terça-feira, 15 de outubro de 2019

LEMBRANÇAS AMARGAS
 
romance
 
Por Joaquim A. Rocha






XXXII

 

Depois do naufrágio qualquer tábua serve

  
     Mais um ato de solidariedade: sabendo que o meu idoso avô paterno ficaria desamparado quando eu ingressasse na vida militar, procurei acomodá-lo o melhor possível. Todos têm conhecimento que os antigos asilos eram desconfortáveis e pouco higiénicos, mas evitavam, apesar de tudo, que os anciãos morressem na rua, à chuva e ao vento; por outro lado, sempre iam tendo algo para comer, e uma modesta enxerga para dormir. Ao longo dos séculos, os velhos, sobretudo aqueles que nada tinham para legar aos parentes depois da sua morte, foram quase sempre tratados com desprezo, atirados ao lixo como trastes inúteis. Felizmente as coisas têm vindo a melhorar. Venham então acompanhar os meus passos:


 

- Senhor Provedor, vinha aqui pedir-lhe, pela alma de que lá tem, um grande favor, uma esmola.

- Diz lá, Cândido. Aconteceu alguma coisa de grave?!

- É que tenho comigo o meu avô, pai do meu pai, o senhor Agostinho; andava por aí a mendigar, e eu meti-o em casa, sabe como é, um caldinho e um bocado de broa com toucinho sempre se vai arranjando, mas agora vou para a tropa, já estou apurado, e não posso deixá-lo sozinho em casa, a minha mãe vai todos os dias para as aldeias, aquele maldito vício, morria à fome, quase que já não pode andar; eu sei que no asilo são bem tratados, não lhes falta nada.

- Faz-se o que se pode, meu rapaz. De facto a vossa situação é melindrosa, a Santa Casa da Misericórdia procura socorrer todos os indigentes, mas nesta altura não há nenhuma vaga, nenhuma cama disponível, vai passando, pode ser que antes de ires para a vida militar se consiga alguma coisa, não te garanto nada, a tua mãe é que podia tomar conta dele, mas leva aquela vida.

- Com a minha mãe não se pode contar: não tem dinheiro nem paciência para tratar de idosos; e a tropa, por causa da guerra em África, dura pelo menos três longos anos, eu não gostaria de ver novamente o velhote pedir esmola pelas ruas e a dormir ao relento; se eu tivesse cabedal pagava a alguém que tomasse conta dele, mas não tenho.

- O teu avô, quantos filhos tem?

- Apenas um, o meu pai, mas quando eu nasci ele foi para Espanha; casou com uma galega, e nunca mais veio para Portugal. Esqueceu-se completamente de seus pais e da terra que o viu nascer!       

- E a tua avó, a mulher dele?

- Morreu há dois anos; foi por isso que ele teve de abandonar os terrenos do patrão e começar a pedir esmola pelas portas; não tem casa, nem família, ele nem sequer me conhecia, foi a minha mãe que me disse que ele é meu avô.

- Vamos lá ver se remediamos a situação, não te prometo nada, vai passando por aqui.

- Obrigado, muito obrigado, senhor Provedor, que Deus lhe pague.

 

          Algum tempo depois:

 

- Avô, estive a conversar com o senhor provedor da Misericórdia, a pedir-lhe para o meter no asilo; aquilo não é nenhum hotel, mas é melhor do que andar por aí, eu dentro em pouco tempo tenho de ir para o exército.

- É o destino, meu neto, é o destino! Agora que eu estava aqui tão bem contigo, que podia ter um fim de vida tranquilo, sossegado, vais-te embora e eu serei metido naquele casarão de velhos abandonados, quase uma prisão, e – segundo dizem – as criadas sempre a ralhar, não gostam de limpar a porcaria deles, mas para isso são pagas, que limpem, se alguém pede auxílio de noite bem pode morrer que elas não se importam, é o que comentam por aí, eu nunca lá estive.

- Sabe que às vezes diz-se mais do que aquilo que é; não acredito que as empregadas tratem mal os idosos, que não chamem as enfermeiras e médicos quando eles estão doentes; não acredito! As pessoas desta esquecida terra só sabem dizer mal, é raríssimo ouvirmos dizer bem, seja de quem for. Se alguém for generoso, logo se diz que está a fingir; se for mau, maldizente, gabam a sua atitude, mas pelas costas tecem-lhe as piores diatribes. Trata-se de uma deficiente formação, de pura hipocrisia; a maior parte das pessoas não têm educação, são grosseiras e medíocres, vis, mas depois vão-se confessar ao sacerdote, tomam a hóstia, e ficam aptas a repetir os pecados anteriormente repetidos.

- Tens razão, meu querido neto. Nós não temos escola, vivemos sempre no meio de animais, comportamo-nos pior do que eles; como nada temos de nosso, somos invejosos dos bens dos outros; mas que queres, não podemos mudar as coisas.     

- É verdade. A chamada classe humilde pouco ou nada pode mudar, não tem forças, nem capacidade, nem meios para o conseguir; esperemos que Deus se compadeça de nós, só ele nos poderá valer.

