segunda-feira, 23 de novembro de 2020

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha

 



AS MARIAS DA FONTE DE CHAVIÃES

 

      António Bernardo da Costa Cabral (1803-1889), marquês de Tomar, foi nomeado ministro do reino pela rainha D. Maria II. Empolgado com tal nomeação, quis mostrar obra. Então, faz publicar o novo código administrativo (1842), reorganiza a guarda nacional, e leva a cabo a reforma das Câmaras Municipais (1842-1843). Embora o automóvel ainda não existisse, tenta rasgar novas estradas, pois aquelas que havia, poucas, eram quase todas do tempo dos romanos! O parlamento, também ele entusiasmado, aprova três leis que Costa Cabral tenta pôr em prática: a lei da saúde (proibia os enterramentos dentro das igrejas); a lei da contribuição de repartição (obrigava à declaração dos haveres e dos rendimentos de cada pessoa); e a lei das estradas (impunha aos homens válidos quatro dias de trabalho anuais gratuitos). Os adversários de Costa Cabral, sobretudo os adeptos de D. Miguel, exilado desde 1834, entre os quais muitos clérigos, que entretanto tinham perdido grande parte do poder, que usaram despoticamente, aproveitaram estas três leis, impopulares, para derrubarem o chefe do governo. Em Março de 1846, na freguesia de Monte Arcada, Póvoa de Lanhoso, um cadáver ia ser enterrado fora da igreja. Contudo, as mulheres, jovens e mais velhas, após centenas de homilias, anos a fio a ouvirem dizer que o demo reencarnara no liberal, não permitiram que o corpo da defunta fosse sepultado no adro. Deu-se então início à revolução chamada «Maria da Fonte», que só terminaria em Junho de 1847, pela Convenção de Gramido. Os anos foram passando, o marquês deixou o governo, veio a regeneração, e com ela o fontismo. O país progrediu, parece que estávamos no bom caminho. Porém…     


     A introdução tem a ver com aquilo que eu vou escrever a seguir: Chaviães, junto ao rio Minho, é uma das freguesias mais antigas de Melgaço. Com uma população média de seiscentos a setecentos habitantes no século XIX, vivendo do seu trabalho agrícola e da pesca no rio Minho, além da pirotecnia, não dava azo a grandes notícias. No entanto, aquela lei da saúde não agradou àquela gente humilde. Comentavam: «Que raio, depois de mortos sermos enterrados fora da igreja, do local sagrado, é demais! Nós não somos cães, nem gatos, temos alma.» Os padres estavam receosos: por um lado queriam cumprir a lei, mas por outro lado bem gostariam de contrariar aquela “gentalha” do liberalismo que tanto mal lhes causara. E o povo era maleável, era preciso lançar a semente da revolta; eles sabiam que os cadáveres sepultados na igreja poderiam provocar graves doenças, mas não desejavam colaborar com os políticos saídos da revolução de 1820 – isso nunca! Os anos foram passando, o conflito entre o governo de Lisboa e o poder local, sobretudo com alguns concelhos conservadores do norte do país, estava latente, mas a distância e a dificuldade nos transportes e comunicações da altura iam adiando a execução das leis nacionais. O cura de Chaviães, Bernardo António Rodrigues Passos, irmão do médico Passos, ia gerindo as suas contradições conforme podia. No dia 31/1/1885 convenceu a família de Maria Caetana a enterrá-la no adro da igreja. A população não gostou, mas as coisas ficaram por ali. Em Março do mesmo ano Ludovina Rosa também foi sepultada no adro. O povo bufava! No dia 1/5/1885 também foi sepultado no adro Vitorino José Esteves. Foi a gota de água que fez transbordar o copo. No dia 16 desse mês e ano ia a enterrar António Jacinto Gonçalves; porém, as mulheres, munidas de enxadas, forquilhas, ferros, ancinhos, e outras alfaias agrícolas, invadiram o templo sagrado, abriram uma cova no chão da igreja e ali enterraram o cadáver. O padre Bernardo limitou-se a ser um mero espectador. No assento de óbito escreveu: «… dando eu disto parte à autoridade administrativa em meu ofício de 19 do mesmo mês de Maio.» A revolta das mulheres da freguesia de Chaviães surpreendeu algumas pessoas, mas não todas. Sabia-se que essa lei nunca fora bem aceite na província. Enterrar os mortos fora da igreja, em espaços livres, onde os cães e porcos, e galinhas, e outros animais, andavam à vontade, passeando-se por cima das campas, levantava sérios problemas de consciência. A religião era assunto sério. A autoridade administrativa, ciente do seu dever, interveio duramente: as revoltosas teriam de se resignar; a saúde das populações, em um tempo em que a higiene pessoal e coletiva deixavam muito a desejar, estava acima das crenças. Os próximos três enterramentos foram de facto feitos no adro da igreja – 14 de Junho, 23 de Agosto e 13 de Setembro de 1885; mas no dia 21 de Outubro faleceu Maria das Dores Simões, com apenas trinta e cinco (35) anos de idade, esposa de Luís António Alves e mãe de uma menina. As “amazonas” de Chaviães, e provavelmente de outras freguesias vizinhas, armadas com tudo aquilo que apanharam a jeito, acompanharam o funeral e obrigaram o pároco a enterrar o corpo na igreja! Escreveu ele: «e foi sepultada dentro da igreja de Chaviães por causa do mulherio revoltado que obstou ao enterramento fora dela.» Nos próximos enterramentos o vigário escreveria: «… e foi sepultada dentro da igreja desta freguesia por causa retro mencionada»; «e foi sepultada dentro da igreja (…) pelo motivo retro indicado»; «… e foi sepultada dentro da igreja por causa do obstáculo já indicado»; «… por força maior obstar a ser fora.» Cansado de repetir a mesma lengalenga o abade escreveu, depois de 25 de Outubro de 1886: «e foi sepultada na igreja na falta de cemitério público.» Era uma desculpa. Naquele tempo os cemitérios ficavam baratíssimos: a mão-de-obra era abundante e mal paga, os terrenos praticamente oferecidos, e as campas eram rasas; o coveiro exercia simultaneamente outra profissão. O problema residia na fé: os cristãos estavam convencidos de que a alma do defunto ficaria desprotegida, não iria para o purgatório ou para o céu caso o corpo não fosse sepultado na igreja! Com o tempo, e o avanço da ciência, as coisas alteraram-se, para melhor, os cemitérios foram murados, e no seu interior erigida uma capela, mas apesar de tudo o obscurantismo, a superstição, ainda anda por aí!   // continua...      

 

Artigo publicado no jornal “Fronteira Notícias”, n.º 10, de 8/4/2005.

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