ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
UM DIA INESQUECÍVEL
La Palice, o
oficial francês que inventou a “verdade”, diria: «todos os dias são iguais, pois todos eles têm vinte e quatro horas.»
No entanto, a verdade desse senhor nem sempre corresponde à nossa própria verdade.
Naquele dia 11 de Março, um sábado primaveril, esquecidos que já estávamos
daquele outro 11 de Março que tanto mudou Portugal, para melhor e para pior,
seguíamos nós: eu, o Ilídio de Sousa (Carriço), e o meu irmão José Rocha, em
direção à casa do nosso grande amigo Acácio Caetano Dias. Eu tinha telefonado
ao Acácio, dias antes, a convidá-lo para nos encontrarmos todos numa cervejaria
ou na Casa do Alentejo (tão diferente da Casa do Minho) mas ele foi perentório:
«vêm almoçar a minha casa no sábado, 11
de Março!» Já lá tinha ido em Fevereiro. Não seria abuso da minha parte
aceitar este convite? Como dar-lhe a volta sem melindrar o amigo e sua esposa
que tão bem me receberam? Fiquei entre a espada e a parede. Não lhe disse sim,
mas também não lhe disse não. Que fazer? Endossei o problema ao meu irmão e ao
Ilídio. Que diabo! Este queria conhecer o grande artista melgacense e o meu
irmão tem-lhe uma grande amizade – eles que resolvessem. Decidiram; iríamos a
casa do Acácio. Telefonei rapidamente à senhora, pedindo encarecidamente que
fizessem uma refeição conventual, franciscana, um pratinho simples e uma sopa
de couve-galega para encher a barriga àqueles comilões. Chegámos à estação da
Parede por volta das treze horas. À nossa espera estava o Acácio e um senhor
que não me era totalmente estranho, Tinha, pelo menos, cara de conterrâneo. Diz
imediatamente o meu irmão: - «olha quem
ali está; o Álvaro!» Nem mais, nem menos, o senhor Álvaro, ex-agente da PSP
e aposentado do Banco do Brasil. Que fazia na Parede aquele nosso conterrâneo?
Estranhei. Cumprimentamo-nos efusivamente, apresentei o Ilídio a ambos, e
perguntei ao Álvaro o que fazia ali, tão longe de Rouças, onde possui uma
belíssima vivenda. Qual não foi o meu espanto ao saber que morou muitos anos
nesta freguesia do concelho de Cascais, onde mantém ainda residência! Que
sabemos nós dos melgacenses? Nada, ou quase nada! Seguimos no seu automóvel (o
Acácio é como eu, não gosta de conduzir) e conversando amigavelmente
aproximámo-nos da linda vivenda do nosso anfitrião. É inconfundível: junto à
entrada perfila-se a estátua de D. Quixote, herói e anti-herói da nossa
infância; outras estátuas, feitas a partir de vários materiais, indicam-nos que
estamos perante a casa de um artista. Logo que chegámos fomos recebidos pela
senhora D. Teresa, esposa do Acácio, acompanhada de outras pessoas, que eu há
muito tempo não via, mas que no fundo não me eram totalmente desconhecidas.
Olhei bem. Aquelas caras eram-me familiares. Pois não! Tratava-se, nem mais nem
menos, do senhor Manuel Duarte Almeida (Manuel do Jacob) e de sua esposa, D.
Maria Amélia. Que bom tê-los encontrado. Eles que conheceram tão bem os meus
avós Libânia e Belchior. - «Tempos
difíceis aqueles; a gente asfixiava em Melgaço. Muita boca para tão pouca comida.
Tivemos de partir. A nossa terra só para visitar», comentaram. Quem somos
nós para retorquirmos, contradizer os mais velhos, os que sofreram na pele as
carências, a falta de conforto, a insegurança? Nós de outra geração, também
sacrificados, mas, apesar de tudo, com perspetivas diferentes no horizonte, não
temos autoridade, nem saber, que nos permitam esboçar sequer um gesto de desacordo.
Não vale a pena dramatizar. Se um dia tiver fôlego e ciência escreverei
pormenorizadamente sobre a vida em Melgaço na primeira metade do século XX.
De casa saiu
também um casal jovem, sorridente, que logo se apresentou: Clementina Dias,
filha do Acácio, e seu marido, Francisco Ramalho. Este jovem casal tem duas
filhas: a Inês e a Rita, ambas bonitas e de olhar inteligente. Tanta gente!
