quinta-feira, 9 de agosto de 2018

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
Romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha





     As cansadas e barulhentas viaturas por fim chegaram. Os soldados, sexualmente satisfeitos, sorridentes, quase felizes, saltaram com extrema agilidade para o seu interior. Praticamente esquecidos da operação, dos sofrimentos a que o seu corpo e o seu espírito tinham sido sujeitos, falam agora daquele acto machista que julgam, pobres idiotas, dignificá-los! Dentro da viatura o tema da conversa é apenas um: sexo! «Quantas deste, ó Santarém?» O outro responde, a rir: «Eu sei lá! Algumas três!» O Coimbra, com imensa mágoa, lamenta-se: «Eu só consegui dar duas!» Logo a seguir outra voz: «Pois eu, se não fôssemos já embora, ainda dava mais uma ou duas; de chicha nunca me farto!» Era o Famalicão, explodindo de ironia. O Braga, aborrecido consigo mesmo, por ter dormido enquanto os outros fornicavam, comenta: «Caramba! Pelo que ouço, vocês emprenharam as gajas!» Logo, o pérfido Lamego, zomba: «E qual de nós será o pai das crianças?!»

     Todo o percurso nisto! Não podia mais. Vomitava raiva! Finalmente chegámos à Vila de Teixeira Pinto. «Que bom!» - disse eu baixinho, respirando de alívio.

- Na verdade, esse crime não tem perdão – explode Henrique. – Nem o facto de estarem em guerra o justifica!

- Monstruoso! Hediondo! Somente os homens de Gengiscão se podem comparar com eles.

- E quando chegaram ao quartel, desta vez havia água nas torneiras?

- Não me fales disso; o soldado não contava, não valia um tostão furado, um pataco dos antigos; era escumalha, lixo humano. Haver ou não haver água para nós tomarmos um banho repousante era indiferente para os superiores. Desde que eles a tivessem… Acontece que obras públicas não existiam – tudo estava paralisado. Alguma coisa que se fizesse na então província da Guiné-Bissau era realizada pela tropa! As ruas de Teixeira Pinto eram de terra batida; não existia Câmara Municipal, nem Juntas de Freguesia, nada!

- Isso revela uma certa mentalidade. E contou tudo aquilo que aconteceu ao seu capitão?

- Contar-lhe?! Ele nem sequer me ouviria! E se os meus colegas viessem a saber que falara sobre o assunto com o comandante da Companhia, considerar-me-iam traidor, renegado, e vingar-se-iam de mim certamente. Isso estava fora de questão. O melhor era tentar esquecer aquilo que se passou. Sozinho não podia mudar o mundo.

     Os seres humanos são pior do que as feras em certas circunstâncias, e este e outros crimes repetir-se-ão através dos séculos. Ninguém tenha dúvida disso!

 
crianças tirando água de um poço
 

     As operações, batidas, missões, patrulhamentos, acções, como lhe queiram chamar, ou então arranjem outro nome para o sofrimento, para a dor, física e espiritual, sucederam-se com poucas interrupções.

     Ainda me encontrava em Teixeira Pinto quando decidi, ou me autorizaram, ir à consulta do médico militar. Estava escanzelado. Pesava somente quarenta e sete quilos! O clínico, e depois de me auscultar, fez, ou mandou fazer, análises e chegou à conclusão de que eu tinha o estômago cheio de bichinhos (micróbios) que devoravam tudo aquilo que eu ingerisse. Receitou-me uns medicamentos e lá fui aguentando. Mas antes de abandonar o seu consultório, aconselhou-me:

      «Quando chegares à Metrópole vai ao hospital e trata-te como deve ser.»

     Agradeci a sua sábia sugestão; faltava um ano para eu regressar. Que eram doze meses na vida de um ser humano? Doente, ou com saúde, o soldado tinha de estar ali, a combater pela Pátria e pelo Chefe. No fim da campanha teria a sua medalha e o louvor hipócrita. Depois, já como civil, recuperaria, ou não, das mazelas arranjadas na guerra. Tudo à sua custa! Mas isso não tirava o sono aos governantes.

