domingo, 17 de setembro de 2023

 ENTRE MORTOS E FERIDOS

(Dois anos de guerra nas matas da Guiné-Bissau)

Por Joaquim A. Rocha   



12.º Capítulo

 

A MASCOTE

 

    A tarde estava linda. Pelas ruas da cidade banhada pelo Tejo passeava imensa gente, olhando as montras, algumas com manequins expostos que pareciam mesmo pessoas! As roupas, o calçado, os livros, etc., estavam muito bem colocadas, tudo arranjadinho, atraente! Em tudo se notava a mão do artista, do mestre em decoração. Os saloios ficavam embasbacados com tanta beleza, com tanta arte. Apetecia comprar tudo!

     Henrique fora o primeiro a chegar ao Café. Sentou-se, como já era seu hábito, na esplanada e aguardou pacientemente a chegada de Cândido.

     Este não demorou muito. Tinha almoçado, como habitualmente, num daqueles restaurantes da Baixa lisboeta, quase todos geridos por minhotos ou galegos. Os preços eram acessíveis, o raio do ordenado é que não crescia, e por essa razão tudo parecia caro.

     Sentou-se à beira do amigo, sorriu, e disse:

 

- Deves estar ansioso por saber que tipo de mascote tinha a minha Companhia?!

- Estou mesmo. O que, ou quem era?!

- Chamava-se Mamadu. Era um rapaz de raça negra, com um metro e sessenta de altura, aproximadamente, magro, mas com boa aparência, com a pele acastanhada. Parece até que estou a vê-lo! Vinha da misteriosa mata, essa selva imensa e impenetrável, densa, inacessível, traiçoeira. Não teria mais do que quinze anos de idade; era filho da floresta africana e do deus Sacarabu «deus justo, terrível nas suas vinganças e ávido de sangue…» que o gerou numa noite de tormenta e lhe pede apenas que sobreviva; a partir de agora será também filho da tropa.

     «Fula amigo de branco» - dizia-nos ele no seu português criança. «Balanta inimigo, balanta quer independência, balanta quer dominar Guiné

     Isso talvez fosse verdadeiro. O homem balanta, de rosto altivo, arrogante, peito de atleta, não desejava o homem branco no sagrado solo guineense; queria ser senhor e não escravo – ele não se sentia, ao contrário de outras tribos, inferior ao europeu. Pensava: «Nenhuma raça é superior a outra, o homem é um ser universal, tem as mesmas capacidades. A sua vivência, os seus interesses, é que são diferentes uns dos outros

     Lamentava que os brancos tivessem ido para África como senhores e não como iguais. Agora era tarde: só através das armas poderiam os negros reapoderar-se das suas antigas heranças, dormir em paz com os seus espíritos avoengos.          

     Os fulas não pensavam assim. O europeu, segundo eles, trazia o progresso: as fábricas, as máquinas, a estrada, os carros, as armas de muitos tiros, e acima de tudo o dinheiro, que tudo comprava! Sabiam que o branco se dava bem com o negro desde que este o respeitasse, fosse humilde, trabalhador, obediente. Reconheciam-lhe superioridade em quase todos os domínios e não punham em causa a sua justa autoridade.

- Isso significava que os fulas e os balantas se odiavam? – pergunta Henrique, admirado, mastigando mais um tremoço.

- De certo modo, sim. Os balantas, porém, não estavam sós. Outras etnias, que antes se guerreavam entre si, uniam agora os seus esforços a fim de expulsar o intruso, o usurpador, que lhes tentava impor conceções e estilos de vida diferentes dos seus; costumes e crenças estranhas e nocivas – a aculturação forçada!

- E o miúdo? Que fazia?

- Mamadu estava radiante. A tropa dava-lhe comida, roupa e uma cama para ele dormir. Dera-lhe também uma arma para combater contra os balantas, essa tribo de homens fortes e orgulhosos que ele odiava. Os fulas eram inteligentes, mas não fortes; com a ajuda do homem branco, sob as suas ordens e orientação expulsariam do seu amado chão esses indivíduos indesejáveis.

- Então não era casual a sua colaboração com a tropa?!

- Os fulas possuíam o seu programa de ação, o seu plano. Todos veriam como eles seriam capazes de o pôr em prática!

     Mamadu tinha sonhos, estratégias, ambições. Na Companhia todos gostavam dele: aqueles dentes branquíssimos abriam-se prodigamente, num sorriso sem fim, às solicitações do soldado – era a mascote. Tudo correria bem daí para a frente: graças ao Mamadu!

- Vocês então acreditavam que ele lhes trazia sorte!

- Com certeza. Como o trevo de quatro folhas.

 

     Passou a acompanhar-nos em todas as operações. Sem aparente cansaço, sempre atento, um sorriso satisfeito bailando-lhe nos olhos brilhantes e enigmáticos, disparando com o à-vontade do hábil atirador profissional!

     Estava na guerra, estava ali para matar. Era a sua opção: matar, matar sempre, até ao último inimigo. Era um jovem formado na escola da guerra; a sua academia seria o próprio local das operações. A logística, balística, ou quaisquer outras ciências ou técnicas do âmbito, ou foro militar, a ele, nada lhe ensinariam, pois o instinto, o ódio, a determinação e a sagacidade superavam de longe essa carência.        

- Frequentara a escola?

- Suponho que não. Não me recordo se te informei que escolas, mesmo do ensino primário, só as havia em Bissau! No entanto, nunca ninguém soube se ele escrevia, lia e contava. Também de pouco lhe serviriam esses conhecimentos ali: manejar a arma com destreza, destruir sem compaixão, e sorrir, sorrir sempre, eram de longe dotes mais importantes, necessários, imprescindíveis... A guerra não se faz com poemas: faz-se com tiros, com raiva, com sangue, com morte.

     Mamadu não tinha nada de idiota, sabia isso. Ali, no inferno de Dante, não havia lugar para devaneios; as ideias deviam transformar-se em munições e os sonhos em palpáveis realidades. O jovem, que tinha somente quinze anos de idade, ou pouco mais, também sabia isso; adaptou-se à guerra, e esta jamais o desiludiu, o dececionou.  

- Até parece que o Cândido estava lá apenas como observador!

- De certo modo, sim; eu nunca tive espírito de guerreiro. Era civil fardado e não militar. Esses são diferentes de nós: no pensar, no agir, em tudo. Todos aqueles anos de lavagem ao cérebro, aboletados, moldam inexoravelmente o seu espírito. Mas vou dizer-te uma coisa: existia, sem dúvida, uma certa harmonia naqueles grupos heterogéneos: a tropa, os amigos da tropa, os inimigos da tropa e dos seus amigos! Lutava-se rijamente: uns, para manter o seu “status quo”; outros, para instituir o seu regime; e ainda aqueles que queriam preservar a tradição, os ancestrais costumes. Duas civilizações, várias culturas, diferentes e antagónicas, frente a frente, numa luta sem tréguas e sem fim à vista!

 

     O moço, talvez analfabeto, apercebia-se do conflito. Não sabia História, nem sequer Geografia; sabia, isso sim, que Alá significava o Deus e Maomé o seu profeta; que o Corão era o grande livro sagrado dos muçulmanos e que nele se ensinava: «dente por dente, olho por olho», ao contrário do cristianismo, que sugere que se dê a outra face a quem nos bate, mas na prática tanto uns como outros, se puderem, arrancam dentes e olhos aos seus inimigos.

- O rapaz acaba por ser uma figura exótica, uma espécie de extraterrestre, do seu ponto de vista…

- Talvez. Foi em Bolama que o vi pela primeira vez, naquela ilha bela e estranha, a ilha das noites serenas e dos amores adiados. Ao princípio imaginei que se tratava de um prisioneiro, mas não: era a mascote! Nunca soube como o encontraram ou como ele encontrou a Companhia. E logo naquela operação que faltei – a minha febre subira aos quarenta graus! E por causa daquelas feridas, a que dão o nome de impigem, na virilha, entre pernas, provocadas sem dúvida pelas lamas asquerosas das intermináveis bolanhas. Pensei morrer.

     Caramba! Como eu gostaria de ter assistido a tudo; não teria o mesmo encanto, o infinito mistério, mas saberia. E os meus camaradas apenas me informavam: «surgiu!»

     Durante muito tempo permaneceu na Companhia. Só a abandonou, desaparecendo misteriosamente, como surgira, como o vento depois da procela, quando a destacaram, no ano de mil novecentos e sessenta e sete, para Contuboel, uma zona mais pacífica.        

     Parecia alheio ao mundo que o rodeava: as cubatas incendiadas; os corpos desfeitos; as fugas rocambolescas; o medo e a morte, os feridos, tudo o deixavam indiferente. O rapazinho era feito de aço e de ação! E aquele sorriso de anjo guerreiro, apocalíptico, permanecia, teimoso, no seu fidíaco rosto. Sem desfalecer, sem jamais dar parte de fraco, continuava a sua justa luta.

