domingo, 4 de março de 2018

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico - Por Joaquim A. Rocha





// continuação...


- Pouco havia a fazer ali. Os “turras” deviam estar radiantes. Aquela acção tinha sido para eles um êxito completo, pleno: alguns mortos, muitos feridos por balas e estilhaços, o aquartelamento praticamente arrasado! Ao invés, as suas baixas, se as tiveram, deveriam ter sido ínfimas, a bem dizer, insignificantes. A conclusão lógica a tirar de tudo isto seria a de que esta pugna jamais poderia ser ganha de armas na mão. O inimigo não precisava de muita soldadesca: poucos, bem treinados, conhecedores do terreno, moralizados, chegavam e sobravam para um exército de cinquenta mil homens!

- Como iam longe as guerras clássicas – comenta Henrique, lembrando-se dos filmes que já vira acerca desse tema.

- Na mata eram impossíveis, impraticáveis. Por outro lado, a ciência militar, o espantoso avanço tecnológico, tornou obsoletas essas guerras. Agora, e sobretudo no futuro, com a ajuda do computador, da robótica, as coisas já serão diferentes. Por este andar, a sofisticação atingirá o seu auge dentro de poucas décadas. Prosseguindo:

     Depois de, nesse sombrio local, termos estado cerca de um dia, patrulhando a mata em redor, regressámos a Teixeira Pinto na madrugada do dia seguinte. Escusado será dizer que durante a noite ninguém conseguiu dormir. Horas longas, quase eternas. A vista doía de tanto sono e tanto esforço para não lhe ceder, mas o medo, esse sentimento que corrói a alma e nos torna pigmeus, pequeninos, era mais forte do que Morfeu.

     Silêncios profundos, de vez em quando interrompidos pelos ruídos de animais noctívagos, alimentavam ainda mais, se possível, a nossa ansiedade. Os mosquitos, desprotegidos como estávamos, banqueteavam-se à vontade, sem etiqueta, sem pedir licença, enchendo a pança, ao contrário de nós que tínhamos uma lazeira dos diabos e nada para rilhar, nem uma migalha de alimento, nem uma côdea de pão de milho sequer para enganar a fome!

- É o sofrimento na sua máxima expressão! – diz o moço, com uma expressão melancólica, comovido até às lágrimas.

- Bem o podes afirmar! Finalmente, a aurora, radiante, surgiu no horizonte; e novos odores, fragrâncias primaveris da floresta tropical, vieram desejar-nos os bons dias. Lembro-me de ter olhado, olhos semi-cerrados, para aquele amanhecer e monologar: “que linda é a África e como o ser humano a desrespeita, a conspurca!”                  

     Em Teixeira Pinto toda a gente se pelava por saber o que se passara. Nós, porém, fomos bastante lacónicos, parcos em pormenores; queríamos um banho, comer e dormir. Pedimos a todos os santinhos que não nos maçassem durante umas horas.

     Banho… nem pensar! Não havia água nas torneiras. Podíamos ir ao rio tomá-lo, mas estávamos demasiado fatigados para isso; por outro lado, corria-se alguns riscos – quem sabe se na outra margem uma arma mortífera nos espreitava?

- Também já era azar a mais! – comentou Henrique, resfolegando.

- Já estávamos habituados. Assim, comemos alguma coisa e em seguida fomos repousar o corpo e o espírito.

     Acordei sobressaltado. Sonhara com aqueles horrores, com corpos mutilados, com feras raivosas, da boca escorrendo-lhes sangue, a atacarem-nos traiçoeiramente. Para me distrair um pouco peguei em algumas cartas e li-as.

- Por falar nisso, e aproveitando a deixa: podia ler-me mais uma?

- Com certeza, terei todo o prazer nisso:

 
    Querido afilhado

 
            A continuação de boa saúde – esse é o meu desejo. Desculpe se há mais tempo não lhe respondi, sei que isso é imperdoável, mas a causa desse atraso é o seguinte: como queria que na próxima vez que escrevesse lhe mandasse a minha foto, estava à espera que viessem cedo de Lisboa, foram lá para revelar, mas até à data ainda não chegaram; portanto não se ponha a pensar coisas desnecessárias. Logo que elas cheguem mando-lhe uma, mas vai reparar que não sou nenhuma beleza dessas que aparecem nas revistas de modas.

