sexta-feira, 3 de agosto de 2018

LEMBRANÇAS AMARGAS
 
                                                                            romance

Por Joaquim A. Rocha





XXIV
 
Todos os passos do condenado o conduzem ao patíbulo

 
     Decorre o ano de 1962; eu tenho agora dezoito anos, sou um homenzinho, frequento um curso noturno, com a duração de quatro anos, criado por decreto do Ministério da Agricultura. Dedico-me a ele na esperança de encontrar um outro rumo para a minha vida. O meu cérebro vai despertando para o sublime conhecimento, a minha alma descobre o fascínio da ciência. Embora estivesse subjacente a política, ali, naquela escola, ela não se fazia notar, pois o professor, um salazarista confesso, legionário por convicção, tinha como verdade indiscutível que todos os alunos serviam lealmente o regime corporativista. Mas o melhor é porem-se à escuta:  
- Tu és o meu melhor aluno, o curso deve-te muito, tens trazido para ele muitos rapazes, fizeste dezoito anos, trabalhas por conta própria, é certo, mas considero que tens capacidade para ires mais longe, a tua arte é muito humilde, e dia a dia degrada-se mais, hoje ninguém manda fazer calçado novo a um sapateiro, só trabalham em consertos, eu vou arranjar-te um emprego no Grémio da lavoura, como sabes sou seu presidente, no princípio do mês que vem já começas lá a trabalhar, o Lito vai para a França, o irmão mais velho mandou-lhe carta de chamada, vamos precisar de alguém para o substituir.


- Mas, senhor professor; eu nunca tive outra profissão, não sei se me vou adaptar, é tão diferente uma coisa da outra.

- Ninguém nasce ensinado, com o tempo habituas-te, vais ver que acabas por gostar, o ordenado inicial não é muito grande, mas depois serás aumentado, tens ali o teu futuro, sempre é uma atividade mais asseada, com outro estatuto, e descontas para a previdência, para quando fores velho teres direito a uma pensão. Está assente: no início do mês apresentas-te ao serviço, eu vou falar com o senhor Roque, ele é o chefe do pessoal. Outra coisa: leva a tua melhor roupinha, isso sempre ajuda, impressiona bem, vais ter de atender ao balcão logo que para isso estejas preparado.      

- Sim, senhor professor.


*
 

- Senhor Roque, venho apresentar-me, o senhor professor Salomão mandou-me vir para cá.

- Já sei; vai falar ali com o senhor Couto, ele já te dará trabalho, já te dirá o que tens a fazer. Couto!

- Sim, senhor Roque.

- Encaminha aqui o novo funcionário.

- Sim, senhor; deixe-o comigo. Cândido!

- Sim, senhor Couto.

- Vês estes sacos?

- Vejo sim, senhor Couto.

- Estão cheios de sementes, adubos, rolhas de cortiça…

- Pelo que vejo, as sementes têm cores variadas!

- E os adubos também; mas cuidado, não os cheires, olha que alguns são tóxicos, muito perigosos. Os preços estão aqui, nesta tabela, não os confundas, há duas balanças, uma grande, pode-se pesar nela centenas de quilos, e uma mais pequena, a que se encontra no balcão, essa é só para os artigos leves.

- E vem cá muita gente comprar? 

- Nos dias de feira o Grémio é muito movimentado, mas todos os dias há muito trabalho, terás também de ir à Central de Camionagem buscar os sacos que chegam dos armazéns para nós, levarás aquele carrinho de ferro.

- Oh! raio. Disso é que o senhor professor não me informou, só me disse que era para trabalhar ao balcão; andar por aí com o carrinho, e logo este que faz uma chiadeira dos diabos.

- Pões-lhe óleo; olha que não te caem os parentes na lama, tu até tiveste sorte ter vindo para aqui, houve muitos pedidos, o senhor professor é que gosta de ti, aprecia as tuas qualidades, e pronto, trouxe-te. Em relação ao carro, o Nando, que está cá há pouco tempo, também vai à Central algumas vezes, ultimamente é ele que lá tem ido.

- E o ordenado, sabe quanto vou ganhar?   

- O senhor Roque disse que começas a ganhar trezentos escudos por mês, depois será aumentado.

- Trezentos escudos?! Isso é pouco, eu já tirava mais na minha oficina.

- Olha que eu não estou a ganhar muito mais, e tenho já vinte anos de carreira.
 

