quarta-feira, 23 de outubro de 2019

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha





(1930) – Crime de Castro Laboreiro. Por mais voltas que se dê à nossa imaginação, jamais algum dia esperaríamos deparar com um assassínio numa aldeia remota do país, onde todos se conhecem, se respeitam, ou se temem – onde todos, ao fim, e ao cabo, são uma família. Porém, naquele dia fatídico, a insaciável esposa de Belzebu, já cansada de aguardar, reivindicou a sua presa. Aquelas pessoas, os assassinos, não eram gente má. A sua vida, marcada pelo labor duro e ingrato, estava isenta de máculas. Iam todos os domingos à missa, e confessavam ao cura os seus pecados – coisas de somenos. Davam o seu melhor à comunidade, cumpriam escrupulosamente os seus deveres, recebiam em troca apenas aquilo a que tinham direito. Para quê matar, se os conflitos surgidos se resolviam com uma simples discussão, uma pequena cedência, ou por vezes – raras – com umas pauladas, ou vergastadas, dadas naqueles lombos habituados a sofrer até à exaustão. Longe iam os tempos da Inquisição, em que os membros da igreja católica, todo-poderosos, metiam nos cárceres, ou queimavam na fogueira, aqueles que se lhes opunham, ou de quem não gostavam. Os tempos eram outros. Contudo, os atos menos nobres dos seres humanos são como as tempestades: surgem de repente, tudo arrasa, e logo a seguir tudo acalma, a mente adormece, nasce o silêncio inquietante, apenas restam os destroços, pequenos fragmentos espalhados ao acaso. / Naquela madrugada do dia 20/5/1930 António José Domingues, mais conhecido por “Soajo”, de 50 anos, acorda cedo e chama a sua companheira de escala, Maria Gonçalves, de 23 anos, do Ribeiro de Cima, para juntos irem apascentar o gado. Antes de partirem manjam a habitual água de unto, com aquele delicioso pão castrejo, mantendo em sossego aqueles estômagos por algumas horas. O corpulento cão de raça já acordara, e mostrava-se impaciente por partir para aquelas pastagens com o “seu” rebanho. Habituara-se àquele ritual: todas as manhãs, muito cedo, um homem e uma mulher da comunidade vinham chamá-lo para os acompanhar, e para os defender, caso fosse necessário. Especializara-se em guardar o rebanho, em mantê-lo em respeito, não admitia desobediências nem deserções – se levasse cem cabeças para o monte, esse exacto número teria que voltar com ele; às vezes até voltavam mais, pois as fêmeas não iam à maternidade parir, pariam ali, no monte, como se fosse a coisa mais banal do mundo, sem parteira por perto. / Há um ditado antigo que diz assim: «o homem põe e a divindade dispõe.» Pois é: nesse dia só regressa do pasto a rapariga. Os vizinhos, estupefactos, boquiabertos, perguntam-lhe: - «e Antônio?» «Que é feito de Antônio?!» / O tempo foi passando e nada de aparecer o pastor. Alguns habitantes do lugar, inquietos, augurando o pior, decidem ir à procura do desaparecido. Procuram, chamam, nada! Regressam, altas horas, já com a luz diurna, deveras desiludidos. Participam o evento à autoridade. São enviados dois cabos de polícia (nessa altura, em virtude de um conflito surgido entre a administração do concelho e a GNR, esta teve que ir embora), sendo um deles o perspicaz “Manuel Pintor”. Inteiram-se imediatamente do que se passou e depressa se apercebem que a jovem pastora devia saber muito mais do que aquilo que timidamente revelara. Obrigam-na a acompanhá-los ao monte; pelo caminho iam-na interrogando. Em princípio negou mas, apertada, entrou em grosseiras contradições. Resolve contar tudo: fora seu primo quem assassinara, à pedrada, o pobre “Soajo”. O corpo da vítima encontrava-se no sítio designado a Cova do Ladrão. Dirigiram-se imediatamente para o local e depressa descobriram o