sexta-feira, 3 de novembro de 2017

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
 
 
// continuação...
 
 
     Depois desta conversa fiada, amigo Henrique, quase me ia esquecendo do ano de 1966 e da Guiné-Bissau. É nesse território e nesse tempo que devo permanecer e não me obrigues, peço-te encarecidamente, a fugir à minha história.

     Pois bem: depois de umas horas de barco, viatura e algum trajeto a pé, lá chegamos a Cufar, ao nosso famigerado “quartel”. Abraçamos comovidamente os colegas que tinham ficado, tomámos uma banhoca sob os bidões previamente esburacados para o efeito, comemos uma refeição quente e deitámo-nos. Logo que acordei, li as cartas dos familiares e das madrinhas. Trouxe uma delas para ler. Queres…?

- Estou em pulgas…

- Ouve então, por favor:  

    

Querido afilhado
 

                           Recebi a sua carta e peço desculpa de só agora lhe responder, mas como tenho muito serviço, naturalmente que me compreende e perdoa. Neste momento não lhe posso mandar a minha foto, pois é impossível; como estou empregada, quando saio do emprego já os estúdios dos fotógrafos estão fechados, e por isso vai ter de esperar. Aproveitarei um dia que saia mais cedo… Para a próxima carta mando-lha, está bem?

                  Então como tem passado? Deus queira que quando esta receba esteja de boa saúde, esse o meu ardente desejo; olhe que, todas as noites, rezo por si e por todos os soldados que lutam aí. Daqui foram muitos para a Guiné, Angola e Moçambique, felizmente não lhes aconteceu mal nenhum, alguns já eram casados quando foram, desses ainda tinha mais pena, porque já possuíam um lar e filhos, e não sabiam se voltariam ou não.

               Neste bocadinho de espaço vou falar-lhe um pouco do meu passatempo favorito: gosto imenso de coleccionar fotos de artistas, tanto nacionais como estrangeiros, sou associada do clube de fãs do Conjunto Académico de João Paulo, já tenho imensas fotografias deles. Para mim são os melhores. Já ouviu falar? Claro que já – quem não ouviu? Também gosto de ouvir cantores estrangeiros e de ver cinema.

     Por hoje é tudo. Receba muitos abraços da madrinha muito amiga – e talvez a mais novinha!

                                                                          Fernanda 

 
 - Ela desconfiava que o meu amigo Cândido tinha outras madrinhas de guerra!

- Julgo que não. Ela estava a tirar nabos da púcara: queria saber se namorava, se me escrevia com outras… Faz parte da psicologia feminina.

- Mas pensa que ela queria namorar consigo?

- Não sejas impaciente; aguarda as próximas cartas. Agora vou prosseguir, se me deres licença: ainda estivemos na “terra da morte” mais uns dias. Fizemos algumas incursões na selva, não com a envergadura da outra, houve alguns recontros com a guerrilha, sem graves consequências, andámos novamente muito perto da aldeia dos macacos, fomos uma ou outra vez a Catió, abatemos uma serpente com vários metros de comprimento, corpulenta, que se tinha atravessado no nosso carreiro, pregando-nos um enorme susto, pois nunca tínhamos visto nada igual, nem no Jardim Zoológico, e corria a lenda de que estes répteis engoliam pessoas! Finalmente apareceu uma Companhia para nos substituir. O nosso destino seria o norte: as densas matas de Teixeira Pinto (Canxungo), Calequisse, Caió, Bula, Cacheu – uma vasta zona.

 
*
               

15.º Capítulo


TEIXEIRA PINTO

 

       Esta Vila ostentava o nome do major João Teixeira Pinto (1876-1917), «herói da ocupação militar da Guiné». Em 1912 era Chefe do Estado-Maior. Em 1917, quando decorria a primeira guerra mundial, dirigiu-se a Moçambique, onde morreu numa batalha contra os alemães. O PAIGC retirou essa designação logo que a Guiné-Bissau se tornou independente e baptizou-a de Canxungo.

 
     Cândido, depois de ter gozado umas curtas férias no Alto Minho, encontra de novo o amigo e prossegue a sua narrativa:


- Nesta região, onde a agonia e o sonho se entrecruzaram, habitavam em grande número os manjacos. Além desta etnia, havia também os mancanhas e felupes. Estes últimos, que predominavam na outra margem do rio Cacheu, usavam como armas de caça apenas arcos e setas, cujas pontas envenenavam para a presa não lhes escapar no caso de ser atingida.

     Nessa Vila deparei com alguns indivíduos que me pareceram indianos ou paquistaneses, mas que depois me disseram ser naturais do Líbano: dedicavam-se ao comércio, na comprida avenida, cerca de um quilómetro, à volta da qual tudo girava; aí havia também uma pequena igreja católica, uma escola do ensino primário, e os lupanares!

     Raros eram os autóctones que se vestiam à europeia: apenas uma raquítica tanga cobria as suas partes pudendas. Raríssimos também aqueles que falavam a língua portuguesa: somente os que conviviam mais assiduamente com brancos, ou exerciam atividades como seus empregados.

     Os guineenses, duma maneira geral, estavam demasiado afastados da civilização ocidental.

- Como é possível, depois de séculos de permanência portuguesa! – exclama Henrique, quase furioso.

- Os portugueses não penetraram no coração de África como o fizeram no Brasil. Preferiram, por razões de segurança, manter-se no litoral, perto da costa, onde haveria sempre um barco que permitisse a fuga em caso de necessidade. Os negros são, de longe, mais perigosos do que os índios.

     Ao longo de milénios, estes povos viveram isolados e a bem dizer só a partir dos anos sessenta deste século XX, e devido à guerra colonial, é que a tropa entra nessas densas matas africanas e contacta com as tribos do seu interior.

     Muitos portugueses ainda hoje estão convencidos de que na Guiné-Bissau apenas existia um grupo homogéneo - «o negro da Guiné lava a cara com café». Isso é completamente falso e fantasioso. Existiam, e ainda existem, variadíssimas etnias, com culturas próprias, com chefes distintos, ocupando zonas diferentes, que defendiam, com unhas e dentes, dos eventuais ataques das outras tribos. Muitos desses grupos étnicos não se entendiam entre si, guerreavam, se motivo houvesse para tal, e não falavam a mesma língua! Uns falavam o balanta, outros o fula, o manjaco, o mandinga, o felupe, o baiote…

- E a língua portuguesa…

- O crioulo e o português começavam a desempenhar o papel de línguas de aproximação entre eles, e entre eles e os europeus.

Sem comentários:

Enviar um comentário