terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

MELGAÇO: Padres, Monges e Frades.
 
Por Joaquim A. Rocha


desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues



Introdução

 

     Todas as religiões nascem, vivem, e morrem, tal qual como qualquer ser vivo. A razão principal de isso acontecer, é porque foram forjadas pela espécie humana, que tudo cria e tudo destrói. Acontece que o cristianismo, ao longo de centenas de anos, tem passado por crises tremendas, mas a sua resiliência é forte, e vai sobrevivendo, embora com muitas dificuldades. Hoje, século XXI, esta religião, designada por cristianismo, com mais de dois mil anos de existência, está impressionantemente ramificada. No seu seio coabitam os católicos (franciscanos, dominicanos, carmelitas, jesuítas, etc.), os protestantes, os ortodoxos, os mórmons, testemunhas de Jeová, etc.
     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 13, de 19/5/1929, escrito por um senhor que assina Carlos de Castro: «Perdão, leitores, mas quando vejo certa gentalha avançar orgulhosamente na questão religiosa, sinto umas certas irritações nervosas… Essa canalha só fazia uma linda figura em uma sapataria [oficina de consertos], mas nunca numa questão de tanta dificuldade. Muitos só discutem do que menos sabem. É de ver as asneiras horripilantes proferidas por quem devia ter mais juízo na pobre bolinha…»
     Comentário: esse senhor Carlos de Castro pode ter razão, mas se todos discutissem apenas sobre aquilo que julgam saber, os discursos, as conversas, os famosos serões, reduzir-se-iam a quase nada, pois o domínio de uma ciência, de uma arte, etc., não está na posse de todos. Não é por acaso que uma grande parte dos portugueses fala quase toda a semana de desporto, sobretudo de futebol. Como substituir esse tema? A equipa A ganha? Os adeptos da equipa adversária logo dizem que a equipa de arbitragem os roubou. Em lugar de discutirem futebol poderiam discutir religião. Mas como começar? Vamos pôr em causa o deus dos cristãos? Dos muçulmanos? O deus dos israelitas? Não! Deixá-los estar sossegados. No entanto, os doutores da igreja católica escreveram imensas páginas sobre o assunto. Não eram “gentalha”; eram sábios e santos. Tratam os deuses por tu. Nós, os pigmeus, não devemos falar sobre temas que estão acima do nosso ínfimo saber; o caminho para o conhecimento do divino terá de ser percorrido caminhando sobre o tapete vermelho estendido pelas diversas igrejas. Somente o bispo, o cardeal, o papa, e quejandos, poderão, depois de muito estudo, iniciar a sua longa, ou curta, caminhada para o céu. Os outros, a maioria, irão, depois da sua morte terrestre, para um sítio chamado purgatório, onde esperarão pelo juízo final. Enfim, teorias mais ou menos bem elaboradas, as quais se espalharam por todo o planeta, sobrevivendo a diversas crises ao longo dos séculos, sobretudo a algumas guerras religiosas. ***   
     O tal senhor, Carlos de Castro, continua a especular sobre assuntos religiosos. Leia-se o Notícias de Melgaço n.º 19, de 30/6/1929: «O raiar de uma nova aurora. No estado caótico do labirinto social cruzam-se (e triste é dize-lo) as mais perniciosas ideias. A liberdade, essa estrela rutilante proclamada pelos corifeus da Revolução o astro ídolo é uma utopia, uma quimera… A sociedade atual debate-se, talvez no último arranco para o Cristianismo… Pobre povo! És a eterna criança. Quantas vezes, és levado, a pontapés, por esses bandidos que, criminosamente, se dizem filantropos. Voltaire, o patriarca da incredulidade, dizia: “o povo, é preciso levá-lo a pontapés; e é o que eu faço.” Uma lógica irracional, esses corifeus do ateísmo, atiram para o mundo com essas funestas ideias, que vêm destruir o que há de mais sagrado no organismo social. Quanto há a fazer! Eles, eles mesmo por Voltaire clamam: “Ai de nós se o povo chega a raciocinar.” Rousseau, esse terrível demagogo, diz: “Não olho nenhum dos meus livros sem tremer; em vez de instruir, corrompo; em vez de alimentar, enveneno, mas perde-me a paixão e com todas as minhas belas páginas não passo de um celerado!” Em Portugal, nesta linda varanda da Europa, também houve desses homens, que abalaram a pobre sociedade; mas, numa hora feliz, a quase totalidade morreu nos braços da Religião Católica. Não, não é Renau (!) que fará o elogio fúnebre da Religião Cristã, mas há de ser Cristo o seu panegirista. Admirando esse regresso a Roma e à religião das grandes sumidades mundiais (e é a quase totalidade) que eu quero saudar com milhões de vivos e biliões de mortos a Cristo Rei. – Viva Cristo Rei.» ***    