         Então, afilhado, tem-se distraído alguma coisa? Aqui, nesta terra, é tudo muito bonito, mas só que no verão foge toda a gente para as praias e ao domingo é uma autêntica pasmaceira. Se calhar este ano também vou uns dias, estou a precisar muito, a minha pele é demasiado branquinha. Que me diz disso?

     No Minho litoral temos praias lindíssimas, com muito iodo, a água no entanto é um nadinha fria, quase gelada; anos há que é impossível tomar um bom banho! Conhece Ofir, Âncora ou Moledo? Segundo me disseram, em África existem muitas praias e boas, mas estão cheias de tubarões e de crocodilos – será verdade?! Não se arrisque.

         Por hoje nada mais, receba muitos abraços da madrinha muito amiga. E escreva-me depressa, sim?!...
                                                                                                         

                                                                                   Fernanda    

 

- Já lhe estava a pedir para a deixar ir à praia – brinca Henrique, folgazão. 

- Nem queiras saber como desabafei! Ora essa! Só me faltava esta; a falar-me de divertimento, de praias, a mim que nem sequer água tinha para tomar um duche! Achas isso agradável, decente?!

- Que quer o meu amigo? Que ela lhe contasse desgraças, lhe falasse dos inúmeros desastres que ocorriam por esse mundo fora, da fome que grassava em muitos países, das doenças sem cura?!

- Não queria isso, não; sofrimentos tinha-os eu à porta, não precisava dos alheios, mas considero uma afronta ter-me perguntado se me divertia. Onde raio ela imaginou que eu estava? No Casino do Estoril, na Feira Popular, nas praias algarvias?

- Bem, bem! Parece que tomava o assunto muito a peito…

- Nem sequer respondo a essa subtileza. Adiante:

     Quatro da manhã. O alferes Barrelas, esguio como uma árvore em crescimento, verdadeiro trinca espinhas, um dos mais irrequietos oficiais da Companhia, irrompe, em altos brados, pela nossa camarata e ordena: «A pé! Pensam que isto é um hotel de cinco estrelas? Ou julgam que estão em férias? Dentro de cinco minutos quero-os todos formados.»

     Com o corpo ainda dorido, com os olhos teimosamente fechados, vesti-me, peguei na metralhadora e juntamente com os outros apresento-me na parada. Não me apetecia mesmo nadinha ir a essa operação. Não conhecia exactamente o meu peso, mas sentia-me fraco, débil, tísico! Saí da minha terra com cerca de sessenta quilos; se agora pesasse cinquenta já me podia dar por satisfeito!

     Manifestei ao meu alferes o receio de estar doente e a resposta não se fez esperar: «Isto aqui não é para medricas: um homem é um homem.»

- E o Cândido que lhe respondeu?

- Não adiantaria argumentar; no regresso, se regressasse, iria falar com o médico e logo se veria. Devido àquela dor intensa no peito, temia estar tuberculoso. Tanta gente morrera já com essa terrífica doença!




     Antes de partirmos para a nova aventura pelas matas o capitão Fontelas falou-nos: «Esta acção de hoje é apenas de rotina, quase um passeio! Vamos nas viaturas até um determinado sítio e depois seguimos a pé. Levem, de qualquer modo, munições e rações de combate para dois dias. Dirijam-se agora ao refeitório e tomem o pequeno-almoço. Dentro de meia hora quero-os todos prontos para arrancar.»

     Mais nada! Quem éramos nós, filhos de deuses mirrados, de campónios sem eira nem beira, de operários de segunda, de trolhas analfabetos, para tomarmos conhecimento prévio da operação? Simples peças de uma máquina mais ou menos bem montada, limitávamo-nos a cumprir ordens, a obedecer cegamente. Eles sabiam o que convinha fazer: quando e como. A nossa cabeça, a nossa inteligência, os nossos neurónios, ali não tinham qualquer utilidade, eram lixo! Só a presença física, resistência, capacidade de persuadir pelo número, pela força bruta, se levavam em conta.

- Num regime autoritário queria certamente uma democracia militar! – ataca Henrique, com alguma ironia.