cadáver. Estava coberto de ervas e urzes. Comunicaram o sucedido à sede do concelho, que ficava quase a 20 km de distância, e logo que foi possível um carro puxado a animais transportou o corpo para o hospital da SCMM, onde foi submetido a autópsia. «Apresentava-se horrorosamente martirizado, com contusões enormes nos braços, no peito e na cabeça, e com onze facadas, sendo uma no pescoço e outras pelo peito, que atravessaram o coração e pulmões.» / Iniciaram-se as inevitáveis investigações, e os agentes policiais chegaram à seguinte conclusão: o “Soajo” andava de relações cortadas, havia já um ano, com Constantino Xavier e esposa, e com Manuel António Bernardo (o Redondo), e com a companheira deste, Rosa Gonçalves. O motivo da zanga era normal: uma questão de águas de rega com os primeiros, e uma servidão com os segundos. António José pedira uma opinião, por escrito, à Direção das Hidráulicas, e essa entidade deu-lhe razão, pelo que os outros ficaram furiosos e juraram vingar-se. Elaboraram um hábil plano, mas como sabiam que o adversário era um latagão, teriam que arranjar alguém de fora, um indivíduo habituado a bater, para lhe dar, enfim, um corretivo. Não o queriam matar, apenas aplicar-lhe uma tareia que lhe servisse de lição. Lembraram-se daquele valente da Peneda, o Manuel José de Sousa, cuja fama de brigão correra já aquelas serras de fio, a pavio. O Redondo, em Abril, foi ter com ele, mas aconteceu o imprevisto: o Sousa disse-lhe que não dava coças a quem não conhecia nem mal algum lhe fizera; tinha a sua maneira própria de agir, a sua ética, o seu código de honra. O grupo ficou irritado. Tinham que encontrar uma solução – o Domingues não se riria deles. A Rosa abordou a mulher do Constantino, Amélia Gonçalves, e sugeriu-lhe que insistisse com o seu marido para ir convencer o tal Sousa, e se ele recusasse então recorreriam ao Félix da Rosa, também da Gavieira, menos escrupuloso do que aquele. Manuel António dirigiu-se, no dia 18/5/1930, à Peneda e fez novamente o convite ao Sousa, oferecendo-lhe uma nota das grandes. A resposta foi perentória: não! / Regressou ao Ribeiro de Cima com o rabo entre as pernas – a sua diplomacia não fora suficiente para convencer o lutador. / Reuniram o grupo e tomaram uma decisão: seriam eles a malhar no conterrâneo. Escolheram o dia vinte desse mês, dia em que o “Soajo” haveria de ir para o monte com o gado. A Amélia combinou com o marido irem à tarde ao monte darem umas pauladas ao seu inimigo. O plano era simples e eficaz. Para encontrar um álibi o Constantino, com o Bernardo e a sua amante, iriam à vila de Castro. O primeiro solicitava uma licença para cortar madeira no monte baldio, os segundos pagariam a multa provocada pela desavença. No regresso partiram para o monte. Já lá estava Amélia com a pastora. Dissera-lhe ao que ia. Ela não concordou, até simpatizava com o companheiro de ofício, tinha o seu feitio mas não era mau diabo. Contudo, ameaçada de morte, viu-se obrigada a participar. Foi ela a primeira a achegar-se ao pastor. Este de nada desconfiou. Maria, rodeando-o, como uma especialista no jogo do pau, espeta-lhe duas pauladas na cabeça, ficando o pobre homem a cambalear. Como era forte como um touro, depressa se recompôs. Tirou o pau à moça e tentou agredi-la, assim como a Amélia, pois verificou que elas não estavam a brincar. Estas retiram-se, atirando pedras e mais pedras. Ele, vendo que as mulheres se afastaram, começa a correr em direção a sua casa, a fim de tratar da cabeça, que muito lhe doía. Porém, quando chega à Lapa do Ladrão, à sua espera estava a matilha. Amélia, que ficara ferida na rixa, tira do bolso uma faca e entrega-a ao marido, exigindo-lhe que mate o “Soajo”, pois de contrário ele