sábado, 11 de abril de 2020




À esquerda: o Cine Pelicano em ruínas.





ERNESTO VIRIATO FERREIRA DA SILVA


Era um homem de ação. Não sendo natural de Melgaço, pois nascera em Braga, pugnava mais pela sua conservação do que alguns que aqui nasceram. E não fingia, era mesmo sincero. O seu casamento com uma melgacense, o nascimento dos filhos, o ter adquirido por compra um solar antigo, conferiram-lhe essa legitimidade. Já outros antes dele fixaram a sua residência nesta linda terra, mas pouco, ou nada, fizeram por ela. É certo que o senhor Hilário Alves Gonçalves, nascido em Monção, criou a Casa do Cinema e do Teatro, que proporcionou a muitos melgacenses verem filmes de alguma qualidade, e também ao senhor Vasco de Almeida exibir as suas peças de teatro, que fizeram rir imensa gente até às lágrimas. // Ferreira da Silva, em finais de 1965, sendo então diretor do jornal “Notícias de Melgaço”, escreveu: «Quem por necessidade tenha de percorrer a rua Direita da nossa vila, dentro das suas vetustas muralhas, no fim da qual se situa o salão do Cine Melgacense (Cine Pelicano), dificilmente se adapta e sofre a irregularidade do seu pavimento, que data dos primórdios da fundação da praça-forte de Melgaço. Foi esta rua aberta na parte central da cintura de muralhas interiores que fechavam e defendiam o acesso ao nosso burgo, onde residiam os seus moradores e ainda moram os habitantes da vila, sob as vistas da altaneira torre de menagem, mais conhecida entre nós por castelo. O seu pavimento é constituído em calçada de granito à portuguesa, como era habitual nas antigas construções, quando os senhorios dos domínios urbanos não optavam, por motivos de ordem económica, pelo lajeado ou lajedo que vemos cobrir as ruas das velhas vilas e cidades de certa importância. A ação destruidora do tempo, sobretudo das chuvas e o movimento dos habitantes e dos seus instrumentos de transporte e respetivos animais de tiro e sela, não só provocaram o desgaste das pedras da calcetaria, mas também compeliram o terreno à cedência ou abaixamento da calçada nos sítios em que a sua estrutura revela fundações mais fracas ou menos cuidadas por deficiência de enchimento ou defeito de constituição da terra que preenche os vazios da rocha onde foi implantada. Desta sorte, a calcetaria apresenta-se irregularíssima, aos altos e baixos, traduzindo-se por formas agudas e arestas vivas e em certos pontos por cotas de desníveis mais próprios do empoçamento de águas do que da utilização pessoal dos transitários. O pavimento assim desnivelado dificulta penosamente a marcha dos peões, ameaça a suspensão dos veículos que por ele transitam, atormenta e magoa os pés dos caminhantes e conspurca de lama, ou de poeira, pessoas, carros e animais, segundo as estações do ano, determinadas pelos equinócios e solstícios de verão e de inverno. Não exageramos afirmando que a rua principal da vila, cognominada de direita, para melhor significar que é torta, onde vive, aglomerada em colmeia, a maioria da população e onde existem edifícios caraterísticos de valor histórico, está pura e simplesmente intransitável. E se deste modo se apresenta a rua principal da vila intra muralhas, as ruas transversais e as que delimitam a parte baixa, à ilharga da nova avenida de circunvalação, talvez secundárias mas onde foram construídos monumentos valiosos, pertença da Misericórdia, nem é bom falar, com os seus pavimentos praticamente destruídos e matizados de autênticas crateras que no inverno exigem embarcações para serem atravessadas. Sabemos bem que a nossa Câmara não está em condições financeiras de remediar, de repente e de uma só vez, os inconvenientes que deixamos apontados. Porém, por etapas de seguidas empreitadas, e com o auxílio das comparticipações do Estado, o problema oferece solução viável fácil e breve. Apreciemos em primeiro plano o caso da espinha dorsal do velho burgo, a chamada Rua Direita ou, com mais propriedade, Rua Torta, que da igreja matriz se prolonga até à porta sul da vila, ostentando uma inscrição vandalicamente deteriorada da reconstrução da muralha, centrada pelo antigo edifício da Domus Municipalis e pela bela Torre de Menagem. Como reparar imediatamente o pavimento desta caraterística artéria, face às possibilidades financeiras do nosso município? Em nossa modesta e desvaliosa opinião, parece-nos que poderia começar-se pelo levantamento da calçada e nivelamento do terreno e, seguidamente, recolocar a mesma calcetaria depois de normalizada a estrutura do pavimento. Realizada esta primeira operação, passados um ou dois anos da regularização, ou seja, o tempo necessário para a consolidação das fundações, e reparados os desnivelamentos verificados, proceder-se-ia à betumenização do pavimento, asfaltando-o, ou alcatroando-o, a fim de estabelecer a necessária coesão da calçada pela aderência dos seus elementos de constituição. A rua ficaria nivelada e o piso suave e duradouro. Os gastos da reconstrução limitar-se-iam, inicialmente ao levantamento da atual calcetaria, ao enchimento do respetivo leito com uma razoável camada de areia e à recolocação das pedras, obedecendo às regras usuais de nivelamento. Decorrido o tempo indispensável à consolidação, o pavimento tornar-se-ia numa placa maciça e indivisível por meio da aplicação do aglomerado aconselhável ou de simples betuminização. Quem ousará afirmar que a nossa Câmara não está em condições de realizar este melhoramento? Nós, não! Outros que o digam, se são capazes…» F.S. //…     
         Foi pena não ter vivido o 25 de Abril de 1974. Morreu na Vila de Melgaço a 4/7/1972, com setenta e oito anos de idade.

Rua Direita - Vila de Melgaço. À esquerda vê-se o Cine Pelicano em ruínas.

Nota: sobre Ferreira da Silva, ver mais em 23/3/2020.

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