- É uma força de expressão – eu sei que não era possível. Continuando: entrámos nas camionetas e rolou-se cerca de uma hora na estrada Teixeira Pinto a Cacheu. Parámos. Os carros voltaram para trás e nós, depois de descermos, dirigimo-nos a pé ao posto de vigilância, Bachile, que se encontrava a uns cinquenta metros da estrada. Nesse posto permaneciam quinze homens, pertencentes a um batalhão mais antigo do que nós na Guiné, cujo comando estava em Teixeira Pinto como o nosso. Um desses homens, o cozinheiro, acabaria por morrer da maneira mais estúpida que se possa conceber. Como a sua especialidade o retinha entre muros, um dia, possivelmente bem bebido (o vinho que nós bebíamos era misturado com água para sobrar para eles), ofereceu-se para acompanhar os colegas numa operação.

     O comandante disse-lhe que não, ele era necessário no posto para confeccionar a comida aos seus camaradas, pois quando regressassem viriam esfomeados, não estava habituado àqueles caminhos, àqueles esforços, arrepender-se-ia se fosse.

- Resultou, a sugestão, o conselho?

- Qual quê! Nada o demoveu. Quis ir à viva força. «Só uma vez!» - implorou ele ao oficial.          

- Até parece que a velha loba esfaimada o chamava!

- Não voltou vivo, não! As balas de “Satã” trespassaram o seu voluntarioso coração e o seu corpo agigantado. «O destino: ninguém lhe pode escapar!» Epitáfio derradeiro sobre uma alma a caminho do além, da estrela mãe, ou da lousa fria.

- Soube, porventura, quais eram os objetivos dessa saída?

- Um dos objetivos principais da nossa ida seria, pelos vistos, rendê-los. Outro objetivo, fazer uma breve batida pelos arredores, a fim de verificar se os “turras” não andavam por perto.

     A zona resplandecia de beleza. Algumas habitações, embora modestas, indicavam-nos que ali não havia problemas de maior. O que mais me chamou a atenção foi a existência de uma árvore gigantesca que, sem quaisquer exageros, nem vinte homens juntos a conseguiriam abraçar. A sua sombra cobria uma vastíssima área.

- Sabe o seu nome?

- Infelizmente não tenho a certeza; não possuo quaisquer conhecimentos de botânica. Apenas distingo o carvalho, o castanheiro, pinheiro bravo e manso, eucalipto, e pouco mais: árvores que crescem no Alto Minho. No entanto, disseram-me tratar-se do poilão, ou poilão-forro; os seus frutos dão uma espécie de lã, chamada sumaúma, a qual utilizam para encher almofadas e colchões.

- Interessante – comenta Henrique.     

- A população residente começava o seu dia de trabalho pastando o gado, cultivando o arroz, colhendo a mancarra, ou amendoim, fabricando o óleo de palma. Não falavam a língua de Camões! Como noutro local te disse, a maioria dos habitantes da Guiné-Bissau não dominava a nossa língua no ano de 1966; a excepção ia para os negros que viviam na capital da província e para alguns chefes locais que a aprendiam, embora bastante mal, para assim poderem ser elos de ligação entre o seu povo e a administração portuguesa.

- Quer dizer que não havia escolas do ensino elementar espalhadas pelo mato! – surpreende-se o jovem.

- O governo português nunca se importou muito com isso; as escolas primárias – poucas – estavam localizadas nas vilas mais importantes e nas cidades. Escola secundária só havia uma na capital! Ensino superior nem o cheiro!

- E era assim que os lusos queriam conquistar a simpatia dos africanos! – espicaçou Henrique, admirado, e com alguma dificuldade em crer em tudo aquilo que escutava.

- Até posso estar errado, mas duvido que a população em geral soubesse que a Guiné pertencia a um país europeu, de seu nome Portugal. Para eles isso não fazia sentido; nós estávamos a ocupar militarmente o seu território. Ali tinham nascido, ali cresciam e morriam. Aquele era o seu chão e não viesse este ou aquele dizer-lhes o contrário. Língua, possuíam a sua, secular, e não precisavam de nenhuma outra. Não lhes fossem também dizer como se criava o gado, como se plantava o arroz nos terrenos alagadiços, como se fazia óleo, vinho de palma e aguardente.  Amavam a sua cultura, a sua religião, os seus mitos e tradições; a sua arte, as suas cerimónias fúnebres, seus rituais, e quiçá a cor da pele! Não, ali não era mesmo poiso de branco; este só na cidade, longe da selva, longe da natureza imaculada.
// continua...

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