     Quanto aos dentes – já tinha dois apodrecidos – teria de me deslocar a Bissau a fim de os extrair, único sítio onde havia “dentista”.

     Entretanto aconteceu nessa recatada e bonita vila, um dos episódios mais cruéis de toda a campanha: na prisão do quartel encontrava-se um prisioneiro idoso, com uma barbicha algo ridícula, mas importante para ele. Não se sabia bem por que razão o homem se achava detido. Era difícil escutar da sua boca uma única palavra. Tinha sido feito prisioneiro numas das batidas que se levavam a cabo periodicamente nas redondezas do aquartelamento.

- Até faz lembrar as rusgas na baixa lisboeta para apanhar as prostitutas! – interveio Henrique, com o intuito de desanuviar um pouco a tensão.

- Brinca, brinca, maroto, que o teu brincar tem graça! Agora a sério: nessas missões tudo que viesse à rede era peixe – novos e velhos, homens ou mulheres, excluindo as crianças, tudo servia! Após um breve, ou prolongado, interrogatório grotesco, mandavam-se embora ou matavam-se na primeira oportunidade.

     O velho, certo dia, aparece estendido, sem vida, no pavimento da sua cela improvisada. Ainda mostrava os sinais da violência junto à barbicha, agora quase toda ela arrancada!

     Quem teria sido, quem… Os indícios escasseavam, provas… inexistentes! A sentinela nada viu, nada escutou, não desconfiava de ninguém. Mas eis que um dia, no bar dos soldados, o Bragança se descai. O álcool, esse amigo da verdade, passou-lhe uma rasteira: tinha sido ele! Como se divertira! «Arranquei-lhe pêlo a pêlo!» - conta, eufórico e importante. «Os turras não merecem compaixão, por sua causa é que nós aqui nos encontramos!» - berra para todos o ouvirem bem.

- É óbvio que o prenderam e castigaram?! – interpreta Henrique.

- Por mais incrível e surpreendente que isso nos pareça, nem preso nem castigado! Por matar um presumível colaborador da guerrilha? «Caramba! Merecia era uma medalha!» - comentavam entusiasmados os seus incontáveis admiradores.

- O seu colega revelou-se um grande canalha, um patife! Merecia um severo puxão de orelhas, um castigo exemplar.

- Mas espera! Em contraste com este episódio, passou-se este outro: juntámo-nos uns quantos soldados e, a pé, fomos conhecer melhor os arredores de Teixeira Pinto. Seguimos por uma estradinha de terra batida, G-3 ao ombro, e de repente avistámos um campo de ananaseiros. Aquele cheirinho agradável indicava-nos que o fruto já estava bom para comer. Um dos camaradas sugeriu: «Como não se encontra por perto o dono, vamos colher um ou dois ananases; ninguém vai dar por nada – são tantos!»

     Embora com uma certa relutância, acompanhei os outros e tirei apenas um. Não era um grande apreciador desse fruto – gostava mais de pêssegos ou peras. Frutinha da minha terra minhota.

     O proprietário, um negro de olhos de águia, tudo observou sem ser visto por nós. Assim, quando regressámos ao quartel já lá tínhamos a queixa. Chamados ao comandante, ouvimos uma admoestação daquelas que jamais se olvidam: «Devem respeitar a propriedade alheia; o dono dos ananases é amigo e antigo cooperante da tropa portuguesa. Isto que não volte mais a acontecer; não quero larápios na minha Companhia. Agora vão pagar com língua de palmo o que comeram. Cada um de vocês desembolsará a importância de vinte escudos!»

- Não considero o castigo exagerado... acho até que foi leve.   

- Amigo Rique: com esse dinheiro compravam-se três cervejas das maiores, mais ou menos o que se bebia diariamente quando não se saía do quartel, e comiam-se umas sandes de queijo, chouriço ou presunto, isto no bar é claro. O ananás que furtei, quando muito, valeria cinco escudos!

- E pagaram?