- Andava fardado?

- Mais ou menos. Vestiu camuflado do exército luso e teve direito a G-3, a metralhadora que então se utilizava. Deixou de ter idade, de ter família, de ter chão. Estava onde estivesse a Companhia, pensava militarmente, pensava guerra, respirava e vivia tempestade!

     Teve direito a medalhas, qual atleta vitorioso nuns quaisquer jogos olímpicos, louvores mil; tornou-se herói nacional! Um exemplo a seguir. Os antigos escultores gregos teriam de ser ressuscitados para produzirem a sua estátua: a colossal e eterna estátua do pequeno grande Mamadu!

- Está a exagerar – farfalhou Henrique.

- Talvez… Medalhado, e já com a arca cheia de troféus, não parou – isto eram coisas de somenos. O seu objetivo pairava alto, residia na sua mente obcecada. A sua tribo… tinha-se esquecido dela! O filho da selva lutava em nome dos fulas, mas estes já não o reconheciam.

     Se tivesse olhado com atenção à sua volta verificaria que quase todas as etnias da Guiné-Bissau tinham esquecido as suas antigas rixas e, unidos, combatiam o colonizador. Não olhava! Estava fora do tempo e do espaço. Os chefes tribais compreenderam finalmente que o ódio cansa e que o seu inimigo nunca poderia ser o seu irmão de cor, de raça, de estirpe.

- O gaiato ficou, desse modo, isolado!

- Completamente sozinho. A sua guerra terminara no dia em que a maioria das etnias se abraçaram e decididas lutavam contra o regime opressor. Encontrava-se entre a espada e a parede. Passou a ser um alvo a abater!

- E o que é que ele fez?

- Quando toma consciência da situação desaparece: «Desapareceu o Mamadu» - comentavam com emotividade os meus camaradas. «Ninguém sabe para onde foi!» «Ele não era deste mundo» – disse-lhes eu por graça.

    «Mamadu reencarnava Farang, herói dos Sorcos», brincava o alferes Briosa, amante dos mitos e das lendas.

     «Farang?» - perguntaram todos a uma só voz.         

     «Querem saber quem foi essa importante personagem?»

     «Sim, meu alferes; conte» - pediram alguns soldados.

     [«Então…, ouçam atentamente:

    

     (…) Farang ficou triste. A partir daí lutou incansavelmente contra todos os génios e deuses contrários. Mandou construir uma guitarra e começou a tocar. Ouvindo a música, todos os peixes do rio vêm para a sua beira. É assim que agora pesca e dá alimento ao seu clã.»]

 

*

 

     «Que linda história, meu alferes. Estaríamos, se pudéssemos, um dia inteiro a ouvi-lo», apressa-se a comentar o “Almada”.

 

*

 

     Henrique, tudo escutava com redobrada atenção. Curioso, pergunta:

 

- E nunca mais viram a vossa mascote?!

- No término de 1967, quando entramos no Uíge para regressar a Portugal, um soldado gritou: «Olhem o Mamadu, é ele, olhem…! Está a dizer-nos adeus.» Não sei se alguém o viu além desse camarada, pode ter sido uma alucinação. Eu, só tendo olhos para o mar, não o vi, confesso, mas senti um arrepio pelo corpo todo, o seu forte abraço de despedida, a sua presença ausente!

 

 13.º Capítulo

 

A CAMINHO DE CUFAR

 

 

     Mais um domingo lisboeta. As lindas ruas da Baixa… sempre a abarrotar de gente! Começava a notar-se turistas estrangeiros e imigrantes africanos por tudo que era sítio. Políticas de imigração não existiam; entrava quem queria neste pequeno e periférico país. Depois da descolonização vieram de África centenas de milhar de pessoas: novas, velhas, saudáveis e doentes; honestas e nem por isso.

     Os dois amigos reencontraram-se, como já era hábito, no Café Suíça; mas agora já era difícil arranjar um lugar, pois as mesas estavam quase sempre ocupadas. Esperaram um pouco e lá conseguiram sentar-se. Henrique perguntou:

 

- Depois de Bolama foram para onde?

- Encaminhamo-nos para Cufar (que numa das línguas locais significa morrer, terra onde se morre).

     Três dias antes de partirmos escrevi a uma cantora do norte, a tal namorada do fadista, na altura já muito em voga, de seu nome Mariana, a pedir-lhe que fosse minha madrinha de guerra. O Luís Augusto, assim ele se chamava, deu-me a morada e eu não hesitei – se ela não respondesse o que perderia eu? O fadista queria era ler as cartas dela, pelos vistos estavam indiferentes.

- E ela respondeu?

- Nem pensar! Silêncio absoluto. Responder a um soldado? Se eu fosse oficial! Escrevi também a duas raparigas do Minho, de origem modesta.

- Essas responderam.

- Sim, essas aceitaram o meu pedido. Queres que te leia as cartas?

- Adoraria.

- Como tive sete madrinhas de guerra, somente te vou ler as cartas de uma delas, apesar de serem todas interessantes.

- Sete?! Nada mal: uma para cada dia da semana! Gostaria que as lesse todas, mas já que não quer…

- Não se trata de querer ou não querer, simplesmente seria enfadonho para ti. E tens sorte eu trazer uma dessas cartas, pois com as mudanças de quarto não sei como ainda as conservo! Eis a primeira:

 

  

Senhor

 

                Recebi o seu aerograma e realmente fiquei surpreendida e para mais sendo de uma pessoa para mim desconhecida. Ainda gostava de saber quem foi esse meu conterrâneo conhecido que lhe deu o meu nome e morada, mas já calculo quem seja e da minha parte diga-lhe que mando os meus parabéns; eu não me importo ser madrinha de guerra do senhor, mas desde já lhe digo que sou ainda muito nova, pois tenho somente dezoito anos. Se isso não lhe causa nenhum impedimento, eu pela minha parte aceito.

     Diz o senhor que é de Melgaço, realmente é uma terra muito linda, já lá fui algumas vezes, mas é pura coincidência, tenho também uma pessoa na família que foi madrinha de um rapaz dos seus sítios, que estava em Moçambique, mas felizmente já voltou para cá são e salvo.

     E é tudo, não tenho mais nada para lhe dizer, mas há de ver que daqui para o futuro as cartas que lhe escrever não vão ser curtas, pois a mim parece-me que se fosse jornalista havia de ter sempre qualquer coisa para pôr nos jornais, quem sabe, ainda pode ser que o venha a ser, ainda sou nova e o mundo dá tantas voltas…

     Receba cumprimentos sinceros da que já pode considerar madrinha de guerra.

 

                                                                                  Fernanda

 

 

- Parece-me que teve sorte. Moça brilhante a escrever, nova e culta. Uma minhota inteligente.

- Sim, é verdade. No entanto…

- Aconteceu depois alguma coisa desagradável?!

- Se não te importas, continuo a contar-te a minha modesta odisseia. Mais tarde digo-te o que se passou com esta madrinha. Não levas a mal?

- De modo algum! Preciso controlar a minha mórbida curiosidade.

 

*

 

- Vou continuar a minha história: as lanchas da armada lusa, feitas de chapa anti bala, equipadas com metralhadoras potentíssimas, transportaram-nos até Catió, interessante vila perto do Cantanhez (mata densa e reconhecidamente perigosa, uma das bases do PAIGC: Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).

     Em toda esta região habitavam as etnias designadas de balantas e nalus. Os primeiros distinguiam-se pela sua corpulência e cor negríssima, daí os seus dentes parecerem mais brancos do que na realidade eram. Diziam ser um dos povos mais evoluídos da Guiné.

     Saímos quase de noite, ao lusco-fusco, quando todos os gatos começam a ser pardos, a fim de não levantar suspeitas, e passadas algumas horas entrávamos no pequeno rio Combidjam.

     Os marinheiros, receosos, pediam-nos silêncio, para assim poderem escutar eventuais ruídos que das sinuosas margens surgissem.

- E foram atacados?

- Tudo correu bem, felizmente, até Catió, aonde chegámos já de madrugada. No cais éramos esperados pelos velhos e cansados camiões, que nos conduziram até ao quartel.            

     Essa vila de Catió revestia-se de uma beleza exótica e inesquecível. Se não fora sacrilégio, quase apetecia dizer: «Deixem-me ficar aqui para sempre!» Mulheres negras, com as suas roupas de cores garridas, pés completamente descalços, amplas coxas e largas ancas, sorriso nos grossos lábios, encontravam-se na berma da estrada oferecendo, a preços irrisórios, toda a casta de fruta da região: laranjas (mesmo quando já maduras continuam a ter a cor verde), banana, manga, caju, e tantas outras variedades! Muita dessa fruta, sobretudo manga, coco e banana, matou-me diversas vezes a fome durante esse período longo de carências.

- Até parece que se encontrava no paraíso! – diz Henrique, num tom jocoso.

