quinta-feira, 5 de novembro de 2020

LINA - FILHA DE PÃ

(romance)


Por Joaquim A. Rocha



 

16.º Capítulo

 

      A Lina esteve na Penitenciária de Lisboa, sita na freguesia de Campolide, cerca de doze anos. Sobreviveu, apesar daquela voz maldita: «A penitenciária não é uma casa de reclusão onde o condenado se possa regenerar para uma vida futura; é uma casa de martírio, uma casa de suplício moral, onde o coração se perverte, e onde a alma, involuntariamente, aprende a odiar de morte toda a humanidade. Sim, para o condenado à penitenciária a humanidade deixa de existir tal como se nos afigura, transformando-se para o pobre mártir de uma alucinação momentânea numa enorme alcateia de feras, prestes a lançarem-se sobre a presa completamente manietada, reduzida à mais absoluta impotência, para a devorar, desmembrando-lhe fibra a fibra o seu coração oprimido. A pena a prisão penitenciária, embora à primeira vista se nos afigure o contrário, é de todas as penas de morte a mais bárbara, a mais cruel e a mais desumana; é uma morte física e moral, lenta como as suaves ondulações do mar, feroz como a crueza do tigre, desumana e tétrica como o pior dos cataclismos.»    

     Devido ao seu bom comportamento perdoaram-lhe algum tempo. Na prisão fez a quarta classe do ensino primário, aprendeu a bordar, descobriu que tinha jeito para o desenho, granjeou amigas e inimigas.

     No princípio ainda chegou a contactar com o amante, por carta, mas à medida que o tempo ia passando ele deixou de dar sinais de vida. Tentou saber o que acontecera e por fim deram-lhe a triste notícia: ele morrera. Não chorou, mas teve pena do desgraçado. Afinal de contas até fora bom para ela, ao ponto de estar disposto a casar. E, que ela soubesse, deixara de se interessar por outras mulheres logo que se conheceram. Começava a sentir alguns remorsos. Tanto mal ela fizera. «O demo tentou-me e eu cedi; devia ter-lhe resistido

     Um sacerdote católico, ainda jovem, visitava as reclusas uma vez por semana. Com um sorriso de anjo, olhos vivos e alegres, cativou aquelas mulheres carregadas de crimes. Durante algum tempo, a Lina recusou falar com ele:

 

- Desculpe, senhor padre, mas eu não sou crente; já fui, quando ainda era uma menina. Agradeço que não me incomode.

          

     O presbítero apenas lhe disse o seguinte:

 

- Lina: eu venho aqui à prisão como amigo, mas se qualquer de vocês não desejar a minha presença, eu não insisto. Se alguma vez quiser ter uma conversa comigo não hesite: procure-me.

 

    Sorriu para ela e retirou-se. Ele sabia que não era fácil conquistar a confiança e amizade daquelas mulheres que tanto sofreram e fizeram sofrer os outros. Quando visitava a prisão levava sempre uma lembrança: um santinho, um rosário, uma medalha… Tudo feito de material barato, pois a Igreja Católica só era rica em Roma. O Vaticano possuía tesouros incalculáveis. O ministro das Finanças, sacerdote diplomado em Economia por uma das mais célebres Universidades do planeta, sob a tutela e dependência do Papa, via-se em palpos-de-aranha para administrar aqueles bens todos, que a guarda suíça vigiava constantemente. Todos os países onde houvesse uma igreja católica tinham de enviar para lá dinheiro, pois a despesa com aquele exército de padres, bispos, cardeais, funcionários, etc., era imensa!

      O padre Álvaro não queria saber disso para nada; apenas desejava convencer aquelas almas a mudarem de rumo, a reentrarem no caminho correto, em direção a Deus. Os seus pais, gente modesta, não tinham dinheiro para ele estudar, por isso pediram ao padre da freguesia para o levar para o Seminário. Tudo correu bem, e ei-lo agora sacerdote. Toda a gente gostava dele e ele retribuía, apesar dos seus manifestos defeitos. Dizia muitas vezes: «É certo que Deus criou o ser humano à sua semelhança, mas deu-lhe o livre arbítrio, o que levou muitos homens e mulheres a julgarem que eram superiores ao próprio Deus, a cometerem barbaridades impensáveis

    Conhecia muitos filósofos que não perfilhavam essa tese; escreveram eles que Deus não era todo-poderoso, por isso não podia conceber seres perfeitos. A prova estava na existência de Satanás. Por que existia essa criatura se fazia mal aos seres que Deus criara?! Era uma aparente contradição, uma perfeita aberração, mas ele abraçara desde jovem essa tese e não a ia abandonar nunca.