matá-los-ia. Constantino não hesita: espeta a naifa na garganta da vítima. Este tenta defender-se, mas vê-se manietado, enquanto o agressor o esfaqueia sem dó nem piedade. Quando a vítima já estava a despedir-se deste mundo, numa agonia indescritível, o energúmeno passa a faca a Maria, obrigando-a a dar-lhe duas facadas – assim não haveria ali inocentes, todos, sem excepção, eram culpados e cúmplices daquela chacina brutal, selvagem, sem explicação racional. / Depois de levarem o cadáver para o tal buraco, dispersaram; somente Maria, atordoada, incrédula, ficou, a fim de conduzir os animais para a corte. O pobre cão ladrava, quase chorando! Quando a rapariga chegou ao lugar, sem o companheiro, e perguntando-lhe os vizinhos por ele respondeu meio a brincar, meio a sério, aparvalhada, que fora comido pelo lobo. Ela fugira! / Se não fora a persistência do “Manuel Pintor“ talvez ainda hoje não conhecêssemos o nome dos canalhas, nem a causa daquela horrível morte. / Numa das salas do edifício dos Paços do Concelho, inaugurado em 1931, decorreu o julgamento. Os juízes, Manuel Faria Sampaio, António Baltazar Pereira e Jaime Fontes, depois de um ano de intenso trabalho, preparavam-se para ler as sentenças. A acusação pública estava a cargo do Dr. António de Almeida Moura; a particular coube ao Dr. António Francisco de Sousa Araújo. A defesa dos réus foi assegurada pelo Dr. Francisco de Sá Tinoco, advogado de Braga. Como se esperava, foram todos condenados a oito anos de prisão maior, seguidos de doze anos de degredo, ou na alternativa a 25 anos de degredo, e 1.800$00 de imposto de justiça, cada um, com exceção de Maria Gonçalves, que pagaria 800$00, e todos solidariamente em 10.000$00 de indemnização à queixosa. E desta maneira, inesperadamente, como num filme de terror, famílias honradas transformaram-se em criminosos! // (ver NM 62, de 25/7/1930; NM 99, de 1/3/1931; NM 101, de 15/3/1931; NM 102, de 22/3/1931; NM 107, de 3/5/1931; NM 114, de 21/6/1931). // Publicado em Fronteira Notícias n.º 7, de 10/1/2005.    
 


(1933) - SOUSA, José. // Nasceu por volta de 1880. // Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 179, de 8/1/1933: «no dia 6 do corrente, por uma questiúncula sem importância, no lugar da Eira, freguesia de Rouças, José de Sousa, casado, vibrou três facadas no seu vizinho [António Manuel] Fernandes, também casado, em vários pontos do corpo, cujas facadas são de tal gravidade que o ferido se obrigou a recolher ao hospital da Misericórdia desta Vila. O caso já foi participado em Juízo, a fim de receber o respetivo corretivo o autor de tal proeza.» // E pode ler-se no Notícias de Melgaço n.º 180, de 22/1/1933: «Foi preso no dia 11, na fronteira, no sítio denominado Frieira, pela polícia internacional, José de Sousa, que – como o Notícias de Melgaço já noticiou – assassinou à facada no dia 6 deste mês António Manuel Fernandes, no sítio do Codessal, freguesia de Rouças. O assassino declarou à autoridade que no dia do crime se encontrava de guarda à água que destinava a uma propriedade e que a certa altura apareceu o pai do Fernandes que se dispunha a desviar a água para uma propriedade sua. Ambos, após uma troca de palavras, envolveram-se em desordem, chegando o Sousa a arremessar o sacho ao pai do Fernandes, que se pôs em fuga, e foi contar ao filho o que se passava. Este dirigiu-se ao encontro do Sousa para lhe pedir uma satisfação. O criminoso, ao ver o Fernandes, que estava munido de um pau, pousou o sacho que tinha ao ombro e disse-lhe –> “António, por Deus, não te chegues a mim, porque fazes a tua desgraça e a minha.” Após estas palavras o Fernandes lançou-se sobre o Sousa. Este, que estava munido de uma navalha, deu-lhe uma facada na região epigástrica, e como o Fernandes não o largasse vibrou-lhe mais duas facadas nas costas. Aos gritos de socorro acudiu Manuel Domingues, do lugar da Cela, que os apartou. O ferido foi depois conduzido para o hospital da Misericórdia, onde faleceu no passado dia 9. O Sousa fugiu para casa, seguindo depois para Espanha, onde costumava trabalhar de pedreiro, e ali esteve até ser preso.» // Lê-se também no Notícias de Melgaço n.