domingo, 11 de março de 2018

LINA, FILHA DE PÃ
romance
 
Por Joaquim A. Rocha
 

igreja de São Vicente - Braga
 

5.º Capítulo
 

      O tempo foi escorrendo, a vida em Melcarte era carregada de monotonia, eternidades de tédio, sempre igual, uma autêntica pasmaceira. O Doutor Juiz já estava saturadíssimo daquela terra obscura e dos seus desenxabidos habitantes. À amante começa a notar-se-lhe a gravidez. Já tratara da papelada para o casamento. Um determinado dia dirige-se à rapariga:

- Então, já disseste ao lambisqueiro que estás grávida?

     Ela estremeceu. A barriguinha crescera e ela não podia esconder por mais tempo o seu estado.

- Hoje mesmo vou dizer-lhe. Ele até já me falou em casamento, mesmo não sabendo! Senhor Doutor Juiz, vou pedir-lhe um grande favor: – empreste ao Mário o dinheiro para ele embarcar para o Brasil ou para a Argentina – ele depois manda-lho. Assim, eu ficava aqui, casada, e continuávamos a ser ternos amantes. Ninguém desconfiaria de nada. 

- A ideia até não é má! Tens bons raciocínios. Matavam-se dois coelhos com uma cajadada: tu vias-te livre dele, e eu ficava à vontade contigo. Vou pensar nisso.

     O magistrado ficou a ruminar no assunto. Inteirou-se dos preços da viagem, uma bagatela, para ele nada significava; meteu mãos à obra. Mas primeiro tinha de os casar.

     A boda realizou-se a um domingo de manhã, na igreja matriz da Vila. O juiz entrara com as massas para a cerimónia. Não lhe saíra barata a brincadeira, mas fora melhor assim: a criança nascia dentro de um lar, embora humilde, e ele via-se livre de encrencas. Ficara bem visto no concelho: era amigo da empregada, estava ali no seu casamento, pagara as despesas, que mais ela queria? Agora era tempo de zarpar. A transferência já estava resolvida. Ia para Évora, no Alentejo, durante os próximos três anos, bem longe dali. Ela nunca saberia do seu paradeiro. Provavelmente jamais veria o bastardo, não saberia se era rapaz ou rapariga, mas que interessava? Mais tarde casaria com uma fidalga rica e teriam os seus próprios filhos – os autênticos. Dirigiu-se à empregada e diz-lhe:

- Estás muito bonita! O teu marido teve muita sorte.

     Ela enrubesceu, e vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Por que chorava? Acaso tinha quaisquer ilusões? Alguma vez o Senhor Doutor Juiz a tomaria por esposa? Nunca! Nunca!              

- Obrigada, Senhor Doutor. Hoje é um dia muito triste e ao mesmo tempo feliz para mim. O Mário é um bom rapaz e vai tratar bem da nossa criança. Não se preocupe.

- Sim, hoje é um dia especial para nós todos. Haja alegria. Não te arrependerás da decisão tomada.

     Depois do acto religioso, dirigiram-se todos para um restaurante de um hotel das Termas, onde lhes foi servido o almoço, bem regado com o vinho da região, um verdadeiro néctar, segundo os apreciadores.

     À tarde houve baile. O togado despediu-se de todos, desejando felicidades aos noivos. Lina ficou atordoada. Pressentia bem que o perdera para sempre. Provavelmente nunca mais dormiria com ele. Chorou amargamente. O noivo perguntou-lhe:

- Por que choras, meu amor?

     Ela, banhada em lágrimas, respondeu-lhe:

- É por estar tão feliz; não ligues. As mulheres choram, quando amam.

 O Doutor Juiz cumpriu a sua promessa: entregou algum dinheiro ao Mário, a fim de ele tentar ir para a América do Sul. O primeiro passo estava dado. A seguir o recém-casado teria de marcar uma inspecção médica – sem um atestado de boa saúde não poderia obter os papéis; e sem documentos não o deixavam embarcar. O problema era aquela sombra no pulmão direito. Devido a isso, as Repartições Públicas não permitiam que ele emigrasse. Diziam-lhe constantemente: «Cure-se primeiro; depois terá o passaporte.» Para se tratar clinicamente precisaria de muito dinheiro, de apoios. Onde os iria buscar? A Santa Casa da Misericórdia estava praticamente falida, com os seus cofres vazios, não o podia ajudar. As Instituições governamentais não estavam em condições de prestar qualquer tipo de auxílio. A quem recorrer? 

     Trabalhou no porto de Leixões, durante uns meses, na expectativa de partir clandestinamente num daqueles navios, mas o trabalho era duríssimo, demasiado pesado para as suas débeis forças, ainda por cima mal remunerado, e assim, desiludido, cabisbaixo, regressou à sua terra natal.