Algo se estava a passar! Cheirava-me a “partida”. Talvez não. Com as senhoras
ali o Acácio não arriscaria. O melhor seria aguardar. O dono da casa ordenou
amavelmente: - «Todos para dentro dos
carros.» Rolámos estrada fora durante uns vinte minutos; parámos junto a um
restaurante. Entrámos para uma ampla sala e verificámos que as mesas já estavam
reservadas. Nelas até já se encontravam algumas pessoas. Foi aí que eu descobri
– o Acácio fazia anos! E teve a coragem de nada nos dizer! Depois de uma
refeição abundante e muito bem servida, aparece o tradicional bolo de
aniversário. O Acácio comemorava sessenta risonhas primaveras. Cantámos,
comovidamente, os parabéns a você. A festa de aniversário é para mim um
pretexto para a família e os amigos se encontrarem. Foi o que aconteceu.
Momentos assim recordam-se para sempre. O Acácio, como ótimo conversador que é,
contou-nos vários episódios da sua vida, sobretudo os mais marcantes. Estas
narrativas, nas bocas dos artistas, fazem-nos lembrar as histórias das «mil e uma noites», recheadas como são de
peripécias quase absurdas; mas a realidade e a ficção sempre se misturaram para
tornarem a verdade menos cruel e a mentira mais aceitável. Vou contar-vos uma
dessas ”histórias”, aquela de que eu mais gostei. Começa assim: - «Os meus
chefes do Banco mandaram-me acompanhar outros colegas à cidade do Porto a fim
de executarmos determinado trabalho. Pagar-nos-iam as passagens e dar-nos-iam
certa quantia para pagar as refeições e a dormida. Pois bem! Eu gastei o
dinheiro com a comida e com uns extras a que não resisti. Veio a noite e eu sem
dinheiro, apenas uns trocos. Os meus colegas disseram-me que iam dormir numa pensão
ali perto. Eu disse-lhes (não querendo revelar-lhes a minha falta de dinheiro)
que iria mais tarde, pois ainda tinha de ir visitar uns parentes - talvez até
lá dormisse. Comprei um jornal e atirei-me freneticamente às páginas da
necrologia. Lá estava! Um velório de pessoa rica. E com o apelido Caetano.
Vinha mesmo a calhar. Para lá encaminhei meus passos. Como andava de luto por
meu falecido pai não me foi difícil aparentar um certo desgosto – não era,
podem crer, fingimento.
Dirigi-me ao
esquife, destapei a cara do morto, executei todos os atos inerentes a estes
casos, e retirei-me discretamente. Uns senhores (mais tarde soube que se
tratava de um médico e de um engenheiro) vieram ter comigo, lamentando o
falecimento do seu querido amigo e parente. Levaram-me para uma sala contígua e
serviram-me bebidas e bolos. Comi e bebi com moderação e respeito – não me
podia esquecer que estava em casa de gente fina. Indicaram-me um sofá e pediram-me
que descansasse um pouco, visto que a noite ia avançada. Ainda me fizeram
algumas perguntas, às quais respondi com um relativo à-vontade, tendo em conta
que já tinha estado anos antes a trabalhar no Porto. Ousei informá-los de que
tinha estudado no Colégio Garrett e logo um deles me disse que também um dos
seus filhos lá tinha estudado - «que
coincidência!» Como eram pessoas educadas não faziam perguntas embaraçosas.
Dormi não muito longe do defunto e durante o resto da noite só houve um pequeno
senão: a cera das velas ia-me caindo lentamente no casaco! Acordei ainda cedo,
dirigi-me à sala de onde vinha aquele cheirinho a café e torradas e tomei um
pequeno-almoço farto. Os mesmos cavalheiros da noite anterior dirigiram-se-me
novamente, dizendo que os seus afazeres profissionais não lhes permitiriam
acompanhar o infeliz até à sua última morada. – «Também eu tenho de me retirar», disse-lhes. «Tenho de regressar a Lisboa sem falta; tive imenso gosto em
conhecê-los, embora penalizado por ter sido nestas circunstâncias; espero
voltar a vê-los.»
Os meus colegas
esperavam-me; pareciam irritados. - «Estamos
todos picados das pulgas! Maldita pensão, barulhenta e porca.» - «Pois eu, meus caros amigos, passei uma noite
razoável.» E contei-lhes a história. Riram, e até choraram de tanto rir.
Quando chegamos ao Banco não resistiram e acabaram por contar tudo a toda a
gente. Um dia o Administrador Geral chamou-me. - «Senhor Acácio: chegaram até mim rumores de uma fabulosa história;
queira recontá-la.» Eu tremia como varas verdes. Que iria acontecer?
Enchi-me de coragem e narrei o episódio como se tratasse de um filme tipo
siciliano. O Administrador ia rebentando a rir. - «Senhor Acácio, o senhor é incrível; não volte a fazer tal, se tudo
aquilo que me contou é verdade. Já imaginou como ficaria o prestígio do nosso
Banco se aquelas pessoas viessem um dia a descobrir a tramoia?»
O Acácio é assim;
inventa histórias camilianas e quase nelas nos faz acreditar.
Artigo
publicado em A Voz de Melgaço n.º 1027, de 15/4/1995.
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