sábado, 1 de fevereiro de 2020

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha


desenho de Manuel Igrejas


INÊS NEGRA

      Li com muita atenção o artigo «Quem foi Inês Negra?», da autoria do meu conterrâneo Dr. Ricardo Gonçalves, professor de filosofia na cidade de Braga, disperso por três números de “A Voz de Melgaço”: 1075, 1076 e 1077. Quase nada há a acrescentar, pois sobre a famosa “heroína” está tudo dito: trata-se na realidade de uma figura lendária, esboçada superficialmente por Fernão Lopes, que ao tempo da «escaramuça» (1388) teria ele provavelmente sete ou oito anos de idade! Não se sabe concretamente o que levou o nosso primeiro historiador a escrever aquelas linhas sobre uma hipotética luta entre duas mulheres – ele, que procurava sempre documentar as suas afirmações! A teoria mais aceitável é aquela que defende que o orador, ou o escritor, precisa, depois de uma longa narração, de tomar novo fôlego, de adquirir novas energias para prosseguir a sua densa escrita ou o seu árduo discurso. Para Fernão Lopes (+-1380/+-1460), aquela lembrança, aquele evento tão irrelevante, não passou de um mero artifício sem importância, pois de contrário tê-lo-ia desenvolvido, com grandeza e verosimilhança, tão a seu jeito! Duarte Nunes de Leão (cerca de 1530–1608), defensor dos direitos de Castela à coroa de Portugal, na sua crónica de el-rei D. João I, e depois de ler o que o nosso primeiro cronista escrevera, fez como normalmente faz o ficcionista: acrescenta um ponto ao conto! Eis o que escreveram sobre a Inês Negra: «E em esse dia escaramuçaram duas mulheres bravas, uma da vila e outra do arraial, e andaram ambas aos cabelos, e venceu a do arraial.» (Fernão Lopes). // «Nesse dia houve uma escaramuça mais para ver que as que até ali eram passadas. Porque duas mulheres bravas, uma do arraial e outra da Vila, se desafiaram, e vieram aos cabelos, e por fim venceu a do arraial, como mais costumada a andar na guerra.» (Duarte Nunes de Leão).     
 

escultura de Acácio Dias

     Tenho na minha frente o livro do conde de Sabugosa (António Maria José de Melo Silva César e Meneses, nascido em Lisboa a 13/2/1854 e falecido a 21/5/1923) cujo título é «Neves de Antanho», 3.ª edição da Livraria Bertrand, escrito na segunda década do século XX, no qual se pode ler a lenda da Inês Negra «a heroína de Melgaço». Vai da página 18 à página 46! Segundo ele a “Arrenegada” «saiu pelo postigo da fortaleza, para vir defrontar-se com a sua competidora Inês Negra, todos, de um lado e outro, se dispuseram a presenciar o espectáculo desta pugna de nova espécie, a que deram foros de combate, e que a crónica regista com a designação honrosa de escarumuça entre duas mulheres bravas 


     Como escritor ficcional que era, podia dar-se ao luxo de criar personagens, dar-lhes vida e nome; isso não autoriza ninguém a transpor a ficção para a realidade.
 


escultura de mestre Rodrigues, sita na Alameda Inês Negra.

      Penso que o artigo em questão, isto é, o escrito do Dr. Ricardo, serviu sobretudo para esclarecer aqueles melgacenses que tinham uma ideia deturpada sobre essa figura secular. Se lerem algumas páginas de história medieval ficarão a saber que nesses tempos as guerras eram feitas exclusivamente por homens, e somente nas mitologias (a grega, por exemplo) nos aparecem deuses e deusas a lutar ao lado dos humanos. As famosas amazonas também fazem parte de lendas antigas e pouco ou nada têm a ver com a realidade. A história de Melgaço é bastante rica, cheia de figuras e acontecimentos históricos, e não precisamos de inventar seja o que for para ombrear com esta ou aquela terra da República. Fomos durante séculos uma praça de guerra e hoje somos uma linda vila pacífica, a caminho do progresso e do bem-estar, embora não tão rapidamente como outras. Se queremos homenagear alguém, por que não lembrarmos os nossos heróis de carne e osso, ou seja, os que estiveram dispostos a enfrentar os franceses aquando das invasões do primeiro quartel do século XIX, os que lutaram em França, tendo alguns deles aí perdido a vida e muitos a saúde, na designada Primeira Grande Guerra (1914-1918), os nossos emigrantes que, onde quer que estejam, têm sempre Melgaço no coração, e também os que lutaram na guerra colonial e, acima de todos, esses abnegados bombeiros voluntários que ao longo dos anos têm dado todo o seu empenho e valentia na defesa de pessoas e bens.


     “Inês Negra” não passa de uma lenda – cheia de encanto, sem dúvida, mas lenda. Sendo assim, e porque as palavras devem ser seguidas de atos, vou dedicar-lhe um modesto soneto, inspirado precisamente no artigo do Dr. Ricardo Gonçalves, e cuja contradição com o que acima escrevi é apenas aparente, pois trata-se, como é óbvio, da transição para um texto poético.  




 
Estavas, linda Inês, tão repousada,

Saboreando a árdua e sã vitória,

Sobre a traidora vil de má memória,

Que chamam por desdém d’Arrenegada!

 

Eis senão quando, mente arrebatada,

Não temendo ferir honra e glória,

Apaga, com um só golpe, da História,

Tua figura de heroína abençoada!

 

Querem metamorfosear-te em lenda,

Levar-te prò museu das velharias;

Roubar-te o nobre troféu cobiçado.

 

Regressa, bela virago, à contenda,

Desenterra as armas das armarias,

Reconquista teu renome ameaçado!

  

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1079, de 15/9/1997.










 

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