- Se não fosse a guerra poder-se-ia afirmar isso; mas a verdade é que a maldita rondava por perto. As instalações militares ocupavam uma área extensa. Dentro, em forte rede e rodeada de arame farpado, situava-se a prisão para os “turras”. Pareciam animais acossados! Serviam de chacota e gáudio aos soldados mais rudes e mais atrevidos, aos brincalhões exibicionistas, ao pagode! Os insultos choviam em português das Beiras, do Alentejo, de Trás-os-Montes, do Alto e Baixo Minho, de todo o país!

- Aposto que não gostou de ver isso!

- O meu peito arfava. Não queria crer. Circo é circo; zoológico é zoológico! Não estávamos a tratar com palhaços, muito menos com feras, mas sim com pessoas que tinham sido presas por defender ideais diferentes.        

- Não me diga que interveio?!

- Vontade não me faltou. Um furor imenso invadiu minhas entranhas, todo eu tremia. Um oficial, alferes ou tenente, já não me recordo bem, notando a minha agitação, lembra-me em um tom que não admitia réplica: «Na guerra as coisas passam-se assim! Somos inimigos. Pensas tu que os turras, se por azar um dia nos apanham, nos tratarão melhor?!»

- Não teve coragem, com certeza, de replicar.

- Disse-lhe, embora com respeito, olhos nos olhos: «Nunca estive preso, por isso não sei; sei, isso sim, que nós somos pessoas civilizadas, não vis carrascos. O cristianismo, que quase todos os portugueses professam, é tolerante, não repressivo

- E ele, como reagiu?

- Deu-me uma leve palmada nas costas, e foi-se embora. Sabia que não valia a pena continuar a conversa. Eram dois mundos que estavam em confronto: o mundo bélico e o outro, o da harmonia, da paz, da conciliação. Nós, a minoria, teríamos de ver, ouvir e calar. Lamentações, para quê? Os seus corações eram feitos de granito, empedernidos, a lei da guerra imperava, a religião ali não tinha lugar – estava a mais, estorvava! Fomos encaminhados para o refeitório. A fome apertava e não resistimos a uma refeição quente. Depois do “repasto” pediram-nos que esperássemos. Breve chegaria uma Companhia experimentada para nos escoltar até Cufar.

- Iam finalmente entrar no território do lobo!

- Do lobo, da hiena, do tigre, do chacal, da pantera, do crocodilo, do tubarão, eu sei lá!... De repente, alguém disse: «Já está atrasada!» E logo outra voz alvitrou: «Certamente surgiram problemas    

     Essa constatação tinha, infelizmente, fundamento. Quando a referida Companhia chegou, vinha exausta. Nos olhos dos nossos camaradas notava-se ainda o terror, o medo incontrolável, devido a tudo aquilo que acabaram de passar. Informa um deles: «Sofremos dois mortos; vários feridos! Uma emboscada perfeita: não tínhamos para onde fugir! Podiam, se quisessem, matar-nos a todos.» A sua voz, em um tom plangente, comoveu-nos até às lágrimas.

- O sítio não era para brincadeiras! – alvitra Henrique.

- Não era mesmo! Terra da morte, de sofrimento, Cufar aumentava assim a sua sinistra fama. Mas a vida resume-se a esta insignificância: uns partem, outros vão aguardando, mesmo sem terem consciência disso, a sua vez. Segundo a ciência, ninguém morre antes de nascer; e ninguém se livra da loba voraz, insaciável!

- Mas acabar assim!... – lamenta Henrique.

- Depois da morte ninguém sente nada, nem o zumbir do mosquito. Os sinistrados sim: sofriam horrivelmente; os seus gritos de dor ouviam-se a distância!     

- E incomodavam!...

- Ainda, por cima, o quartel não tinha na altura nenhum médico, apenas enfermeiros de segunda categoria, formados já na tropa! Os feridos foram evacuados para Bissau.

- E a sua Companhia, ficou em Catió?

- Esse era o nosso desejo, mas não aconteceu assim. Logo a seguir o tenente Fontelas, com a sua voz de trovão, gritou, tentando galvanizar-nos: «Preparar! E nada de medos; todos teremos de dar contas ao diabo um dia. O soldado português não teme o adversário: enfrenta-o, como os forcados enfrentam o touro na praça

     Morte e vida; vida e morte! A existência falaz, tirana, passageira. Discurso de monge ou de filósofo. Que nos interessava isso? O que nós queríamos, jovens de vinte e um anos, não se encontrava ali.

- E partiram!

- Que remédio. Nós e o resto da Companhia que sofrera a emboscada. Pelo caminho que leva a Cufar passámos pela aldeia dos macacos. São aos milhares e provocam um alarido tal que se repercute por uma vasta área, pelas entranhas da floresta.

- Sentiram receio…

- Metem respeito ao mais destemido. Todo o trajeto teria de ser feito a pé e de metralhadora em posição de tiro. Uns soldados, virados para um lado; os restantes virados para o lado oposto – não fosse o demo tecê-las! De vez, em quando, deixava-se de ouvir qualquer ruído e o silêncio, sepulcral, abatia-se sobre todo o território envolvente. O medo e a expectativa paralisavam os nossos movimentos! Os corpos deixam de ter peso e só a alma, essência do nada, existe. É de facto uma experiência quase sobrenatural, inatingível.

- Qual a distância de Catió a Cufar? – pergunta o jovem, a fim de desanuviar o ambiente.

- Não deve ultrapassar os dez quilómetros; mas naquelas circunstâncias, parecia-nos um longo caminho, interminável, imaterializado – por mais que caminhássemos nunca mais se chegava ao destino!

     Na frente seguia um pequeno carro de combate (a moderna cavalaria); pronto para o que desse, e viesse.

- Funcionava como dissuasor...

- Os guerrilheiros temiam essas máquinas porque as suas metralhadoras varriam o terreno como as vassouras varrem o lixo!

    Passámos pelo local onde horas antes as duas forças antagónicas se tinham enfrentado. Notava-se nitidamente o capim pisado, ramos partidos, folhas espalhadas e restos de sangue. Um cheiro amargo envolvia todo aquele arvoredo. Uma sensação de raiva e de impotência invadia os nossos corpos, o sistema nervoso alterava-se, o cérebro por momentos nada controlava, jurava-se vingança.    

 



14.º Capítulo

 

TERRA DA MORTE

 

 

     A tarde na capital do país estava cinzenta, ameaçava chuva e trovoada, e o Cândido sem vir. O que lhe acontecera? Não era costume esperar tanto por ele. De repente avista-o ao virar da esquina. Vinha apressado. Sentou-se e pediu desculpa pelo atraso. Explicou o que lhe tinha sucedido, nada de grave, coisas que acontecem.

   O amigo deixou-o descansar um pouco e depois perguntou-lhe:   

 

- Fizeram o percurso de Catió a Cufar ainda durante o dia? 

- Sim, mas chegámos à noitinha. Fomos recebidos em verdadeira apoteose. E justificava-se essa euforia: íamos proporcionar a praças, sargentos e oficiais a sua colocação noutra zona menos perigosa, ou talvez o regresso à Metrópole se a sua prestação de serviço estivesse no fim.

- E as instalações, como eram?

- O quartel de Cufar, de quartel, a bem dizer, nada tinha! Tratava-se de velhas ruínas de um edifício, outrora uma fábrica de óleo de amendoim, rodeadas de arame farpado. A água para consumo e higiene era extraída de um fundo poço, mas a sua cor, cheiro e gosto, deixavam muito a desejar. Que saudades da água da minha terra: da Fonte da Vila, da Fonte do Vido, fresca e leve, sem sabor, sem quaisquer cheiros, com ela faziam-se refrescos divinais. Que saudades!

- Era mesmo o inferno!... – proclama Henrique, cheio de pena.

- Podes crê-lo. Camas… não havia! Dormia-se em colchões de borracha, os quais tínhamos primeiro de encher com o ar dos nossos pulmões: soprávamos, soprávamos, até ficarmos exaustos. Durante a noite acordava-se alagado em suor. O mosquiteiro de nada servia, visto não haver estrutura de suporte – as melgas assassinas tinham o seu alimento garantido.

     Os víveres e demais material chegavam de helicóptero ou avioneta; por transporte terrestre seria impossível – as perdas em vidas e bens seriam elevadíssimas. Nessa zona vivia-se em beligerância permanente e feroz. Outra coisa, porém, não se esperaria, pois olhando para o mapa vê-se que Cufar se situa bem perto da República da Guiné, país que sem rebuço apoiava a guerrilha anti portuguesa.

- Compreende-se: queriam a África para os africanos negros – acrescenta Henrique, até ali silencioso e atento.

- Eu hoje também aceito em parte essa teoria, apesar de considerar que o planeta Terra é de todos, cada qual deve residir onde bem lhe agrada, se não prejudicar, claro está, os outros. Porém, nessa altura, quem sofria as consequências dessa ajuda éramos nós! Enfim! São coisas para esquecer.

