domingo, 19 de novembro de 2017

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha



desenho de Rui Nunes
 



As vias sinuosas encaminham-nos para o cais

 

     Apercebi-me, embora tardiamente, que a minha jovem namorada mudara o seu comportamento para comigo. Várias pessoas já sabiam nessa altura que ela e o Artur iriam casar; eu, porém, tudo ignorava, e nem sequer queria acreditar nessa possibilidade. «Cândido, meu pobre amigo, tu eras, nessa altura, um triste poeta, um sonhador.» Sejam ousados e aproximem-se: 

 

- Bera, não sei o que se passa contigo, não tens aparecido, ias à minha oficina todos os dias, a tua tia também já não vai com tanta frequência, a tua prima Guida já não me fala como antes, o que está a acontecer?!

- Nada, é impressão tua, escusas de estar preocupado, tenho tido muitíssimo trabalho, agora tenho ido com a minha mãe vender, praticamente não me sobram tempos livres, só nos fins-de-semana, mas até neste domingo tive de trabalhar, desculpa não ter aparecido, temos muito tempo para estarmos juntos, uma vida inteira.

- Pareces-me diferente, fisionomia carregada, a tua alegria contagiante desapareceu, nota-se em ti imensa preocupação, passa-se alguma coisa ruim, anda lá, diz-me, conta-me tudo, confia em mim.

- Estás a imaginar coisas, sou a mesma, só que ando maçada, temos de sair cedo de casa, a minha mãe anda outra vez grávida, já não se esperava este filho, a vida complica-se, mais uma boca para comer, já sabes como é, só preocupações.

- Correm por aí uns rumores, eu não acredito, estava bem arranjado se ligasse a tudo que dizem, eu em ti confio, pudera! Não havia de confiar naquela que vai ser a mãe dos meus filhos, a companheira de muitos anos, até parecia mal.

- Deixa essa gente falar, não têm nada para fazer, se tivessem não lhes sobrava tempo para se meterem na vida dos outros, olha que a tua mãe também anda a dizer coisas de mim, mas essa, coitada, é com a pinga, se não fosse o vinho já não diria esses disparates, que ela a mim não pode apontar nada, devia-se olhar no espelho, mas eu não lhe ligo, que fale.

- Sabes o que estive a pensar? 

- O quê?!

- Quando voltar da tropa e tiver algum dinheiro abrimos uma sapataria maior e melhor, com venda de calçado novo, as que há no concelho não prestam, as pessoas começam a ter dinheiro da emigração e já podem comprar, que dizes?

- Acho boa ideia, mas para abrires uma sapataria dessas será preciso muito capital, isso vai levar anos.

- E não disseste tu, há pouco, que temos muitos anos à nossa frente?

- Não cries ilusões, só na tropa vais botar pelo menos três anos, como sabes há rapazes que botaram quatro, depois vens sem um único tostão, que na tropa gastam o que têm e o que não têm, pensas que aquilo é a França, lá sim, ganham muitos francos, aqui nem para comer se ganha.

- Eu sei que tu tens razão, mas deixa-me sonhar um pouco, somos tão novos, não nos podemos comportar e pensar como se tivéssemos cinquenta anos de idade, a vida dá muitas cambalhotas e o futuro a Deus pertence, pode ser que as coisas melhorem, a guerra colonial pode acabar de um momento para o outro, eu tenho esperança que sim, tu não sejas pessimista, enfrenta o devir com otimismo.

- O que eu vejo em casa é cada vez mais miséria, mais carências, o meu pai adoeceu, não foi trabalhar durante um mês, não ganhou nada durante esse período, a minha mãe trabalha como uma escrava, os meus irmãos são ainda pequenos, só comem, não ajudam nada, eu faço o que posso, até já pensei oferecer-me como criada de servir, mas as casas dos senhores têm todas empregadas, algumas são de fora, coitadas, na aldeia delas também passam necessidades, o que farei?! Não me agradava deixar a terra.

- Nem eu permitia isso, nem que casemos antes de eu partir, mas depois também ficarias com a minha mãe, sabes como ela é, todos os dias aquilo, aquela bandalhice, nem te irias sentir bem, vê se aguentas até eu regressar.

- Peço a Deus e à Virgem Maria que me ajudem, que iluminem o meu caminho, só um milagre poderá melhorar a minha vida.

- Hoje estás impossível, nem te reconheço.

- Achas que é caso para menos? Tenho de ir, porque amanhã levanto-me cedo e tenho de dormir algumas horas, até depois.  

- E vais assim, se um beijo ao menos?

- Hoje não estou com disposição para essas coisas, sinto-me cansada e triste, é melhor ires já embora.

- Está bem, está bem; hoje nem te reconheço. Até amanhã.

 - Se Deus o quiser.

 
==========================================================================


VENDA DE LIVROS DO AUTOR

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO, I            10.00
DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO, II          10.00
LINA - FILHA DE PÃ (romance)                                             10.00
OS MEUS SONETOS e os do Frade  (poesia)                          10.00
OS NOVOS LUSÍADAS (no prelo)                                          11.00
              
Nota: estes preços, apenas para Portugal continental, já incluem as despesas com o seu envio. // O contacto far-se-á através do seguinte e-mail: joaquim.a.rocha@sapo.pt


Sem comentários:

Enviar um comentário