*
 

- Ó Nando, sabes que isto de andar com o carrinho de um lado para o outro, carregado até não poder mais, está bem que é quase todo o caminho a descer, não me está a agradar muito, se ainda o ordenado fosse bom, mas é uma miséria, baixíssimo, e querem que um tipo ande bem vestido, o que se ganha não dá para comprar roupa, eu se calhar vou-me despedir, que metam outro, ganho mais na oficina e não preciso de andar vestido com roupa domingueira, e tomar banho duas vezes por semana, no verão vá lá, vai-se ao rio, mas no inverno… nem casa de banho há na minha casa, tomo banho num alguidar de barro, já está a ficar pequeno para o meu corpo; por outro lado, tenho vergonha de andar pelo meio da Vila com este carro, faz um barulho tremendo, toda a gente olha para nós.

- Tu é que sabes, eu terei de aguentar, se saísse, o meu pai dava cabo de mim, esfolava-me vivo, fartou-se de correr atrás do senhor professor para ele me ter no Grémio, mas tu não tens pai, a tua mãe não risca peva; além disso, és mais velho do que eu quase dois anos, eu apenas tenho dezassete.

- Está decidido, vou-me despedir; o professor Salomão é que vai ficar danado comigo, mas o senhor Roque anda-me sempre a chatear, sempre a dar ordens, raspanetes… Eu não posso com ele; o Couto, esse é boa pessoa, um paz de alma, o Roque faz dele o que quer, eu não aguentava.    
 
                                        *
 

- Senhor Roque: no fim deste mês vou embora daqui, deste emprego.

- Embora?! E porquê, posso saber?

- Não gosto deste trabalho, vou continuar a trabalhar na minha oficina, os meus clientes andam sempre a pedir-me para voltar, apreciam muito o meu serviço, até a criada do senhor doutor juiz me pediu para reabrir a oficina.

- Já informaste o senhor professor?

- Não, estou com receio que ele fique zangado comigo; quase um ano aqui já deu para ver se gosto ou não, o senhor professor vai certamente compreender.  

- Deixa lá, eu falo com ele; de facto nunca te vi muito entusiasmado, não nasceste para isto, segue o teu rumo.

- Obrigado, tira-me um grande peso de cima.

- O pior é arranjar outro, agora com a guerra colonial foge tudo para o estrangeiro, qualquer dia não há população masculina neste concelho, têm medo da guerra, olha que eu lutei na primeira grande guerra, a de 1914-1918, e não morri, naquele tempo havia homens, não tínhamos medo, agora fogem como cobardes, deviam ser todos presos e enviados para África, para a frente de batalha.

- Eles também fogem porque aqui nesta terra se ganha pouco, eu entrei a ganhar trezentos escudos por mês e ao fim de quase um ano continuo a receber o mesmo ordenado!

- Estávamos a pensar aumentar-te, mas vais-te embora.

- Nem para comprar roupa chega, e aqueles que trabalham nas obras não ganham muito mais, e trabalham como escravos, de sol a sol; os camponeses, coitados, se os anos agrícolas correm mal é a fome, a absoluta miséria.

- Não exageres; antigamente vivia-se bem pior, olha que antes do senhor doutor Oliveira Salazar assumir o poder os partidos políticos não se entendiam, havia revoluções constantemente, não havia paz em Portugal, a economia estava de rastos, os anarquistas e os republicanos deram cabo do nosso país, levaram-no à banca rota, já não tínhamos crédito no estrangeiro, a nossa moeda não tinha qualquer valor, Salazar foi o grande salvador da nossa pátria, devemos-lhe tudo, tudo!

- Eu não sou desse tempo, sou deste, e agora vive-se mal, a não ser os ricos, e também aqueles que têm ordenados chorudos. O senhor Roque já pensou o que se pode fazer num mês com apenas trezentos escudos?   

- É bem melhor do que nada, vocês agora querem levar vida de lorde, são arrogantes; pobrezitos, mas com barriga de nababo! Soberbos, é o que vocês são, olha que eu para chegar aonde cheguei tive de esperar e guerrear muito, que os meus pais também eram gente de escassos recursos, são do tempo do teu avô Gaspar, era boa pessoa, humilde, bom homem, os copos é que deram cabo dele; também, era a única alegria e distração que eles tinham! Andava pelas festas, a vender rebuçados, fabricados por ele, deliciosos, muitos comi! Está bem, queres ir embora vai, faço votos para que tudo te corra pelo melhor.

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