sábado, 6 de fevereiro de 2016

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves


// continuação...


     Traça o Dr. Teixeira de Carvalho – «Bric-a-Brac», 1926, p. 257 – um quadro do estado das cadeias de Lamego nos tempos das lutas liberais. Presos aos montões, tocando os corpos uns nos outros, cheios de sarna martirizante e contagiosa, para ali apodreciam os políticos contrários. Foi naquele antro infecto, às mãos de portugueses, que Tomás José acabou a sua vida, ele a quem as armas dos franceses respeitaram. // Um outro revoltoso foi o capitão-mor João António de Abreu Cunha Araújo, Cavaleiro da Ordem de Cristo, depois condecorado com a medalha de Fidelidade e comandante da primeira Brigada de Ordenanças na província de Entre Douro e Minho. // Exercitara-se noutros tempos no posto de Capitão de Ordenanças e ascendera à actual patente em 21/5/1799, à força de votos alcançados numa competição leal e franca com os mais lídimos representantes de muitas das melhores casas da terra – a do Pé da Matriz, a dos Magalhães, a dos Sousa Gama, a de Galvão e a do Reguengo – sob as vistas do «Dr. João Nepomuceno Pereira da Fonseca, do Desembargo de Sua Majestade Fidelíssima, que Deus guarde e seu Corregedor, com alçada e correição nesta dita comarca, etc.» e, em consequência de «uma Ordem da Junta da Sereníssima Casa de Bragança, pela qual Sua Majestade Fidelíssima lhe determina faça proceder à Eleição do Posto de Capitão-Mor desta referida Vila e seu Distrito
         E a comandar superiormente as Ordenanças melgacenses o encontrou o movimento insurreccional contra os franceses. Tinha casado poucos anos atrás, em 18/3/1805, com D. Maria Luísa dos Reis, natural de Golães, no Couto de Paderne, de família rica e respeitada, e vivia com sua esposa no Solar do Rio do Porto, «naquelas casas novas» levantadas por seu avô à custa de muita saca de dinheiro e que seu pai, o Dr. João Manuel Gomes de Abreu Cunha Araújo, formado pela Faculdade dos Sagrados Cânones da Universidade de Coimbra, aformoseara com o brasão de suas armas, passado em 1/9/1793:

   «Escudo esquartelado. No primeiro quartel, as armas dos Cunha, que são em campo de ouro, nove cunhas de azul postas em três palas. No segundo, as dos Araújo, em campo de prata uma aspa azul, firmada no escudo e carregada de cinco besantes de ouro. No terceiro, as dos Gomes, em campo azul um pelicano de ouro com três filhos bebendo o sangue do mesmo que está ferindo o peito e, no quarto, as dos Abreu, em campo vermelho cinco cotos de asas de ouro com sangue nas cortaduras, a seu direitos, postas em sautor. / Elmo de prata aberto guarnecido de ouro. / Paquife dos metais, e cores das armas. / Timbre dos Cunha, que é um grifo de ouro nascente, acunhado de azul, com as asas de azul, acunhadas de ouro

       Como diferença puseram-lhe uma brica vermelha com um farpão de prata.

      Os Cunha Araújo de Melgaço, moradores na rua do Carvalho ao Sol, tinham-se aliado por casamento com os Gomes de Abreu, da freguesia de Boivão, do Couto de S. Fins, no termo de Valença, e deles descendia o nobre conjurado. No Rio do Porto, na casa de D. Camila Veloso, viúva de Afonso Gomes Claro, dos Claro que serviam nas mesas da Misericórdia na primeira metade do século XVI, estando também presentes dois padres, um, irmão do noivo, e outro, da noiva, lavrou-se uma escritura esponsalícia em 1/7/1720. // A seguir casaram seus avós, o Dr. João António de Araújo com D. Mariana Gomes de Figueiroa e, como a casa era pequena e pequeno o seu recreio, tomaram de emprazamento por três vidas aos frades do Convento de Paderne, em 1748, o prazo das Serenadas, constituído por campos e vinha, prazo que pelo nascente tinha setenta e cinco varas de cinco palmos e confinava com terrenos deles e, pelo poente, media noventa varas e confrontava com uma congosta, caminho antigo trilhado pelo povo da Vila para os moinhos velhos e para o monte dos Preguiçosos; do norte, por onde media quarenta varas, chegava às trincheiras da praça, prova evidente para não poder situar-se neste local o antigo Campo da Feira de Fora e do sul beijava o regato de Mijanços, contando por este lado quarenta varas. Aforado o terreno, levantaram as suas Casas Novas gastando alguns milhares de cruzados, sem pedir uma poalha a quem quer que fosse. Pelo contrário, compravam terras e emprestavam dinheiro, muito dinheiro com as suas normais condições.
        Um ano, em 1767, o verão apresentou-se de mau cariz. Chovia constantemente e nos campos apodreciam e perdiam-se os frutos. Seu avô era então o provedor da Santa Casa e – feliz daquele que sente no peito uma crença sincera e arreigada – aproveitou o dia 8 de Setembro, todo mariano, para ordenar uma procissão de preces ao Senhor dos Santos Passos, por causa do rigoroso tempo e para salvação dos frutos. A procissão de penitência fez-se levando a maioria dos comparecentes, às costas ou à cabeça, pesadas pe-dras ou incómodos troncos de árvores, caminhando descalços desde a igreja da Misericórdia à linda capela dos frades de Fiães e aí terminou por um sermão, pago por ele, em honra de Nossa Senhora da Orada.
         Hoje quase nada disto vemos - porque tudo está mudado. Os moinhos foram-se; no monte dos Preguiçosos está hoje a moradia de casas de um capitalista e nos campos das Serenadas erguem-se os Paços do Concelho, um jardim público e o mercado da Vila. E a crença... a crença também se alou, segundo parecerá a quantos assistam, recolhidos, aos actuais desfiles em romagem à Orada a impetrar colectivamente bênçãos de Deus. / Seu pai, o bacharel João Manuel de Araújo, tinha desempenhado e desempenhava ainda naquele ano os maiores cargos da terra. No tribunal a sua figura impunha-se. Muitas vezes era ele quem presidia às audiências, por comissão dada pelos Juizes de Fora. Os seus cabelos brancos eram garantia da sua seriedade. Homem honesto, tinha bom nome.
         E o filho, já pelo correcto desempenho do alto cargo militar para que fora eleito por falecimento de Luís Manuel de Sousa Gama, morgado da Serra, já pelo seu fino trato social; quer pela influência, captada para a casa por seu pai nas lides do foro e nas cadeiras da Câmara e pelos padres da família, que longos tempos paroquiaram freguesias como Chaviães e Cristóval, quer ainda pela grande e sólida fortuna, constituída por dinheiro e bens de raiz, disseminados pela Vila, Chaviães, Paços, Cristóval, Rouças, Prado e Paderne, o capitão-mor era um grande influente no meio.
         O seu espírito liberal e disciplinador atiçou-o para a revolta dos melgacenses e nela se lançou de alma lavada e coração generoso, com a mente cheia de fumos da vitória. E sem o horror das responsabilidades, calma e serenamente reuniu logo e comandou os restos improvisados das destroçadas companhias de Ordenanças. Seu velho pai, apoiando-o, mais o incitou a tomar a peito o exercício do seu cargo e a dedicar-se, cada vez mais, ao constante aperfeiçoamento dos poderes ofensivo e defensivo da força militar por si comandada.


// continua...

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