     A religião, do meu ponto de vista, não é arte, nem ciência; é uma crença, onde a imaginação predomina. Também é um grande negócio, sustentando milhões de seres humanos ao longo dos milénios.    
    A igreja católica já tem muitos séculos de vida, mas no sítio chamado Melgaço deve-se ter instalado, salvo erro, na segunda metade da Idade Média. Lê-se em “As Freguesias do Concelho de Melgaço nas Memórias Paroquiais de 1758”, página 521: «A organização do território em paróquias, um processo iniciado por São Martinho de Dume – século VI – e consolidado por São Frutuoso – século VII – foi decisivo. A rede de igrejas e povoados estabelecida nestes dois séculos teve em conta o legado romano e persistiu até aos séculos XI/XII, até porque a influência islâmica no Alto Minho foi nula…» // Como o país designado Portugal surgiu no século XII, e Melgaço já dele faz parte, será a partir desse século XII que eu incluirei os padres que aí exerceram a sua atividade. No entanto, temos de ter em conta que primeiro surgiram os mosteiros, antes da nacionalidade, mas até esses, o de Fiães e o de Paderne, foram construídos em terrenos pertencentes ao condado portucalense e mais tarde ao termo de Valadares, com o estatuto de coutos, estes com os seus imensos privilégios. Diz-se que os seus abades eram senhores poderosos, com muita autoridade, seja na área da justiça, seja no espiritual. Somente no século XIX, devido a uma grande reforma administrativa, é que essas duas freguesias (Paderne e Fiães) passaram a pertencer ao termo de Melgaço, aumentando o pequeno concelho, de apenas oito freguesias, para dezoito. Quanto ao convento dos franciscanos, dedicado à Senhora da Conceição, sito no lugar das Carvalhiças, SMP, esse foi fundado já no século XVIII, a pedido de alguns melgacenses. Todos eles, os que se encontravam ativos, foram encerrados a 30/5/1834, por um decreto de Joaquim António de Aguiar (conhecido por Mata Frades), assinado pela rainha D. Maria II.
     As freguesias, ao longo dos anos, tiveram de se ir organizando, construíram-se igrejas e capelas, alojamento para os sacerdotes, enfim, criou-se o mínimo de condições para que os religiosos conseguissem sobreviver e trabalhar no seu múnus com alguma dignidade. A côngrua (imposto que, por meio de contribuição ou derrama paroquial, se dava a curas e párocos para viverem, nas freguesias onde não havia os dízimos eclesiásticos) ia dando para o dia-a-dia, mas nas freguesias mais pobres os párocos passavam algumas necessidades, valendo-se quantas vezes do recurso a uma horta, que cultivavam, ou alguém por eles, para compensarem a falta de dinheiro a fim de comprarem certos produtos. É certo que os paroquianos davam aquilo que podiam, mas sendo gente pobre não lhes era possível ajudar mais.
     A maior parte dos sacerdotes até meados do século XX provinham dos meios rurais. Os seus pais desejavam que alguns dos seus rapazes fugissem ao trabalho duro e ingrato da agricultura; com algum esforço, vendendo, se fosse necessário, um campito, lá conseguiam que eles ingressassem no seminário. Ali teriam alimentação, estudavam, e se conseguissem terminar o curso, eram normalmente colocados em uma freguesia como párocos. Aqueles que abandonavam a carreira eclesiástica sempre teriam hipótese de arranjar um emprego em um qualquer ministério do Estado, na banca, nos seguros, etc…
     Lê-se no Diário do Minho de 23/10/2019, na sua folha “Cultura”, escrito pelo padre Silva Araújo: «a primeira vez que entrei no Seminário de Nossa Senhora da Conceição (seminário menor) foi em agosto de 1947, quando fui fazer o exame de admissão. Acompanhou-me um seminarista mais velho, o Francisco Dias de Azevedo, que veio a ser pároco de Balasar. Vivia em Oliveira Santa Maria, arciprestado de Vila Nova de Famalicão, e era irmão de um companheiro de trabalho do meu pai. Daí o meu pai ter-lhe pedido que me preparasse para o referido exame. Diversas vezes fui, a pé, de Gondar a Oliveira Santa Maria, para receber explicações. Aprovado no exame, orientado pelo Francisco Dias de Azevedo, fiz o requerimento para admissão ao Seminário