º 189, de 2/4/1933: «No tribunal desta comarca respondeu no dia 28 do mês passado José de Sousa, casado, de 53 anos de idade, acusado de ter assassinado à facada na noite de 6 de Janeiro próximo passado, António Manuel Fernandes, no sítio do Codessal, freguesia de Rouças… O tribunal foi constituído pelos meritíssimos juízes desta comarca, de Monção e de Valença, respetivamente doutores José Luís de Almeida, António Baltazar Pereira, e Manuel Faria Sampaio. O Ministério Público estava representado pelo senhor Dr. António de Almeida Moura, estando a acusação particular a cargo do nosso conterrâneo senhor Dr. António Francisco de Sousa Araújo, advogado na comarca de Monção, e a defesa confiada ao senhor Dr. Henrique da Rocha Fernandes Pinto, advogado em Lisboa. Foi aberta a audiência às 12 horas, encontrando-se o tribunal repleto de gente. Depois das formalidades da praxe iniciou-se a inquirição das testemunhas - que pouca luz fez sobre o crime -, à excepção do reverendo abade de Chaviães, e de José e Manuel Domingues. A testemunha Manuel Domingues – única de vista – deu a impressão, no seu nervosismo excessivo, que não dizia tudo que sabia, limitando-se a meia dúzia de palavras, que não ficaram esclarecidas como verdadeiras. Instado pelo senhor presidente e pelo digno agente do Ministério Público, respondeu bruscamente: «não sei mais senhor… já disse… já disse.» Acareado com o réu, manteve o que tinha dito. Frases da testemunha Manuel Lourenço «não atendi quase nada para não ter que dizer – não afirmo mais que a minha opinião me manda.» O reverendo abade de Chaviães e capelão do hospital da Misericórdia, tendo conversado particularmente com a vítima no hospital, pouco antes de ela falecer, reproduziu ao tribunal a afirmação por aquela feita, em que se salientava o seguinte: «o meu pai, após a discussão com o Sousa, veio chamar-me e eu corri armado dum fueiro com que o agredi, e teria dado a matar se soubesse que ele me picava.» Como este facto tinha sido negado pelo pai do Fernandes e pela viúva, foram estes acareados com a testemunha, tendo-se o pai retratado. Às 15.55 foi interrompida a audiência por quinze minutos para descanso do tribunal. Reaberta a audiência, foram prescindidas as testemunhas que ainda faltavam para depor, e o ilustre advogado de defesa requereu para serem ouvidos os peritos que tinham procedido à autópsia. Não se tendo oposto o digno agente do Ministério Público, nem a acusação particular, os senhores doutores António Esteves e Cândido de Sá prestaram declarações muito interessantes e de valor científico. Seguiram-se os debates: tanto a acusação como a defesa foram brilhantes. Às vinte horas foi proferida a sentença, que condenou o réu a dois anos de prisão correcional, dois anos de multa a dois escudos por dia, 1.500$00 de imposto de justiça, e 10.000$00 de indemnização à família da vítima. Lida a sentença o senhor juiz presidente disse que o tribunal tinha sido muito benevolente para com o réu atendendo ao seu passado honesto, um passado longo, e também à afirmação de um moribundo, feita a um sacerdote. Aconselhou o réu a que continuasse a ser um homem de bem e que evitasse nunca mais vir a um tribunal por um caso idêntico. O réu chorava copiosamente.»

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