 

**

 

     Lina sentara-se na sala, onde as reclusas costumavam ler, ou praticar atividades lúdicas, enquanto não eram chamadas para a refeição da noite. Nessa ocasião passa o padre Álvaro. A reclusa chamou-o. Há muito tempo que desejava conversar com ele, mas ainda não ousara fazê-lo.

 

- Senhor padre: pode dar-me um minuto de atenção?

 

     O sacerdote olhou para a Lina, ou “a minhota”, como todos lhe chamavam na prisão, com aqueles olhos bondosos, e diz-lhe:

 

- Um minuto, dois, o tempo que quiser, Lina. Eu estou sempre disponível para o meu semelhante, até agradeço que falem comigo.

 

- Obrigada. Sabe: eu cometi muitos erros ao longo da minha vida. Nasci no seio de uma família de camponeses e jornaleiros, pobres, mas honestos, e todos esperavam que continuasse, tal como eles, na senda do bem. A minha rebeldia, contudo, não permitiu que eu seguisse esse caminho. Frequentei a escola pouco tempo, depois andei aos recados dos crescidos, a guardar cabras e ovelhas, a ajudar a minha mãe nos trabalhos domésticos. Ainda eu era bastante nova quando o meu pai morre, doente dos pulmões e alcoólico. O meu destino estava traçado: tive de ir servir, para ajudar em casa. E sabe para onde a minha mãe, pobre coitada, me levou? Para casa de um juiz. Era um homem jovem, bonito, solteiro, bem-falante, e estava sozinho. Ao fim de uns meses já eu lhe pertencia. Possuiu-me e ao cabo de nove meses dei à luz uma criança do sexo feminino.

 

     O padre interrompeu-a, a fim de lhe perguntar:

 

- E a Lina, por que não fugiu de casa do seu patrão? Não lhe faltariam casas sérias para trabalhar.

 

     Ela pensou um bocado e respondeu-lhe:

 

- A razão, senhor padre Álvaro, é que eu estava loucamente apaixonada por o Senhor Doutor Juiz. Antes de ele me desejar já eu o desejara! Era uma adolescente, via então o mundo cor-de-rosa. Ele era um modelo de perfeição, irresistível. Sonhava com ele todas as noites.

- Não me diga que lhe passou pela cabeça que o magistrado a pediria em casamento?

- Talvez! Eu sabia, pelo menos tinha a noção, que entre os dois existia um universo de diferenças, mas quem não sonha naquelas idades? Já viu?! A filha de camponeses casada com um Senhor Doutor Juiz, ainda, por cima, um homem novo, bonito, culto.   

- Era como nos contos de fadas!

- Isso mesmo, como nos contos de fadas: ele era o meu príncipe, e eu era a gata borralheira.

- Como é bom sonhar, Lina, mas a realidade não se compadece com sonhos. Um juiz contrai matrimónio com uma senhora da sua condição, da alta sociedade… A Lina, analfabeta, inculta, não correspondia aos seus padrões; usou-a apenas para obter prazer carnal. Sem querer, a sua mãe meteu-a na boca do lobo, e os lobos são feras, seres brutos, sem sentimentos. 

- A vida, padre Álvaro, é um jogo de interesses. Depois de ter entrado neste estabelecimento prisional, de onde provavelmente sairei num caixão para o cemitério, comecei a pensar no meu passado e cheguei a uma terrível conclusão: alguém me manipulou, alguém me obrigou a fazer aquilo que eu no fundo, bem no fundo do meu ser, não queria, não desejava pôr em prática.

- E quem acha que é esse alguém? Não se está certamente a referir a Deus ou ao Diabo?!

- Talvez sim e talvez não… Para si, que é homem santo, será fácil deduzir que nós, humanos, navegamos ao sabor de duas forças colossais, a que chamam o bem e o mal… Mas será assim? E o destino? Quem comanda o destino? Não será o destino uma terceira força, cuja energia se renova constantemente, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto?

- Quer significar com isso que o destino é sinónimo de natureza?!

- Exatamente. Segundo o meu critério, destino e natureza são uma só força.

- E Deus e o Diabo, qual é o seu papel então?

- Quanto a mim, padre Álvaro, são os instrumentos que o destino usa para alcançar os seus fins.

- Onde quer chegar, Lina?

- Repare: a natureza cria, mas também destrói. E quem, qual de nós a acusa, lhe aponta o dedo? Ninguém! Resignamo-nos com tudo o que ela nos dá ou subtrai; no entanto acusamos o demo pelo mal que nos faz e louvamos a deus pelo bem que nos concede!