     Entrou no seminário a 14/10/1947, acompanhado de um atestado do pároco da sua freguesia natal e também um atestado médico. «Éramos 168; neste número incluídos os repetentes, e fomos distribuídos por três turmas.» Candidatos a padre, havia oito do concelho de Melgaço. De Monção, eram doze. Diz-nos ele: «Trouxe comigo uma mala de madeira, que me acompanhou durante toda a vida de seminarista e guardo religiosamente na casa que foi dos meus pais, em Gondar. Tinha ido com meu pai comprá-la a (…) Famalicão, à feira de São Miguel (…) à vinda, já noite, só tivemos transporte até à Santana (…) Viemos a pé para Gondar. O meu pai, com a mala às costas.» Essa mala serviu para ele levar o enxoval. Confessa: «foi custosa a entrada no seminário e a despedida do meu pai; como tinha sido custosa, em casa, a despedida da mãe e das quatro irmãs.» Queixa-se: «Era uma sala frigidíssima, com o chão em cimento, onde não havia tapetes (…), que foi utilizada por muitos de nós como dormitório...» Mais à frente: «recordo-me de uma valente bofetada que me deu o padre Ferreira da Silva por ter, à merenda, pegado em dois trigos…» E ainda: «um dos males que me recordo era realmente o dos acusa pilatos; meninos que (talvez para serem agradáveis ao prefeito) denunciavam os companheiros; se os prefeitos lhes davam ouvidos ou não, não sei.» E queixa-se outra vez: «A quem se enganasse nas contas, ou pretendesse comprar algo de que, em seu entender, não precisava, além de recusar o fornecimento dos objetos o padre Job não se dispensava de, conforme a pedagogia do tempo, distribuir uns sopapos, ou mandar a caderneta pelo ar.» Quanto ao refeitório: «a meio da mesa sentava-se o trinchante (…) que distribuía a comida; como tinha o poder de deitar mais ou menos sopa, ou distribuir os melhores bocados, e porque nem sempre agia com imparcialidade, era alguém para quem se olhava com certo temor, sobretudo quem era mais pequeno, como era o meu caso
     À refeição, o silêncio era sagrado, salvo raras exceções; antes dela, rezava-se. A merenda, constava apenas de um pão, como na tropa. «Papel higiénico era coisa que não existia nas instalações sanitárias», conta-nos ele. Desabafa: «Tomávamos banho uma vez por semana, em um balneário situado debaixo do topo sul do salão de estudo
     No Diário do Minho de quarta-feira, 20/11/2019, página V, o padre Silva Araújo afirma: «Também havia professores que nem sempre tratavam os alunos com o devido respeito.» // No dito número do jornal, página III, lê-se: «Este (padre Manuel Ferreira) ao referir o texto bíblico que fala da criação da mulher a partir de uma costela do homem, exclamava: - “daqui se conclui que foi a mulher que saiu do homem e não o homem que saiu da mulher.” // No Diário do Minho de quarta-feira, 30/10/2019, página III, o referido sacerdote lembra: «Alguns dos professores nem sempre manifestavam o devido respeito pelos alunos, ridicularizando-os quando, nas chamadas, não respondiam com acerto.» // Na mesma página do dito jornal, fala-nos de um padre poeta, engraçado, mordaz. Chamava-se Manuel José Lopes, mas usava o pseudónimo de Manuel Dume. Um dia foi acusado pelo padre Manuel Faria Borda «de ter copiado uma das músicas das suas peças de teatro…» Respondeu-lhe à letra: «o c… piar é uma desgraça/que acontece a toda a gente/quando o c… pia, que faça/cada um por ser prudente                
     A questão dos padres que se apaixonaram por raparigas e nelas geraram filhos, isso, quanto a mim, não é nada que cause espanto, pois um padre é um homem, com desejos, com necessidades, com paixões. É certo que juraram perante os livros sagrados, o seu Deus, os seus superiores, a lei canónica, que se manteriam castos. Na altura, com vinte e poucos anos de idade, sem experiências mundanas, na idade da ilusão, tudo se promete; o pior é quando um moço, bem-falante, bem vestido, comparado com a maior parte dos habitantes locais, se apresenta perante um conjunto de pessoas, entre elas raparigas bonitas e casadoiras, desejosas de serem beijadas, abraçadas por um jovem da idade delas. A maioria dos padres resiste a essa tentação, agarra-se à sua fé, teme o castigo divino, pede