- Deus também já deve estar cansado da gente, passamos uma vida a mendigar-lhe coisas, só sabemos pedir, pedir…

- Em troca da nossa alma; Deus sabe que o adoramos.

- E o senhor provedor, deu-te esperanças?

- Mandou-me passar por lá de vez em quando, parece que neste momento não há vaga, as camas estão todas ocupadas, pode ser que se consiga uma antes de eu ir para a tropa.

- É possível que um dia destes morra um desses velhos para eu lhe ir ocupar a enxerga.

- Não se pode pensar assim, avô; uns morrem, outros nascem, é assim o ciclo da vida.

- Quando se é novo não se pensa na morte, mas ao chegar à minha idade começa-se a ver-lhe a sombra, ela aproxima-se velozmente, mais rápida do que uma lebre, de foice afiada nas esqueléticas mãos, e nós não lhe podemos fugir, nem escapar, pois o seu poder é imenso. A tua avó sofreu muito antes de deixar este mundo; passei noites e noites à sua cabeceira, ela delirava, não dizia coisa com coisa, eu estava a ver que ficava também enfermo, os campos ficaram por cultivar, o dono das terras já andava em cima de mim: «se não podes lavrar a terra, vai-te embora!» Como podia eu ir embora se tinha a mulher a morrer-me; eu já sem alentos, ali isolado, sem vizinhos, perdido naqueles campos.

- Na verdade vocês estavam isolados, só campos e monte.

- Os vizinhos mais próximos ficavam a muitos metros de distância, quase um quilómetro! O Olavo Augusto não gostava de viver ali, por isso é que ele se foi embora para Espanha, pedia-me para mudarmos, também para se ver livre da tua mãe, estava farto dela, não o largava, aquelas cenas de ciúme, receava que ele a trocasse por outra; mas eu já estava acostumado ao lugar, foram muitos anos, e quando se é novo depressa se vai aqui e ali.

- O seu filho não gostava da minha mãe?!    

- No princípio sim, foi a primeira mulher que ele teve, não falava noutra coisa, a Matilde para aqui, a Matilde para acolá, mas depois aborreceu-se, sabes como é: mais velha, já com filhos, com uma filha quase da idade dele, toda a gente lhe tirou a ideia da cabeça. Hoje estou arrependido, pelo menos tinha-o perto de mim, e a tua mãe comportava-se melhor; assim, fiquei sem ele e dei cabo da vossa vida.

- Tudo acontece por vontade de Deus.

- Tudo talvez não, os homens fazem muitas asneiras, amiúde vão contra as leis do Senhor, por exemplo, quando foi a guerra civil de Espanha, como eu morava perto da raia, de vez em quando ouvia os tiros, matavam-se uns aos outros, não respeitavam sequer os familiares, ali bem perto um soldado do general Franco veio matar o próprio pai, um civil, só porque era republicano. Alguns galegos ainda se refugiaram na minha casa, depois partiram para o sul, coitados deles, se não fugissem eram abatidos como cães, o caudilho, como era conhecido, não perdoava a ninguém; dizem que os alemães do Hitler o ajudaram muito.

- Com aviões…

- Aviões e tropa; os republicanos e os comunistas não se aguentaram. 

- Os portugueses não se meteram?

- Dizem que também lá andavam de um lado e de outro; eram voluntários, que a guerra era só entre espanhóis.

- Foi por essa altura que começou o contrabando...

- Eu nunca me envolvi nisso, receava ser preso ou apanhar um tiro; o teu pai é que fez algum dinheiro, mas só transportava coisas pequerruchas – uns quilos de café, sabão, pedras de isqueiro, azeite, e pouco mais. Eu tinha um medo enorme que aparecesse a guarda, mas o Olavo Augusto dizia-me que eles também andavam metidos nisso!

- E, segundo consta, aqueles guardas que não andavam a contrabandear recebiam dinheiro para fechar os olhos.

- Contrabandeava-se muito, é verdade, alguns fulanos encheram-se bem, mas olha que lhes deve pesar a consciência, parece que cometeram muita baixeza. Uma altura, venderam tripas aos galegos, para eles fazerem fumeiro, mas as tripas já estavam estragadas, podres! Foram reclamar ao vendedor e este disse-lhes que as devolvessem se queriam reaver o dinheiro; quando o fizeram, foram apanhados pelos guardas-fiscais. Claro que tinham sido denunciados!

- Diz-se tanta coisa; o que é certo, é que eles andam por aí à vontade, sem constrangimentos, até parece que são os senhores do mundo!

- De outra vez venderam latas de azeite, mas sabes o que elas continham? Oitenta por cento de água! O azeite só aparecia por cima. E pedras de isqueiro? Metade era arame! Tinha o mesmo tamanho e a cor das pedras!

- Ladrões! Quando morrerem vão para o inferno.

- Não sei, meu neto, não sei. No inferno vivemos nós por causa deles e de outros.   
 
// continua...       

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