- Bem pensado, minha amiga. Apenas se esqueceu de um pormenor: é que Deus criou tudo aquilo que existe no universo.

- Se aceitarmos isso como verdadeiro, aceitamos também que deus criou o bem e o mal, a saúde e a doença, a fome e a fartura, a guerra… Quem desejaria um deus desse quilate?

- Lina, não se trata de um desejo: nós não temos escolha!

- E onde cabe o livre arbítrio? As opções que a gente toma, as decisões que mudam para sempre o nosso rumo, são pré-determinadas?

- Lina: você começa a confundir-me, mas que quer ouvir de mim? Deseja ouvir da minha boca palavras de conforto ou apenas ambiguidades, incertezas, desconstruções?

- Não sei, padre Álvaro; eu apenas quero reencontrar-me, saber quem sou, quem ousou servir-se de mim para exercer o mal sobre os meus semelhantes.             

- As respostas a essas complexas questões, encontrá-las-á ao longo da sua vida. Só Deus poderá satisfazer essa sua ânsia na procura da verdade. Minha amiga: os caminhos não são fáceis de percorrer: existem neles inúmeros escolhos, barreiras quase intransponíveis, mil e um perigos incalculáveis.

- Obrigada por esta conversa, padre Álvaro. Se não se importa voltaremos a conversar mais tarde, estou a ficar cansada.

- Eu também lhe agradeço, minha amiga; gostei muito de conversar consigo.

 

     O eclesiástico retirou-se. Lina ficou a meditar na conversa que acabara de ter com o religioso. De facto, os caminhos da vida eram sinuosos, com altos e baixos, e a culpa, se é que existia culpa, teria de ser equitativamente repartida por todos os intervenientes. Ela fora um joguete nas mãos do juiz e depois tornara-se ela própria uma manipuladora de fantoches! Porquê? Para se vingar do mal que lhe fizeram? E por que não se vingara na pessoa do magistrado?! Afinal de contas fora ele que a transformara num demónio.

     Agora era tarde para voltar atrás, para remediar o mal que fizera a tanta gente. Ali, naquela imensa prisão, com mulheres e homens do piorio que havia na sociedade portuguesa, gente sem escrúpulos, sedentos de sangue, só havia uma coisa a fazer: estar vigilante, lutar pela sobrevivência.

    

     Nessa noite dormiu pessimamente. Fez uma retrospetiva da sua caminhada, arrependeu-se de todo o mal que causara, e decidiu a partir daí seguir outro rumo. Era imperioso dar uma guinada de muitos graus. Mesmo na cadeia, poderia ser útil aos outros. Dirigiu-se a uma funcionária e disse-lhe:

 

- D. Amabélia: venho inscrever-me como voluntária para a enfermaria; agradeço que vocês me dêem essa oportunidade. Estou disposta a sacrificar-me pelos outros, como forma de arrependimento.

 

     A empregada olhou para o seu rosto, sobretudo para os seus olhos, e verificou que havia sinceridade nas palavras da reclusa. Dirigiu-lhe então a palavra:

 

- Isso não depende de mim, mas vou transmitir aos meus chefes a sua disponibilidade. Quero apenas avisá-la de uma coisa: esse trabalho não é fácil; muitas das mulheres que vão parar à enfermaria são portadoras de doenças terríveis, muitas delas morrem ali, depois de enormes sofrimentos. A Lina tem trabalhado nas oficinas, toda a gente gosta dos objetos que faz, o senhor diretor está satisfeito com o seu comportamento, até pode acontecer que lhe perdoem alguns anos da sua pena. Não estrague tudo, ao aceitar tal tarefa – o mais certo é ser contaminada.

- Estou decidida e nada me fará voltar atrás: cometi muitos crimes e quero pagar à sociedade a minha dívida – não posso ressuscitar quem morreu, mas posso minorar o sofrimento das minhas colegas de infortúnio.

- Tudo bem, Lina; passe cá amanhã que já devo ter uma resposta para si.        

 

     No dia seguinte lá estava na secretaria da Penitenciária. O pedido fora aceite. A partir desse dia iria ser ajudante de enfermeira, mas primeiro teria de assistir a aulas de enfermagem. Ficou radiante. Para ela era como se tivesse recebido um prémio. Dedicar-se aos outros, sobretudo quando mais precisavam de apoio, era agora o seu objetivo. Se alguém de Melcarte fosse visitá-la (o que nunca até ao presente momento acontecera – nem filha, nem os próprios irmãos), não a reconheceriam. Os seus olhos agora eram calmos, meigos; a sua boca perdera aquele esgar de troça que outrora a caraterizara; as suas palavras tornaram-se sábias. Adquirira conhecimentos profundos sobre a psicologia humana, como se tivesse estudado anos seguidos nas melhores universidades do continente europeu.