     Na primeira noite que aí permaneci acordei deveras sobressaltado, meio sonâmbulo, com o barulho ensurdecedor dos obuses e canhões que do improvisado aquartelamento se disparavam para o interior da mata. Até dava a impressão de que se estava a travar uma guerra contra os fantasmas da noite que habitavam a floresta profunda!

     Os holofotes, colocados estrategicamente, iluminavam todo o terreno à volta, mas mesmo assim convinha prevenir.

- Mas, com tanta luz, davam ao inimigo a vossa localização!

- Não se pode dizer que estivéssemos à mercê do “infiel”, pois de dez em dez metros existiam abrigos subterrâneos (não como os atuais, cómodos e à prova de bombas atómicas), nos quais se encontravam soldados bem armados e de ouvido à escuta.

- E como é que comunicavam entre si?

- Em lugar do tradicional «sentinela à alerta» e «alerta está» ouvia-se o matraquear caraterístico das metralhadoras G-3!

     Um episódio gravou-se para todo o sempre na minha mente: a fuga de dois prisioneiros através do arame farpado! Estávamos perante uma autêntica proeza, uma façanha inédita. Os tipos, apesar da pele rasgada e sangrando com abundância, fugiam velozmente pelo meio do capim em direção à mata. Pareciam lebres ou galgos! As balas das metralhadoras logo que nos apercebemos da fuga, buscaram, sôfregas, os seus corpos.

- Atingiram-nos?

- Nunca soubemos se escaparam ou não – quem se atreveria a transpor o arame para confirmar? Para lá da clareira era a floresta, e aí espreitava de forma permanente o perigo.

     De Cufar fazíamos regularmente incursões até à fronteira com a Guiné-Konacri. Pelo caminho, armadilhas colocadas aqui e ali iam ferindo, ou matando, alguns dos meus camaradas. Quando isso acontecia, improvisavam-se macas com ramos verdes e chamava-se, pela rádio, o helicóptero para levar as vítimas para o Hospital.          

     Os enfermeiros da Companhia, um cabo e dois soldados, por sinal muito corajosos, à exceção do furriel, que era um medricas, e cujos conhecimentos de enfermagem deixavam muito a desejar, raras vezes nos acompanhando, acudiam aos feridos consoante as suas possibilidades. Os nossos adversários aproveitavam esta situação algo confusa para iniciarem um ataque que, muitas vezes, durava duas ou três horas!

- Eles conheciam, certamente, muito bem o terreno – vocês não tinham hipóteses!

- Nenhumas! Numa dessas batidas, todos caminhando em fila indiana, eu ia em quarto lugar. De repente deu-se uma forte explosão. Fomos atirados em pirueta a metros de distância. Levanto-me, apalpo todo o meu corpo, e verifico que felizmente não tinha sido atingido por estilhaços. Os três da frente, entre os quais o alferes Bizarro, não tiveram a mesma sorte. Os fragmentos das granadas inimigas, armadilhadas por hábeis mãos, alojaram-se profundamente nos seus frágeis corpos. Apelou-se de imediato ao helicóptero. O oficial, que integrara a Companhia quando já nós estávamos em África havia dois meses, soubemo-lo mais tarde, teve de ir para Lisboa, pois o seu estado inspirava cuidados.

- E quanto aos soldados?

- Um deles encontrei-o há pouco tempo, num desses almoços anuais: anda numa cadeira de rodas! Era um latagão. Mete dó.

- O Estado dá-lhe alguma coisa de jeito?

- Uma miséria, segundo ele nos disse. Vai sobrevivendo! Bem, por hoje dou por terminada a narrativa, vem aí a noite, temos de ir jantar, amanhã é mais um dia de trabalho e de estudo.

- Se nos saísse a taluda não precisaríamos mais de trabalhar!...

- Essa só sai aos ricos, àqueles que jogam forte; de quando, em vez, compro uma cautela, mas nem a terminação!

 

Dias depois

 

 - Caro amigo Henrique: como nem só de violência vive o homem, quero falar-te novamente das madrinhas de guerra, e aproveito o ensejo, se mo permites, para lembrar agradecido o bem que nos fizeram. O seu papel foi muito importante, sobretudo no que diz respeito à suavização dos sacrifícios por nós suportados. Quando chegávamos de uma «operação» tínhamos à nossa espera as tão almejadas cartas, ou aerogramas, conhecidos entre nós por «poupa selos», «papa-léguas», «bate-estradas», cuja agradável leitura servia de bálsamo às tristezas e saudades dos familiares, da terra e dos amigos.

- Como é que vocês obtinham as moradas? – pergunta Henrique, intrigado.

- Fácil. Algumas raparigas eram da nossa terra; logo, sabendo o seu nome completo, estava tudo resolvido. As que não eram da nossa terra, conseguíamos a sua morada e nome através de soldados seus conterrâneos.

- Havia trocas, então!

- Exatamente. Destarte, eu tive a felicidade de me corresponder com madrinhas de Coimbra, do Porto, de Lisboa, do Minho, e até de França! Ao todo foram sete, como no outro dia te contei.  

- Eram uma espécie de namoradas?!

- Não as considerávamos tal, apesar de alguns rapazes virem mais tarde a casar com a sua madrinha de guerra – penso que se tratava de exceções. A nossa vida no ultramar era tão fugaz, tão instável, que seria da nossa parte quase criminoso estar a fazer promessas e juramentos a moças tão puras.

- Mas nem todos morriam, ou ficavam feridos – concluiu Henrique.

- Tens toda a razão, a maioria regressou a Portugal com o seu corpo inteiro; mas essas raparigas da província não teriam, nessa época, quaisquer dificuldades em ficarem noivas de emigrantes, e não deveríamos ser nós, egoisticamente, a evitá-lo, ou a adiar, tal casamento.

     Para aqueles que regressavam sem mazelas, a vida profissional só se equilibraria passados anos – raros voltavam ao trabalho ingrato do campo ou ao labor sujo e por vezes mal remunerado da oficina. Aspirava-se a outros espaços, normalmente a cidade, a outros horizontes.   

- E o tal amor à terra de nascimento?!

- Nunca ouviste dizer: «santos da casa não fazem milagres?» A nossa terra natal, quase sempre madrasta, já não nos cativava com caráter permanente. A pobreza, aquela pobreza consentida e envergonhada, deixava de fazer sentido. Tínhamos lutado em uma guerra, depois dela iríamos iniciar outra: esta, mais pacífica, mais previsível, mas nem por isso menos dificultosa! Além disso, com o pronto-a-vestir, as alfaiatarias tendem a encerrar – é o progresso!

- Já que quis abordar esse assunto, pedia-lhe que me lesse mais uma carta dessa sua madrinha.

- Terei todo o gosto. Ouve:

 

Querido afilhado

 

     Recebi o seu aerograma, no qual vi que estava de boa saúde; dou graças a Deus, pois é esse o meu desejo. Pelo que me mandou dizer, quanto a ser jornalista, não me expliquei bem; nunca me passou pela cabeça ser tal coisa. Que eu tivesse jeito está certo, pois como aqui na minha terra é um meio pequeno a gente sabe tudo, e quando vou para casa conto essas novidades, e lá dizem-me que podia ter essa prestigiada profissão.

     Afilhado, a sua muito estimada madrinha pede que lhe mande uma foto; já sei o seu nome, agora falta-me conhecê-lo. Depois eu mando-lhe a minha, mas é quando tiver tempo para a tirar, pois sou um pouco alérgica a tirar fotografias, mas desde já o aviso que não sou nenhuma beldade, como as artistas de cinema.

     Então o seu coração não o enganou quanto a eu lhe escrever, mas também não se enganou ao pensar que sou muito sentimental; há pessoas no emprego onde estou que me dizem que isso já passou de moda, encolho os ombros e não me interessa o que dizem, gosto muito da solidão, pois assim já a gente pensa à nossa vontade, mas também gosto de conviver com a minha família e com os meus amigos.

     Manda-me dizer que está no mato, por os filmes que vejo, ou certos documentários, tenho verificado o que passam os soldados. Isso aí é muito perigoso? Não se exponha muito aos perigos para eu cá não estar em aflições, com receio que lhe aconteça alguma coisa de mal.

     Agora vou-lhe dizer que quando me escrever não me escreva pouco, quando recebo cartas gosto que elas sejam grandes. Portanto, já sabe: quando me escrever quero ver os aerogramas bem recheados de palavras e nada de muitos espaços vazios. Sou nova, mas você há de pensar que eu gosto de mandar; é verdade, pois o meu mal às vezes é ser muito franca com as pessoas e depois quem fica prejudicada sou eu.

     Por hoje é tudo, receba muitos abraços desta sua madrinha muito amiga.

