, publicando no referido jornal:

 

     «Conta corrente de Aurélio de Araújo Azevedo ao padre Manuel José Domingues para o funeral de Maria Angélica Esteves.      

 

Caixão de veludo, etc.                                         260$00

Metro e meio de tule para véu                             22$50

Quatro metros de tule verde                                 4$80

Um carro de algodão                                             1$10

Um par de sapatos                                              45$00

Registo Civil                                                        10$00

Cera                                                                    10$00

Irmandade das Almas                                         92$50

Quatro homens para transportar o caixão          20$00

                                                                          ----------

Recebi de Manuel José Domingues                 469$50

Mais registo de cartas                                          6$20

                                                                         ----------

                                                                         475$70

 

Liquidada – Azevedo.

 

    «Entendemos que o Ex.mo Sr. Aurélio de Araújo Azevedo pagou todas as despesas inerentes a este ato, porque assim lho encarregamos e ele aceitou esta comissão que fielmente cumpriu; contudo se algum gatuno entende que tem direito a qualquer benesse faça a sua reclamação legal e perante o competente tribunal, na convicção de que o signatário só paga quando o respetivo juiz o condenar a pagar. Mais: a falecida deixou com que pagar a quem tem direito a receber; aos ladrões, não paga.» Padre Domingues. // Nota: suponho que Maria Angélica Esteves era criada do padre Domingues.   

              

     No dito jornal Notícias de Melgaço n.º 162, de 28/8/1932, lê-se: «É possível caber neste pequeno torrão um general? É. Melgaço eleva a general o citote da administração do concelho, o augazil (algazu?) da Câmara Municipal, o pregoeiro dos leilões. Esse ente abjeto, representativo do velho carrasco do tempo de D. Pedro, o Cru, (…) surge em Melgaço no século XX incarnado num boneco de vinho e num animal de pontas agudas implantadas no frontal. // Prende tudo e a todos sem ordens ou mandados da respetiva autoridade e quando pode aplicar a sua disciplina fá-lo com o caráter próprio de um odioso e de um alcoólico. E cale-se, aliás dobram-se-lhe as penas, porque a gente é de casa. // É simplesmente singular: há poucos dias uma casa sita nos subúrbios da Vila ficou deserta de moradores pelo falecimento de um deles e pela ausência obrigatória de outro. Alguns entenderam que tinham direito ao pequeno espólio do falecido e do ausente e mais lobos vorazes iam ao local buscar um furo velho ou um farrapo abandonado. // Contudo, o ausente encarregou uma criança de treze anos para vigiar o prédio e a propriedade junta. // Esta criança, quando viu a propriedade inundada de alguns garotos que bem caraterizam seus pais pela educação, encheu-se de coragem e com um vime na mão pôs tudo em debandada. // Logo o referido general, chegou, viu e venceu. Prendeu a criança de treze anos que exerceu um direito que lhe assistia, isto é, a defesa da propriedade de que se encarregara; leva-a presa, inquire, etc., e zás, leva a sua sentença dando dois grandes bolos, enquanto os gatunos se riam e caminhavam livremente. Será justiça, mas nós queremos esperar por ela.» Padre Domingues.     

 

     Foi publicado no Diário do Governo a sua aposentação voluntária (Notícias de Melgaço n.º 201, de 16/7/1933). // Os seus escritos no Notícias de Melgaço davam, quase sempre, que falar. Por exemplo: quando morre Maria Angélica Esteves. Ver também “Um general em Melgaço (Notícias de Melgaço n.º 162, de 28/8/1932). // Morreu na Orada, SMP, a 1/3/1952, realizando-se o funeral no dia 3 do dito mês e ano.

 

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1016, de 9/3/1952: «Na casa da Orada, onde há tempos residia, faleceu no dia 1 do corrente, o senhor padre Manuel José Domingues. Pároco colado na Vila em 1903, paroquiou por longos anos a freguesia de SMP com geral agrado. De ideias liberais, aderiu à República em 1910, e na terra continuou por alguns anos ainda no exercício do seu múnus. A terra deve-lhe a fundação da Associação Artística Melgacense, pela qual muito se bateu, e que outros não saberiam aguentar. Homem também de iniciativa, com outros fundou aqui um externato, em que alguns alunos foram preparados para os exames dos primeiros anos do curso geral dos liceus. O seu funeral realizou-se no dia três, tendo sido muito concorrido. Para pegarem às borlas do féretro organizaram-se vários turnos, dois dos quais constituídos por clérigos. A toda a família enlutada, e especialmente à sua cunhada e a seus sobrinhos, o nosso cartão de condolências

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1021, de 20/4/1952: «A família do padre Manuel José Domingues, na impossibilidade de agradecer particularmente a todas as pessoas que se incorporaram no funeral, bem como aqueles que lhe manifestaram o seu pesar e que assistiram à missa do 7.º dia, fá-lo por este meio, pedindo desculpa por qualquer falta involuntária

     Era tio do professor (e durante um ano presidente da Câmara) Abílio Domingues, entre outros. // Diz-nos o Dr. Augusto César Esteves que ele foi o último abade colado na freguesia de SMP. /// (*) No Jornal de Melgaço n.º 1255, de 20/7/1919, página 2, diz-se que ele era, nessa altura, abade da Vila de Melgaço! Fizeram confusão com o seu mano, padre Manuel Joaquim Domingues// continua...

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