     Era respeitada por todos: guardas prisionais, pessoal administrativo, colegas de cativeiro. Até já, por mais de uma vez, o diretor a tinha apresentado como modelo a seguir pelas outras.

    Ao fim de uns anos de ajudante de enfermeira, em que a sua dedicação, carinho, e – segundo constava – algumas curas milagrosas, o diretor mandou chamá-la. Os cabelos da Lina estavam agora completamente brancos, algumas rugas surgiam aqui e ali, a lembrar-lhe que o tempo passa inexoravelmente.

     Dirigiu-se ao gabinete, acompanhada por duas guardas da prisão, não que tivessem qualquer receio de ela ir praticar algum mal, mas sim por fazer parte das regras, e qual não foi o seu espanto ao ver junto do Senhor Diretor uma estampa de senhora, sorrindo para ela. Ficou estupefacta: alguém, do mundo civilizado, sorria para ela, como se nunca tivesse cometido um crime! Estava novamente a sonhar. Não podia ser: ela armara-se de todos os instrumentos ao seu alcance para evitar essas fantasias. Pecara perante a natureza e a sociedade e por isso continuava a pagar pelos seus crimes. Abraçara a realidade, os sonhos eram propriedade dos outros – ela não os merecia.

     A senhora dá dois passos na sua direção. Os seus olhos estão arrasados de lágrimas. Abre os braços para a Lina e exclama:

 

- Mãe! Minha mãe! Não se lembra de mim? Sou sua filha, a Lisete.

- Lisete! Minha querida filha! Tu aqui! Perdoas à tua mãe todo o mal que te fez? Perdoas?        

- Perdoo; perdoo-lhe tudo. Ainda estamos a tempo de sermos felizes; nunca mais a deixarei.

- Minha querida filha, vem visitar-me quando puderes, gostaria que me contasses tudo sobre a tua vida. Já tenho netos?

 

     Lisete ia novamente falar, mas o Diretor impediu-a amavelmente; agora era a sua vez. Olhou para a Lina fixamente, com um sorriso nos lábios, e disse-lhe:

 

- Sua felizarda: a partir deste momento é uma mulher livre. Cumpriu muitos anos de prisão, modificou-se, para melhor, hoje pode frequentar a sociedade sem receio de recaídas. O seu caráter é forte e saberá enfrentar de cara erguida a adversidade. Para tal, vai ter uma preciosa ajuda: a sua filha vai levá-la para a casa dela, onde viverá o resto dos seus dias em paz e tranquilidade. 

 

     Lina desatou a chorar. Abraçou-se à filha, como se fosse a âncora que lhe faltava para encarar a realidade exterior. Onde moraria ela? Em Melcarte não seria, quase de certeza. As suas roupas, a maneira de falar, a sua elegância, desmentiam essa possibilidade. A pronúncia da raia, junto à Galiza, notava-se logo quando alguém falava. A sua filha vivia na cidade, nos meios cultos e desenvolvidos. Dirigiu-se ao Director com delicadeza, com o máximo respeito, para lhe dizer:

 

- Apesar de ter entrado neste estabelecimento prisional como reclusa, aqui aprendi muito e não quero, por essa razão, deixar de agradecer ao Senhor Diretor, pessoal administrativo, guardas, e até às minhas colegas de infortúnio, toda a atenção que me dispensaram ao longo destes anos. Nunca pensei sair daqui viva. Aconteceu, e fico satisfeita por isso. Reencontrei a minha filha, a quem tanto mal fiz, e tudo irei tentar para que ela não se arrependa jamais de hoje estar aqui, neste gabinete, a fim de me levar com ela. Adeus senhor Diretor; espero que cada vez tenha menos prisioneiros, pois será sinal de que as pessoas estão a melhorar.

 

     Pegou na mão da Lisete, cumprimentou o Diretor, e retirou-se. Quando estavam no corredor diz à filha:

 

- Lisete: espera aqui um bocadinho. Vou despedir-me das minhas camaradas e das empregadas.       

- Vá mãe, vá; eu aguardo aqui por si.

 

     Despediu-se, com abraços, de toda aquela gente. As lágrimas corriam por todos aqueles rostos. Algumas disseram-lhe: «És uma santa, Lina; és uma santa!» // continua...

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