                               

                                                    Fernanda

 

 

- E então, o meu amigo, mandou-lhe a fotografia…

- Sabes, as raparigas da Metrópole pensavam, decerto, que havia ali à mão fotógrafos ou coisa que o valha. Muitas vezes tínhamos de esperar um ror de tempo, pois era raro ver-se um estúdio fotográfico. Só nas cidades, e não era em todas! Bissau tinha um pouco de tudo, mas estava longe, inacessível.

- Mas existe muita fotografia desse tempo…

- Isso em parte é verdade, mas porque alguns militares, talvez os mais endinheirados e evoluídos, dispunham de uma máquina; outros ganhavam uns escudos com essa atividade extra – possivelmente já seriam amadores, ou profissionais, antes, não sei. O problema residia, sobretudo, em fazer chegar os negativos à cidade e obter os rolos para tirar novas fotos.         

 

*

      

     A luta armada tem o condão de endurecer o espírito dos humanos. Os mortos, os feridos, os desesperados, já quase não conseguiam comover-nos, impressionar-nos, como no início da comissão. O que agora ocupava todo o nosso cérebro era a ideia obsessiva da sobrevivência e do regresso. Os meses passavam, embora lentamente, e mais um dia de vida significava mais uma vitória individual. Ninguém falava em vencer a guerrilha, pois sabíamos, ou pensávamos, por razões óbvias, que vencê-la seria praticamente impossível. Eles não precisavam de muita gente no terreno; poucos, bem treinados, conhecedores da zona, espalhavam o terror pela região.

- Estava a tornar-se um caso político…

- Penso que sim. Aliás, tenho a certeza disso. Somente os membros do governo e os deputados, em Lisboa, capital do decadente Império, poderiam, através de negociações, chegar a um acordo razoável com os líderes do PAIGC. Porém, o governo português, chefiado pelo ditador Salazar, não queria ouvir falar em tais coisas! A sua maneira de pensar e de agir tinham ficado bem claras aquando da «Abrilada», em 1961, esboço abortado de golpe, encabeçado pelo Ministro da Defesa, general Botelho Moniz, cujo objetivo seria encontrar uma solução de tipo federativo para o Ultramar.

- Não queria estar na pele desse general…

- Não sei o que lhe aconteceu. O “iluminado” de Santa Comba pensava que o nosso exército, desde que bem apoiado e moralizado, com uma retaguarda eficaz, levaria de vencida «esses grupos terroristas» mal armados e insuficientemente preparados militarmente.

- O professor universitário beirão subestimava o inimigo.

 - Penso que sim. Esses “grupos” conheciam o terreno como ninguém, eram apoiados pelas populações, e alguns dos seus homens tinham sido treinados por soviéticos e cubanos; além disso, possuíam armamento desses países. Por outro lado, o exército português encontrava-se a combater em Angola desde 1961, Guiné-Bissau (1963) e Moçambique (1964): nada mais, nada menos, do que em três frentes simultaneamente!

- Era quase impossível manter essa situação por muito mais tempo… assevera o interlocutor.

- Portugal, país pouco relevante e de influência reduzida no contexto das nações, se o compararmos com as grandes e poderosas potências, tão pouco e desarmoniosamente desenvolvido, não conseguiria com certeza aguentar por muitos mais anos essa desgastante guerra, quer em termos humanos (os jovens cada dia escapavam em maior quantidade para o estrangeiro), quer em meios económicos e financeiros, pese embora o facto de se dizer agora que nos cofres do Banco de Portugal se guardavam toneladas e toneladas de ouro!     

- Existia ainda a pressão internacional…

– Sim, sim; o nosso país estava a ficar isolado. Mais: tinha sido, no ano de 1961, humilhado pela União Indiana, de Neru. Como esquecê-lo? Como fazer de conta que não acontecera?

- Uma coisa que nunca percebi foi o facto dos colonos brancos não se terem organizado num Partido forte e pegado em armas para defenderem as suas vilas e cidades, as suas propriedades, em suma…

- Nem eu, meu amigo, nem eu! Dependeram sempre daqueles que iam da Metrópole, como eu e outros, que nada tínhamos a ver com aquilo, a África para nós encontrava-se a uma distância de anos-luz, e nem sequer cumpriam o serviço militar, e se o cumpriam ficavam normalmente em sítios onde não havia tiros! Não se queriam comprometer? Esperavam, para verificar para que lado os pratos da balança pendiam? O governo central não o permitiu? O que é certo, é que na África do Sul brancos e negros convivem, embora com algumas dificuldades, que só o tempo, e o exemplo, apagarão da memória. Ao fim, e ao cabo, a cor da pele não pode, nem deve, ser um obstáculo no relacionamento entre as pessoas.  

- No meu fraco entender, essas interrogações jamais terão resposta convincente…

- Havia muitos interesses em jogo. Muitos brancos já não se consideravam portugueses!

    

     O jovem Henrique empolgava-se com a conversa. Não conhecia África, mas pelo que lera e ouvira dizer julgava-se apto a ter também a sua opinião. Comenta:

 

- O meu amigo esquece que Salazar nunca permitiria a fundação de um Partido político nas ex-colónias. Depois, quando chegou Marcelo Caetano ao poder, em 1968, já era demasiado tarde!

- Talvez tenhas razão. Não abordo mais esse polémico assunto. O nosso dever como soldados portugueses era combater o inimigo da pátria. Não nos encontrávamos na guerra para discutir política; o nosso humilde papel consistia em honrar a farda que trazíamos vestida e o nosso país. Obviamente que não se lutava nas colónias com a mesma garra que lutaram os primeiros portugueses contra os chamados mouros, ou depois, já no tempo de D. João I, contra os castelhanos. Contudo, alguns militares, graças à sua coragem, ou jovem loucura, ombrearam com esses ancestrais guerreiros. Proezas individuais surgiam aqui e ali, numa demonstração de brio e brava ousadia. Nasceram para serem heróis ou mártires!

- O Cândido gosta imenso de filosofar…

- Adoro discorrer sobre a História; mas estou a maçar-te com estas coisas… Desculpa!

- De maneira nenhuma! Estou fascinado. Continue, por favor.

 

*

 

- Noite em Cufar. O céu estava limpo e estrelado. Milhares e milhares de estrelas cintilavam, como que a tentar transmitir aos terrestres uma mensagem de paz e de amor. Encontrava-me de guarda num daqueles abrigos subterrâneos. Um pesado silêncio, pouco habitual, cobria todo o espaço em volta de mim, dando-me a incómoda sensação de que algo estava para acontecer. Confesso-te, não sou dotado de qualquer tipo de premunição, no entanto…

- Algo se estava a passar de estranho. O que aconteceu? – solicita Henrique, com ansiedade.

- Passados que foram alguns longos minutos, uma estranha luz aparece no céu. «De que se trataria?» - interrogo-me. Avião não era de certeza – estes fazem um barulho enorme ao cruzarem os ares; os cometas, bólides do espaço, deslocam-se tão rapidamente que logo surgidos desaparecem da nossa vista! Talvez um helicóptero. Eureka! – até já nos tinham falado neles. Possuíam um motor silencioso e vinham pura e simplesmente observar, espiar-nos.

- Parece mentira – exclama Henrique.

- Mas é a pura verdade! Esses «grupelhos de tanga», como eram designados pela tropa portuguesa, possuíam meios aéreos, embora limitados a este tipo de máquina. O início! É provável que não fossem os naturais da Guiné-Bissau, mas sim os seus aliados, a pilotá-los. De qualquer modo, não estavam assim tão atrasados como a malta pensava ao princípio da contenda.   

- Como reagiu?! – indaga o jovem, cada vez mais curioso.

- Deixei-o aproximar-se e, mesmo sabendo que quaisquer balas disparadas não o atingiriam, desfechei um carregador inteiro da metralhadora na sua direção. Os outros soldados começaram também a abrir fogo logo que se aperceberam do que estava a acontecer. O helicóptero, que se encontrava a uma altitude razoável, deu uma volta e retirou-se. Um dos meus camaradas sentinela, furioso, gritou: «Filho de uma cadela; se voltas, estoiro-te como a um sapo

- Claro que essa ameaça não passava de fanfarronice!...

- Obviamente. Onde estavam os mísseis para o derrubar? Na ocasião, somente o Super-Homem nos poderia valer, mas esse encontrava-se nos Estados Unidos da América.

- E não tinha pouco para fazer! – brinca Henrique.

- Mas continuando: uma grande e enigmática «operação» ganhava forma. Atuariam em conjunto, na mata do Cantanhez, três batalhões (cerca de dois mil homens), algumas Companhias isoladas, e a milícia de Catió, comandada pelo famosíssimo Pedro Bâkar.

- Esse nome não me é totalmente estranho…

- Esse pequeno homem, de cor negra, com a patente de alferes de milícias, tinha – segundo a voz corrente – a sua cabeça a prémio. O PAIGC temia-o, visto que ele, com o seu grupo de trinta homens, espingardas ao ombro, assemelhando-se a personagens de um filme de ficção científica, fazia mais estragos nas suas fileiras do que um batalhão do nosso exército!