     A criança já vira a luz do dia. O parto decorrera na maternidade do Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Era uma menina. Foi batizada na igreja matriz da Vila, na maior das simplicidades. Puseram-lhe o nome de Lisete, por assim se chamar a irmã da caridade, a parteira que ajudara a trazê-la ao mundo. Os seus padrinhos foram a Senhora do Rosário e Santo António. Toda a gente ficava a olhar para ela, procurando semelhanças com o pai, mas de Mário nada tinha. As bisbilhoteiras comentavam:

- Aqui há marosca: a Lisete não se parece nada com o Mário! Será que é filha dele? Não será filha do Doutor Juiz? Com esse parece-se! – aventou a Isolina, cuja língua viperina era temida em toda a Vila e arrabaldes. 

- Não sejas má-língua, mulher! Olha que Nosso Senhor Jesus Cristo castiga-te – retorquiu a Palmira, aparentemente mais moderada do que a sua vizinha.

- E que me dizes tu, Palmira, a ter nascido antes do tempo? Nessa não acredito eu!

- Ó Isolina, achas mesmo que é filha do Senhor Juiz?!

- Não tenho bem a certeza mulher, mas do Mário não me parece ser – é tão diferente!

     Os comentários foram aumentando à medida que a menina crescia. A semelhança com o verdadeiro progenitor era espantosa. A cor do cabelo, a testa grande, aqueles olhos inteligentes e observadores. Não havia qualquer dúvida: a Lina ludibriara o ingénuo do “Brilhantina”.

- «Que coirão – exclamava a irmã do rapaz – e meti-os eu em casa. Não a quero mais aqui. Rua!»

     O Mário andava abatido, destroçado. Fartava-se de trabalhar para alimentar a catraia, que afinal de contas não era sua filha. A Lina agora era criada de servir em São Cristóvão, a dez quilómetros da Vila. A irmã dele já não queria a criança, dizia que não lhe era nada, não era sua sobrinha, que a levasse para outro lado. Ele estava desesperado, tinha os nervos num frangalho. Arranjou um quartinho, onde outrora existira uma oficina de barbeiro, e instalou-se lá como pôde. Alguns vizinhos tiveram pena dele e deram-lhe algumas roupas de cama, mantas velhas, uns cobertores descoloridos, mas que permitiriam aconchega-los, aquecê-los no inverno.

     Começou a andar no contrabando, na frota, como na altura chamavam ao comércio ilegal. Levavam certos produtos para a Galiza e lá traziam outros. Fora o irmão mais velho que o convidara:

- Ouve, Mário: tu andas para aí aos caídos, aos biscates, mas, se quiseres, o Abílio do Tojal dá-te trabalho, na frota. Claro que é perigoso: dum lado os guardas-fiscais; do outro, os carabineiros. É certo que muitos deles, ou todos, têm as mãos untadas, mas às vezes andam mal dispostos e disparam, sobretudo quando sabem que anda por perto o tenente. Nós temos de ter muita cautela. Por outro lado, começou há pouco tempo a guerra civil espanhola, e anda tudo em alvoroço – podemos levar um tiro em qualquer ocasião.

- E quando se faz o serviço: de dia ou à noite?

- É tudo feito à noite. Logo que escurece a gente mete-se a caminho do rio, com os sacos de café às costas, e depois é só atravessar o rio na batela; do outro lado estão uns quantos galegos que levam a mercadoria.

     O Mário estava com vinte e dois ou vinte e três anos de idade. Fora à inspecção militar na altura própria e ficara isento. Casado, com uma filha, que afinal não era dele, tinha de conseguir algum dinheiro, senão morria à fome.

- Está bem, aceito. Quando começo?

- Pode ser hoje mesmo. Vai cear logo connosco, assim já falamos melhor. Quanto à Lisete, leva-a lá para casa, a tua cunhada toma conta dela.

- Obrigado! Vou já tratar disso.

     E foi assim que o jovem foi ganhando uns dinheiritos para o dia-a-dia. Quando viu que já tinha umas magras economias, arrendou uma casinha e disse à mulher para vir novamente para a Vila, ele e a filha precisavam dela. Porém, a Lina já arranjara um novo amante. Ela nunca estivera apaixonada pelo marido, como já atrás ficou esclarecido; fora apenas um ardil para salvaguardar a reputação do juiz, e a sua própria, porém agora não necessitava mais de fingir. O juiz entretanto fora embora, e nunca mais dera sinal de si. Era de momento, na sua agitada vida, apenas uma recordação. Ficara a criança, que mais tarde seria, tal como a mãe, uma simples criada de servir, ou então casaria com um operário, ou com um camponês fardado. Nada mais poderia esperar da fortuna, ali naquele recanto do mundo, onde Salazar jurara nunca mais lá voltar, quando lá estivera em 1934. Na ponte de São Cristóvão, junto de alguns ministros, Governador Civil, e Presidente da Câmara Municipal de Melcarte, na altura o farmacêutico, Dr. João Magalhães, disse com algum desprezo e enfado: «Isto aqui é o fim do mundo! Está tudo velho, tudo a cair… Não me convidem para vir cá mais.» E de facto o ditador jamais retornou a Melcarte. Nos seus discursos dizia sempre: «De Valença a Timor…» Este concelho e o vizinho tinham desaparecido pura e simplesmente do mapa! E fez mais: a maioria dos professores do ensino primário passou a ser composta por regentes, apenas com a quarta classe do ensino primário!

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