a todos os santos que o protejam, mas há sempre uma minoria que se deixa levar pelo desejo. A consequência surge-nos à vista: a rapariga fica grávida, vai ser mamã… Os vizinhos logo perguntam: - quem é o pai? As reações variam: uns acham normal, é mais um miúdo, ou miúda, filho, ou filha, de pai incógnito; outros, os mais beatos, ficam irritados, para eles esta situação é insuportável, pois os padres são ministros de Cristo, têm de ser exemplares, não devem cometer pecados dessa gravidade. O grande argumento do Papa e seus conselheiros para não deixarem casar os sacerdotes é o seguinte: os religiosos, sendo solteiros, com autonomia, sem responsabilidades familiares, podem dedicar aos crentes vinte e quatro horas por dia; se fossem casados, com filhos, esse tempo seria inevitavelmente dividido, repartido entre crentes e família, logo a eficácia, a prontidão, seria por vezes nula. Decidir sempre foi difícil. Neste caso concreto, o que se ganharia de um lado, perder-se-ia por outro. Quanto a mim, embora leigo nestas matérias da religiosidade, a solução, ou parte dela, seria encontrada através de seminários para raparigas, e o casamento de todos aqueles religiosos que o quisessem realizar. Se algumas mulheres estudassem para “madres” (padres do sexo feminino), o número de religiosos aumentaria exponencialmente, e as crianças que nascessem de “madres” ou padres, seriam legitimadas, teriam um lar, seriam como outras quaisquer crianças. Desapareceria o ferrete: «és filho de um padre», como se isso seja algum crime hediondo. Enfim, as coisas vistas por este prisma parecem relativamente fáceis, mas a Igreja Católica, como acima se disse, tem muitos séculos de existência, tem as suas leis, elaboradas por grandes pensadores, os seus princípios, e não vai ser fácil introduzir novos conceitos, novos rumos, a uma instituição conservadora por natureza. O risco é sempre relativo, mas existe. As mudanças são quase sempre dolorosas.
     Neste livro não constarão todos os padres, frades, monges, que exerceram a sua atividade em Melgaço, fossem ou não naturais do concelho. Não foi uma deliberação fácil de tomar: o motivo principal é eu não ter tempo para encontrá-los a todos. Investigo há cerca de quarenta anos, tenho editado alguns trabalhos, uns mais elaborados, outros mais ligeiros, mas a investigação é morosa e cara. Os monges de Fiães e de Paderne que me perdoem, mas não vão aqui figurar na sua totalidade. Outros investigadores poderão prosseguir neste caminho agora iniciado. Algumas pessoas poderão interrogar-se: - que raio de interesse tem o assunto deste livro? Bem, o livro é composto por pequenas biografias de padres, monges e frades, homens religiosos que batizavam, casavam, confessavam os crentes, acompanhavam funerais, doutrinavam crianças, jovens e adultos, a fim de se tornarem bons cristãos, intervinham, e intervêm, na vida quotidiana da comunidade. Nem todos foram, ou são, exemplos de virtude, alguns erraram, como todos nós; mas o seu papel na sociedade não é de somenos. Ajudaram a criar um modelo de sociedade, para o bem e para o mal. Quase que a ninguém, nem mesmo aos incréus, passará pela cabeça um dia ver uma freguesia, sobretudo no norte e centro de Portugal, sem um pároco. É certo, que hoje em dia existem milhares de religiões espalhadas por todo o planeta, a oferta religiosa é enorme, mas o catolicismo ganhou raízes, adaptou-se à maneira de viver e sentir das populações, já faz parte do tecido social, construindo pontes entre o humano e o divino, embora este, para alguns, emane do primeiro.      
     Gostaria de ver as biografias mais desenvolvidas, mas não foi possível; os documentos são escassos, e aqueles que existem são pouco abundantes em dados biográficos. A imprensa em Melgaço só surgiu no século XIX, e a maior parte dos jornais dessa altura foram destruídos ou, pela sua fragilidade, não podem ser consultados. Os arquivos municipais são recentes, o espaço dos antigos edifícios camarários era por norma exíguo, por isso, milhares e milhares de documentos foram destruídos pela incúria dos homens. Enfim, temos de aproveitar o que restou, e conservar os que se vão produzindo, para que no futuro se possa conhecer o passado. // continua...

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