- Caramba! Era um autêntico predador – explode Henrique, admirado com tanta ousadia e coragem.

- Conhecia, tão bem ou melhor do que eles, toda a região de Catió e sabia, por informes habilmente recolhidos, onde o inimigo tinha posições. O exército português cumulava-o de mimos e comentava-se à boca semicerrada que o governo subsidiava os estudos superiores de um filho seu.

- O Cândido conhecia-o?!

- Já o tinha visto noutra ocasião. A sua pele, de um negro luzidio, cobria um corpo apolíneo: magro, mas musculado. Os seus olhos davam logo a sensação de uma firmeza e vontade inigualáveis. Não parecia arrogante nem autoritário, porém as suas ordens eram prontamente acatadas e cumpridas.

- Um chefe!

- Um líder, como agora se diz. À sua volta parece que nos sentíamos mais seguros… O nosso comandante chamou-nos e disse-nos: «Hoje é um dia importante e especial para todos; vamos enfrentar uma força inimiga considerável, uma fortaleza quase inexpugnável e até agora invencível. Nada de receios. Connosco vão três batalhões e a milícia de Pedro Bâkar. Além disso teremos apoio aéreo e de artilharia pesada. A “ação” pode durar dois ou três dias, dependerá dos resultados obtidos. Vamos tentar cercar o inimigo, acossá-lo, desalojá-lo, abatê-lo, escorraçá-lo do Cantanhez. Peço-vos firmeza, coragem, brio; o soldado português é digno, valoroso, intrépido, e hoje mesmo porá à prova essas qualidades

- Belo discurso! Esse senhor podia ser deputado! 

- Também acho. Com ele na Assembleia ninguém dormia. Arrancamos. Junto ao cais de Catió estavam as lanchas blindadas à nossa espera. Do rio Combidjam passámos ao rio Cacine. Os marujos, cautelosos, sempre atentos, não tiravam os olhos das margens. A emboscada poderia surgir a todo o momento – nunca fiando!

- Até eu estou arrepiado! – diz Henrique, estremecendo ligeiramente.

- Desembarcámos por volta das duas horas da manhã. Enterrados na lama até à cintura lá fomos andando, andando, em fila indiana, agarrados uns aos outros para não nos perdermos. Milhares de aves pernaltas alimentavam-se regaladamente naquelas enormes extensões de lama, a que chamavam bolanhas, indiferentes à “tempestade” que se avizinhava. Pregaram-nos um grande susto: pareciam guerrilheiros a apontar as suas armas! Já tínhamos caminhado bastante quando a voz do colega que ia à minha frente me sussurra: «Ordem para parar, passa palavra.» Assim fiz, mas muito a contragosto, pois encontrava-me ainda no lamaçal e não era nada agradável aguardar ali naquele sítio infestado de mosquitos enormes, sedentos de sangue, e a entrar-me pelas narinas um cheiro nauseabundo a águas podres e fétidas.

- O que vocês sofreram!...

- Em breve soubemos a razão dessa ordem. Os canhões dos quartéis mais próximos começaram a canhonear sem descanso a mata ali a dois passos. Pareceu-me que estavam a destruir o mundo e que a abóbada celeste ruía e desabava sobre nós! O festival teve a duração aproximada de uma hora.

- Ficou tudo de rastos!... – assevera o jovem ouvinte.

- Muitas árvores caíram, como corpos sem vida, aumentando ainda mais o barulho ensurdecedor; as outras árvores choravam baixinho, como que pedindo à mãe natureza proteção. Os incêndios alastravam um pouco por toda a parte; o crepitar das chamas tornava tudo aquilo num espetáculo dantesco, e um certo silêncio, conivente, aterrorizava-nos.

- Que cenário fantástico!... Até parece irreal.

- Aquele aparente silêncio durou apenas minutos. Foi breve! O som de aviões a jato fez-se ouvir quase de seguida. A aviação militar colaborava freneticamente numa das maiores operações, senão a maior, que até aí se levara a cabo na ex-província portuguesa.

     Os ágeis aviões (chamávamos-lhes “fiats”, porque possuíam motor dessa marca), apareciam e desapareciam a uma velocidade jamais vista. Os seus canhões e metralhadoras de bordo disparavam ainda mais rápido, se possível! Tudo com uma precisão milimétrica. Parecia incrível, mesmo inacreditável, como não nos atingiam! Bastaria um pequeno erro e alguns de nós seriam cortados como batatas para fritar!

     Ao romper do dia os pilotos retiraram-se. Recebemos então ordens para avançar. Andámos mais ou menos quinhentos metros e eis que o tiroteio começa.

- Como era possível, depois daquele massacre?!

- Também eu me interrogo: como se podia admitir, depois daquilo tudo, haver ainda turras vivos?! Eu a pensar que tinham sido completamente dizimados. Mas, não, estavam ali à nossa espera, como gatos que já viveram seis vidas e a última que lhes resta querem-na vender bem cara, ou mesmo preservá-la.

     De pé, de rastos, de qualquer maneira, fomos avançando, avançando… Gritávamos como possessos a fim de afugentar o temor e porventura o inimigo. Ouviam-se gritos lancinantes por todo o lado. Havia feridos, mortos, desesperados. Era o caos, a loucura. Lembro-me de ter rebolado pelo chão à procura de um abrigo: uma árvore amiga, uma trincheira, bagabaga, a fim de proteger o meu corpo; o espírito estava destroçado!

 

     Henrique estava comovido com o relato do seu amigo. «As guerras são terríveis», pensava ele. E tudo se podia resolver a bem, se houvesse diálogo. Mas não, é através da violência que o ser humano tenta resolver e concertar tudo! Para desanuviar, pergunta ao antigo combatente:

 

- Pronunciou uma palavra para mim totalmente desconhecida. O que são bagabagas?!

 

- São termiteiras em forma de pirâmide ou cogumelo, construídas pela térmita ou formiga-branca, que chegam a atingir cerca de cinco metros de altura e cuja dureza faz lembrar o cimento.

- Daí vocês nelas se refugiarem… - conclui o jovem.

- Salvaram a vida a muitos soldados. As balas e as granadas de bazuca não penetravam a sua couraça. Somente as granadas de morteiro nos poderiam atingir, devido à sua trajetória. Mas continuando: levanto-me com mil cuidados e começo a disparar em direção a vultos que se movimentavam ali perto. Tão desesperado estava, e desenquadrado, que já não sabia se eram meus companheiros ou meus adversários. Deixei de dar ao gatilho. Uma voz amiga chama-me: «vem para este lado, encontras-te entre fogo cruzado

- Que perigo! Teve imensa sorte. Podia ter sido o seu fim.

- É verdade. A rastejar (afinal aqueles ensaios no CICA-1 e Infantaria 6 tinham servido para alguma coisa) lá me encaminho para a sua beira. Segreda-me: «os turras já fogem

     Nunca fui muito ousado, não tenho vergonha de o confessar. Porém, no meio da refrega, operava-se em mim uma verdadeira mudança, uma metamorfose completa: parecia, e era, outro! Agia segundo as ordens superiores recebidas e também de acordo com o meu instinto de sobrevivência. Não quero com isto dizer que aqueles que foram atingidos ou morreram fossem taradinhos, ineptos, que descurassem a sua auto defesa, que se deixassem atingir. Não! Quero dizer apenas que mesmo em guerra nunca se deve perder o sentido prático da vida. A cobardia, em um momento de desespero, pode transformar-se em um ato de coragem! Rastejar nas matas da Guiné-Bissau, esconder o nosso corpo das mortíferas balas, não pode ter o mesmo significado que ajoelhar ou ser subserviente a fim de conseguir benesses de um patrão ou de alguém influente na sociedade.

- Existe uma fronteira ténue entre o heroísmo e a cobardia. Quanto tempo permaneceram nesse local maldito?

- Não te querendo mentir, suponho que estivemos no Cantanhez dois dias e duas noites. A mim, como é óbvio, pareceu-me ter ali permanecido dois anos! Cheio de fome, de sede, de angústia, de cansaço, de tudo; a resistência, física e moral, estava a chegar quase ao fim, ao seu limite.

- E resultados? – quis saber Henrique.

- Segundo boatos que correram mais tarde, as coisas parece que não tinham resultado tão bem como os planos previamente elaborados o previam. Alguns mortos e muitos feridos do nosso lado; o mesmo acontecendo do lado oposto, eis o balanço final da peleja. Quanto aos custos financeiros da operação faço apenas uma leve ideia.        

- Então não houve vencedor?!

- Nunca soube, e decerto jamais o saberei, se fomos nós os vencedores ou os vencidos! Quanto a mim houve uma espécie de empate mas, ao invés do que se passa no desporto, onde por vezes esse resultado agrada às duas partes, na guerra real o empate não agrada a ninguém. Os generais contendores só aceitam bem a vitória.