- Que remédio! Com língua de palmo. Esse dinheiro seria descontado no pré. Hoje penso que não foi totalmente errada essa sentença, só custava contudo verificar que os critérios para a aplicação da pena eram completamente arbitrários.

- Vejo que a justiça militar nessa altura andava muito por baixo!

- Escuta o caso seguinte, emblemático de tudo o que atrás disse. Ouve e dá-me a tua opinião: o soldado que assassinou o velhote da barbicha, vendo que ficara impune, e ainda por cima o crime lhe trouxera certa fama, começou a pensar noutra patifaria digna dele, do seu “prestígio”. Havia perto do nosso quartel uma bajuda (rapariga virgem), engraçada, com quinze, dezasseis anos. A moça via a tropa como amiga e por isso dava conversa aos soldados. Nunca lhe passara certamente pela mente receber de nós qualquer tipo de maldade. Porém, o Bragança, já a tinha fisgado. Um dia disse aos camaradas que o acompanhavam: «Hei-de comê-la, hei-de partir katota com ela! Não sei ainda como, mas isso vai acontecer de certeza absoluta!»

     O Sintra, gozão, mas ao mesmo tempo ponderado, observou: «Vê lá no que te metes, olha que o capitão não gosta que se abuse dos pretos nossos amigos; a bajuda vai fazer queixa de ti, denunciar-te, e é o fim do mundo; eu não arriscava.»

     «Se fizer queixa, rebento-lhe com os miolos!» - reagiu a sinistra criatura, de punhos cerrados.

     «Tretas! De qualquer modo eu nada sei: não ouvi nada!» - apressa-se a dizer o Sintra.

     Passado uns escassos dias o Bragança apareceu triunfante – conseguira a proeza! Era deveras um herói! «Como o tinha conseguido?!» – perguntaram-lhe, achando o acto incredível.

     «Ah!, Ah!, querem saber? Pois ouçam: falei com a miúda e perguntei-lhe se alguma vez provara vinho do Porto – que se tratava de uma bebida docinha, própria para senhoras; as europeias bebiam daquilo todos os dias. Respondeu-me que não, que nem sequer sabia o que era, nunca tinha visto nem bebido. Enfim, ficou combinado oferecer-lhe uma garrafa, do bom, para ela provar. Dirigi-me ao bar da cantina e comprei uma botelha, do mais barato que havia! Depois fui ter com ela, abri a dita e passei-lha para as mãos. Até lambeu os beiços! Dei-lhe mais. Bebeu, como quem bebe água! Às tantas, quando vi que já estava meio tonta, levei-a para o capim. De morte, meus amigos, de morte! Nunca tinha manjado nada semelhante. Um autêntico pitéu!»

     «Eh, pá! Tu violaste a gaja! Estás tramado» - disse com certo receio e alguns ciúmes um dos seus amigos. «Não sejas parvo» - retorquiu o Bragança. «Para eu ser castigado teria de ser muita gente; não vês os putos mulatos que pululam por aí? Alguém os fez, não?! Vocês são cegos! Não vêem entrar nos quartos dos oficiais, e não só, as raparigas negras?»

     O Sintra, poeta ao jeito de António Aleixo, e para acabar com aquela conversa perigosa, improvisou:

 

A katota da bajuda

é fresca como um limão;

como a pêra, é carnuda…

é bela… como um pavão!

              

 «Muito bem!» - disseram todos em uníssono. «Muito bem!»

- Desta vez foi severamente castigado? – perguntou Henrique, esperançado em ouvir um sim.

- Qual quê! O violador tinha novamente razão. Parece que foi chamado ao comandante, mas o que disseram entre si ninguém o sabe. O certo é que ficou mais uma vez impune!

- Quase inacreditável o que me acaba de contar. Estou fulo, irritado. Como é possível que esse malandro, esse sabujo, não tenha sido severamente punido?! Como?!

- A tropa, meu caro Henrique, a tropa… tudo explica. Ali a lei era outra. Os oficiais castigavam ou perdoavam conforme as suas conveniências. Eram os senhores da guerra! Passados uns dias destacaram o meu pelotão para Cacheu. // continua...

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