domingo, 7 de junho de 2020

ESCRITOS  SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha






// continuação…


UM VERÃO DIFERENTE

 
 

     Normalmente passo as minhas férias estivais no Algarve, nas águas tépidas, quase africanas, mas sem iodo, nadando no atlântico mestiço, como dentro de piscina longa e sem fundo, rogando pragas aos gatunos e à gente pouco asseada que infestam esses espaços tão belos que a mãe natureza, assaz generosa, dotou, como se de filha única se tratasse.

     Isso é o passado. No ano de 1997, desejando a mudança, fui até à Figueira da Foz. Se a desilusão fosse virtude, eu era o homem mais virtuoso do mundo. Aquela infeliz escolha arrasou o meu bolso e a minha paciência: dia-sim, dia não, o céu surgia escuro, o frio brincava infantilmente com o calor, a luz escoava-se, lenta e fugaz, e as nuvens, ora brancas, ora cinzentas, apareciam e desapareciam, em palco de mágicos, ou como numa qualquer Grã-Bretanha sem estações! O hotel era deveras caro e os restaurantes, com pouca clientela, aproveitavam a ocasião para depenarem os papalvos que, esfomeados, tinham de abarrotar o estômago, para no dia seguinte irem até à praia gastar as energias e os sonhos de todo um ano.

     No ano seguinte, 1998, acontece a Expo. Não posso negar que o evento superou algumas expectativas. Gastou-se dinheiro às mãos-cheias; mas valeu a pena, pois o povo encheu a barriguinha de espetáculos, gozou a fantasia de um carnaval carioca, de uma Ásia em delírio, de uma África pacífica, virtual, de uma arte esmerada e de uma indústria de ponta ao serviço do cidadão e jamais contra ele!

     Este ano de 1999 soube finalmente escolher: Moledo. Não sei se fui eu a influenciar a família mais próxima, ou se me levaram como os deuses levaram Ulisses naqueles tempos em que deuses e humanos trocavam leitos e figuras. Julho, mês dos dias grandes e de abundante claridade, quis colaborar connosco: deu-nos um mar calmo, de águas pouco frias, um ambiente excelente. A habitação não custou os olhos da cara; as refeições, abundantes e saborosas, justificaram o preço. As sereias vieram ao areal e cantaram canções lindas, e os tubarões, talvez bem nutridos, não ousaram atacar-nos! Melgacenses de outrora, e de hoje, gente da minha infância, quarenta longos anos sem uma única palavra, esquecendo quase que existiram, ei-los ali, como saídos do limbo, do vácuo, ao meu lado, lembrando episódios, rindo de cenas armazenadas na memória, como se tudo tivesse acontecido ontem! António José Domingues, médico pediatra no Porto, crianças jogando no monte de Prado, executando as ordens do treinador, o popular Germaninho, ingloriamente afastado deste mundo por estranho acidente, inválido de corpo mas gigante na inteligência e saber. Seu pai (do Dr. António José), Albertino Domingues, espírito puro e democrático, foi a bem dizer o segundo presidente da Câmara Municipal de Melgaço após o 25 de Abril de 1974, depois do Dr. António Durães. A bem dizer, porque não foi eleito, vivia-se então o período revolucionário. As eleições realizaram-se posteriormente. A sua mãe, D. Maria Leonor Ribeiro, parente dos meus parentes, foi amiga da minha falecida mãe, por coincidência com o mesmo nome. A Amélia Monteiro, que me viu nascer ali nas profundezas de Cevide, que brincou comigo e me ensinou certamente os caminhos que levavam a São Gregório e ao mundo, que repartiu comigo rebuçados que seu pai, o único comerciante do lugar, o senhor Mário, lhe dava para ela entreter os dentes e o tempo, que ali sobrava, é sogra do Doutor Manuel António Esteves, professor em Braga, e colaborador de A Voz de Melgaço. Os irmãos dela, António, agricultor, Alzira, proprietária da Pensão Boavista, e Dr. José Armando, professor do Ensino Secundário no Algarve, são agora gente crescida na idade e no prestígio. A filha, Dr.ª Adalgisa Monteiro Coelho, é professora do Secundário. Tudo isto foi maravilhoso, mas como não há bela sem senão, este estio trouxe-me algumas tristezas: a morte do meu tio Domingos, filho de Belchior Herculano da Rocha e de Maria Libânia Alves, ocorrida a 8 de Agosto, uma das minhas preciosas fontes informativas para a feitura do livro «Frágeis Elos», um homem que amou Melgaço como poucos, que só razões do foro económico e financeiro obrigaram a deixar a sua terra; no mesmo mês abandona este mundo a prima afastada, Maria Julieta de Melo, filha de Ilídio Cândido de Melo e de Olímpia dos Anjos Rodrigues, precisamente com a mesma idade – noventa anos! O meu tio nascera a 6/7/1909 e a prima Maria Julieta a 11/7/1909. Nasceram ambos em Julho e faleceram em Agosto! Ainda nesse fatídico mês parte inesperadamente o nosso amigo Mário Secundino Cerdeira, Marcer, relativamente novo, um homem ativo, sempre pronto a ajudar os outros, remexendo em papéis velhos como se fora um académico investigador! Não o era, mas o que sabia – e era muito – oferecia-o magnanimamente ao seu semelhante, sem nada pedir em troca. Bem-haja por tudo aquilo que nos legou e esperemos que jamais seja esquecido, porque o melgacense, de uma maneira geral, tem tendência a olvidar os seus conterrâneos e a favorecer os de “fora”, como se a prata da casa valesse menos do que o ferro, forjado ou não, de outras regiões do país!

     Não fui a Melgaço; não assisti às festas da cultura, à ceia medieval, não ouvi a banda da Guarda Nacional Republicana. Não vi o núcleo museológico da torre de menagem, o centro de estágios do monte de Prado, o pólo industrial de Penso; por isso, calo-me. Para uns é a melhor coisa do mundo, para outros, não presta! Agradar a gregos e troianos foi arte que poucos dominaram ao longo dos séculos. E a arte de criticar também não é fácil, pois os visados por vezes reagem como negros touros enraivecidos, achando que o crítico não tem ciência para julgar a obra em questão. Pior do que tudo isso é o silêncio. Mesmo correndo o risco de ser mal interpretado, deve-se falar e escrever sobre os factos – mas apenas, e só, no caso de ter observado com olhos de ver.

     Não fui à festa, mas nela participei indiretamente! A minha filha, Ana Catarina, ganhou o 2.º prémio, em prosa, dos jogos florais. Ela quis ir recebe-lo, mas as circunstâncias não o permitiram. Vinte e cinco mil escudos. O dinheiro até dava para as viagens e para duas ou três refeições. Pelo que me foi dado saber, os textos, quer em prosa, quer em verso, foram lidos por meia dúzia de pessoas! Continua-se a privilegiar o discurso do erudito, a selecionar o auditório, em detrimento do lúdico, da imaginação, da cultura popular. Perdoem-me, mas isso faz-me lembrar o Onassis – enquanto foi pobre comia erva daninha; mais tarde, já rico, até o caviar enjoava!    

         

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1126, de 1/11/1999.










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