     Penso que não valerá a pena estar a descrever-te em pormenor a batalha. Aliás, os filmes, sobretudo sobre a guerra no Vietname (respeitando as devidas proporções), com requintes tecnológicos, e efeitos especiais, dar-te-ão as imagens que eu não seria capaz de te dar. Nesta conversa informal não posso, nem terei capacidade e talento para te transmitir o ambiente psicológico, o drama de jovens a quem não deixaram gozar a vida a que tinham direito, a indignação versus resignação contida em nossos olhares. Ah! meu jovem amigo: estúpida guerra que tanta juventude ceifou ingloriamente, e tantos males, físicos e morais, causou!

- Como vocês sofreram! – diz Henrique, com voz plangente.

- É verdade. Na flor da idade, meu amigo. Mas, para que não penses que quero calar tudo aquilo que vi e assisti, dir-te-ei apenas que o combate do Cantanhez teve uma face dura, cruel, inumana. Os piores instintos do homem vieram à tona. Não se encontravam ali humanos a lutar, mas sim feras indomáveis, tigres rasgando as entranhas da presa capturada! A raiva superou sempre a lucidez; o medo não conseguiu paralisar o dedo colado ao gatilho; a fúria imperou sobre a prudência e o bom senso!

- A mocidade, sangue na guelra!...

- Sem dúvida. E também interesses de vária ordem estavam em jogo. As grandes potências capitalistas estavam com o olho em África. Há ali muita riqueza para ser explorada. Portugal não se aproveitava, nem deixava os outros fazê-lo! Daí os movimentos de libertação terem apoios impensados há alguns anos atrás. Mas continuando a narrativa:

     Embora se ouvissem ainda tiros e gritos aqui e ali, retirámos, já ao entardecer, não sem cautelas, e lentamente aproximámo-nos do rio, a fim de embarcarmos. Mal avistámos os barcos da marinha o nosso estado de espírito melhorou um pouco, o nosso coração deixou de bater tão apressadamente.

- Era quase como sair do inferno!

- A viagem de retorno, como deves calcular, não teve alegria, mas sim abatimento, tristeza. Os nossos camaradas evacuados para o hospital e o quase esgotamento não o consentiam. Queríamos dormir, mas as embarcações, demasiado exíguas para tanta farda, não o permitiam. Encostados uns aos outros, suportando a custo aquele cheiro desagradável a catinga, a bodum, de corpos sem higiene, semicerrávamos os olhos e logo imagens terríficas, assustadoras, surgiam na nossa mente algo perturbada. O pânico apoderava-se de nós. Só espíritos muito fortes, sãos, conseguiriam ultrapassar este mau momento. E não seria o único! Outras escaramuças, acirradas pelejas, brigas mil, já se desenhavam no horizonte próximo.

- Nem é bom pensar nisso! – exclama Henrique, como se ele próprio fosse viver aqueles momentos aflitivos.

- Como eu gostaria que os portugueses de Quatrocentos não tivessem pisado o funesto solo africano. Agora estávamos nós ali, naquele bosque letal, sofrendo as consequências, os efeitos e infortúnios, desse ato aventureiro e irracional. Por que é que D. João I e os reis seguintes não procuraram desenvolver o Portugal ibérico, deixando a quente África aos africanos? Quiseram dar ao mundo “novos mundos” e aos filhos da nação, a partir daí, deram atroz sofrimento e a terrível morte!

- Graças a essas aventuras, temos «Os Lusíadas», de Camões, e outras obras importantes da literatura portuguesa – contrapõe Henrique.

- É verdade. Eu adoro a obra de Luís Vaz, mas apesar disso não sei se a “troca” compensa. A vida e a felicidade são os bens mais preciosos que há. Ainda dizem que de Espanha nem bons ventos nem bons casamentos! Eu diria: «De África só desgraça e carraça!» Quantos portugueses morreram por causa das designadas possessões ultramarinas? Terão conta, ao longo destes séculos? Acredita: os que mais defenderam a sua manutenção não puseram, jamais, lá os seus macios pés, nem pegaram numa arma para as defender. Limitaram-se a produzir verborreia sem sentido, discursos ocos, como o seco limão!                            

- Mas a História é a História, e reis e chefes de Estado ambiciosos e tolos sempre houve, há e haverá – sentenciou Henrique, depois de ter bebido duas imperiais e uma caneca. Não era hábito, porém, naquele dia, precisava de mais álcool, aquela batalha do Cantanhez mexera com ele, botara-o abaixo.

 

     Mais calmo, Cândido condescendeu:

 

- Talvez tenhas razão: hoje sabe-se que os portugueses, e castelhanos, nada descobriram – esses lugares longínquos já tinham sido descobertos há muito tempo! Contactar, seria o verbo correto. Os portugueses contactaram esses povos, não os acharam. Os asiáticos estavam no continente americano (peles vermelhas e esquimós), e o continente africano, todo ele, era conhecido e habitado.

- Até há quem afirme que foi em África que apareceram os primeiros seres humanos – lembra Henrique, já a bocejar.

- É bem possível, mas nessa área do conhecimento ainda há muito a investigar. Darwin não sugeria, no século passado, que o Homem descende do macaco?! Mas olha que não sei: penso que o ser humano veio de um planeta distante, aqui teve de descer por motivos que ora desconhecemos e por aqui foi ficando. Como eram só machos, procriaram com macacas, e daí alguns de nós parecermos símios! De outro modo não se compreenderia a diferença existente entre nós e os restantes animais.

- Pensa que há assim uma tão acentuada diferença?!

- Haver, há – salta à vista! Nós falamos, lemos, escrevemos, fundamos cidades, museus, bibliotecas; criámos a História e outras ciências; temos infinita curiosidade; vamos por esse espaço à procura de outros seres… Enfim, somos mesmo diferentes. Mas com tudo isto já perdi o fio à meada.

- Estava a dizer-me…

- Ah! Já sei: … e porque os meios de transporte tornavam as viagens prenhes de inesperados perigos, onerosas e demoradas, aí sim, os nautas lusos tiveram um papel de certa monta, de relevo, na aproximação dos povos. Por outro lado, o intercâmbio de conhecimentos, de ideias, de culturas, torna-se sempre vantajoso para ambas as partes. Porém, os portugueses jamais deveriam passar disso. Comércio, amizade, deveria ter sido o bastante, o suficiente. Ter-se-iam poupado vidas e haveres, e o nosso Portugal teria crescido economicamente, como outros territórios se desenvolveram por essa Europa fora. Nós, que fomos uma potência mundial, somos hoje um país pobre e atrasado!

- Está a pôr em causa todo o pensamento de uma época!... – observa Henrique, preocupado.

- Sem dúvida, meu caro amigo. Porque não? Relativamente à posse da terra, à escravatura (batem palmas ao infante D. Henrique), à conquista pelas armas, à imposição de ideias, ideologias, religião, costumes, língua, cometeu-se, quanto a mim, um erro crasso que nos custou, e está a custar, muito caro.

- Não aos poderosos, Cândido; nem aos ambiciosos. E a Igreja Católica expandiu-se… - contra-ataca o jovem.

- Nos nossos dias já nada resta desse antigo império…

- A língua portuguesa, essa ficou…

- À custa de muita seiva humana, muito sofrimento, sangue derramado. Teria valido a pena? É certo que o poeta Fernando Pessoa escreveu: «tudo vale a pena quando a alma não é pequena…»

   Seria a alma dos portugueses assim tão grande que um minúsculo rincão não lhes bastava, só o mundo os satisfazia? Que me interessa a mim que se fale português no Brasil? Que ganho eu com isso? Que ganha Portugal com isso? Vendemos-lhes dicionários de língua portuguesa? Não! Vendemos-lhes livros dos nossos escritores? Meia dúzia! Vendemos-lhes telenovelas? Pelo contrário, são eles que nos invadem com as suas. Veem o nosso cinema? Duvido.

     Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor, têm como língua oficial o português, mas apenas uma ínfima percentagem o fala! O nosso país ganhará com isso?                   

- Penso que sim – diz Henrique, num tom calmo, imparcial, para não magoar o amigo – mas só o futuro o dirá.

- Amigo Henrique: se ganhássemos algo com isso não estaríamos tão atrasados e não pediríamos tanto aos demais países europeus. Que nos deu o Brasil a partir da sua independência? Que nos vai dar Angola, São Tomé…? Nada! Os seus governos, à exceção do brasileiro, verdade seja dita, estão constantemente a estender a mão a Portugal. A nós, que não temos onde cair depois de mortos!

 

     Aqui Henrique empertigou-se:

 

- O meu amigo é impiedoso! Essa ajuda, ou solidariedade, melhor dito, cooperação, como a queira designar, é temporária, só enquanto não se modernizam, não criam as suas próprias infraestruturas. Depois pagarão com juros as suas dívidas. Esquece-se, porventura, que Angola tem imensas riquezas: petróleo, diamantes, madeiras de grande qualidade, um terreno agrícola extraordinário, pesca abundante… tudo! Moçambique, se for bem administrado, também se tornará num dos países mais ricos de África.

 

     Cândido, num tom mais moderado, responde-lhe:

 

- Quando já não precisarem de nós, viram-nos as costas. A língua inglesa espalha-se pelo planeta pela via erudita, não pelas armas. Não deve haver nenhum estudante por esse mundo fora que não a estude, tornando-se um potencial consumidor dos produtos ingleses e americanos. Mas nós… Que temos nós para exportar? Só se for malandrice, a lusa manha! A nossa indústria, e a nossa agricultura, são o que são. E depois de termos perdido tudo, herdamos obrigações – morais e materiais – que perduram e perdurarão por muitos e muitos séculos.

- A que se refere concretamente? – pergunta o jovem, algo perturbado.

- Refiro-me aos africanos das antigas colónias. Muitos deles, milhares, depois da descolonização e independência, refugiaram-se em Portugal e por aqui vão permanecendo, desenraizados. Em Lisboa e arredores: Almada, Amadora, Odivelas, Sacavém, Loures, eu sei lá bem, e até um pouco por todo o país, instalam-se em barracas e habitações degradadas, desta maneira aumentando incomensuravelmente as dificuldades dos municípios em termos de habitação e segurança, não falando já na estética. Vieram também gerar inúmeros problemas sociais: são as escolas, os centros de saúde, os hospitais, que veem em pouco tempo aumentar o número de utentes; são os empregos que faltam; o crime que cresce dia a dia; são os seus costumes que chocam, colidem, com os dos autóctones; o problema da língua, pois a maioria não falava, por incrível que isso pareça, português, utilizando o crioulo. Por outro lado, as mulheres africanas dão à luz um filho praticamente todos os anos e durante vários anos. Isso significa que dentro de vinte ou trinta anos Portugal não terá capacidade económica para assegurar a toda a população um nível de vida adequado. E a Segurança Social? Aguentar-se-á com tanta despesa?

     Será novamente a emigração, a debandada para outros países mais ricos? Mas como, se as novas tecnologias reduzem o número de operários? Será que a Alemanha, a França, a Suíça, precisam de mão-de-obra portuguesa?! Qualquer dia nem o Canadá, ou os Estados Unidos, necessitarão de operários estrangeiros.

 

      Henrique (embora reconhecendo algumas verdades no raciocínio de Cândido), não quer dar o braço a torcer, e replica:

 

- O meu amigo Cândido é um pessimista. Traça e prevê um futuro apocalíptico, catastrófico, para Portugal. Não considera que os portugueses poderão um dia emigrar para esses novos países africanos? Eles vão precisar de mão-de-obra especializada, de tecnologia, de engenheiros e arquitetos, de professores, de médicos, enfermeiros…

 

     Cândido não se dá por vencido com esse argumento:

 

- Só o amanhã o dirá, só o amanhã o dirá… Mas não te esqueças de que outros países mais poderosos do que o nosso, tais como a China e o Japão na Ásia, os Estados Unidos na América, a Inglaterra, Alemanha e França na Europa, Rússia etc., com outros recursos, quer científicos, quer tecnológicos, aguardam com extrema paciência, e perspicácia, a oportunidade para entrarem com armas e bagagens nesses territórios africanos, recentemente elevados a Estados.

- Haverá lugar para todos. O Cândido revela uma pontinha de racismo!

- Não! Tudo depende do ponto de vista. Racista? De modo algum. E penso que o povo português, de uma maneira geral, também não o é. A prova disso consiste no facto de diariamente: nos transportes públicos, nos centros comerciais, nos cinemas, em todo o lado, convivermos com indivíduos de outras raças não os hostilizando. Além disso, o nosso Governo e a nossa Assembleia da República nunca legislaram no sentido de expulsar estrangeiros do solo pátrio, mesmo aqueles que o mereciam. Mais: já começa a ser vulgar vermos rapazes negros a namorar com raparigas de raça branca, e vice-versa. Olha que no continente africano é quase um fenómeno assistir-se a isso. Crê-me: reconheço que era difícil a esta gente permanecer em Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné e cabo Verde, depois da descolonização.

- Posso saber por quê?

- Por duas razões fundamentais: a primeira porque muitos deles estavam demasiado ligados, de uma forma ou de outra, ao regime salazarista para não virem a sofrer retaliações, represálias, por parte dos Partidos que ascenderam ao poder; a segunda, porque os restantes, não quiseram participar num conflito entre irmãos, ou seja, na guerra civil (casos de Angola e Moçambique). Quanto a Cabo Verde, como sabes trata-se de um país muito pobre, sem grandes riquezas no subsolo, sem chuvas normais, pouco desenvolvido. Quando conseguirem, com a ajuda da tecnologia estrangeira, tornar a água do mar potável, então sim, esse arquipélago poderá crescer economicamente. Enquanto aguardam essa ajuda terão de viver quase exclusivamente da emigração, da pesca, do turismo, e pouco mais.

- O meu amigo Cândido omitiu o povo de Timor. Também temos alguns timorenses em Portugal.

- Sim, ia-me esquecendo deles. De qualquer modo, o seu número não é significativo e pelo que tenho observado logo que lhes seja possível regressarão à sua pátria. Por outro lado, estão muito próximo da Indonésia e da Austrália, pelo que a influência desses países far-se-á notar de imediato, e eles, pouco a pouco, irão esquecendo Portugal.           

 

*

 

     Depois desta conversa fiada, amigo Henrique, quase me ia esquecendo do ano de 1966 e da Guiné-Bissau. É nesse território e nesse tempo que devo permanecer e não me obrigues, peço-te encarecidamente, a fugir à história que prometi contar-te.

     Pois bem: depois de umas horas de barco, viatura e algum trajeto a pé, lá chegamos a Cufar, ao nosso famigerado “quartel”. Abraçamos comovidamente os colegas que tinham ficado, tomámos uma banhoca sob os bidões previamente esburacados para o efeito, comemos uma refeição quente e deitámo-nos. Logo que acordei, li as cartas dos familiares e das madrinhas. Trouxe uma delas para ler. Queres…?

- Estou em pulgas…

- Ouve então, por favor:  

    

Querido afilhado

 

      Recebi a sua carta e peço desculpa de só agora lhe responder, mas como tenho muito serviço, naturalmente que me compreende e perdoa. Neste momento não lhe posso mandar a minha foto, pois é impossível; como estou empregada, quando saio do emprego já os estúdios dos fotógrafos estão fechados, e por isso vai ter de esperar. Aproveitarei um dia que saia mais cedo… Para a próxima carta mando-lha, está bem?

     Então como tem passado? Deus queira que quando esta receba esteja de boa saúde, esse o meu ardente desejo; olhe que, todas as noites, rezo por si e por todos os soldados que lutam aí. Daqui foram muitos para a Guiné, Angola e Moçambique, felizmente não lhes aconteceu mal nenhum, alguns já eram casados quando foram, desses ainda tinha mais pena, porque já possuíam um lar e filhos, e não sabiam se voltariam ou não.

     Neste bocadinho de espaço vou falar-lhe um pouco do meu passatempo favorito: gosto imenso de colecionar fotos de artistas, tanto nacionais como estrangeiros, sou associada do clube de fãs do Conjunto Académico de João Paulo, já tenho imensas fotografias deles. Para mim são os melhores. Já ouviu falar? Claro que já – quem não ouviu? Também gosto de ouvir cantores estrangeiros e de ver cinema.

     Por hoje é tudo. Receba muitos abraços da madrinha muito amiga – e talvez a mais novinha!

                         Fernanda 

 

 

- Ela desconfiava que o meu amigo Cândido tinha outras madrinhas de guerra!

- Julgo que não. Ela estava a tentar tirar nabos da púcara: queria saber se namorava, se me escrevia com outras… Faz parte da psicologia feminina.

- Mas pensa que ela queria namorar consigo?

- Não sejas impaciente; aguarda as próximas cartas. Agora vou prosseguir, se me deres licença: ainda estivemos na “terra da morte” mais uns dias. Fizemos algumas incursões na selva, não com a envergadura da outra, houve alguns recontros com a guerrilha, sem graves consequências, andámos novamente muito perto da aldeia dos macacos, fomos uma ou outra vez a Catió, abatemos uma serpente com vários metros de comprimento, corpulenta, que se tinha atravessado no nosso carreiro, pregando-nos um enorme susto, pois nunca tínhamos visto nada igual, nem no Jardim Zoológico, e corria a lenda de que estes répteis engoliam pessoas! Finalmente apareceu uma Companhia para nos substituir. O nosso destino seria o norte: as densas matas de Teixeira Pinto (Canxungo), Calequisse, Caió, Bula, Cacheu – uma vasta zona.

                                         // continua...

Sem comentários:

Enviar um comentário