sábado, 20 de abril de 2019

LEMBRANÇAS AMARGAS
                                                          (romance)

Por Joaquim A. Rocha

 


 

 

XXIX


Aliada de Satanás por sentença do Homem

 
     A “Palina”, qual novo Fausto, conseguiu, com as suas demoníacas façanhas, atrair a atenção da criançada. Depois de termos admirado na tela do cinema as aventuras policiais de um Lino Ventura, de um Eddie Constantino, ou de um qualquer Poirot, que melhor nós queríamos do que ver ao vivo a GNR a correr atrás de uma aldeã com cérebro de Fantôme?

 

- A “Palina” foi presa, vai ser levada agora para a cadeia.

- Eh… pá! Vamos lá ver. A gaja é terrível. Sabes o que ela fez?

- Dizem que matou uma mulher com veneno.

- Com veneno?!

- Sim, Rina; com veneno dos ratos. Ia-lho dando, em pequenas quantidades, no chá.

- Então ela estava na casa da outra?

- Estava; era sua criada.

- E matou-a porquê?

- Dizem que andava amigada com o marido; se a matasse, casava com o seu viúvo.

- Ai a filha da mãe. E como descobriram?

- Uma parente, prima da vítima, desconfiou e veio fazer queixa à Guarda Republicana.

- E como sabem que foi com veneno dos ratos?

- Eh… pá! Isso são os médicos que descobrem, abrem as barrigas dos mortos e depois podem ver tudo lá por dentro.

- Ó Cândido: e ela já tinha casado com o tal senhor?

- Parece que não teve tempo, andavam a tratar dos papéis no Registo.

- Vamos então vê-la levar para a prisão?

- Vamos.

- Olha a gaja, até parece uma pastorinha embrulhada naquele xaile!

- Parece, parece, mas olha que de santa não tem nada, até há quem diga que ela fala com o diabo! Sabes que antes desta patifaria já tinha praticado outra?
 


 
- Outra? Eu não me lembro.
- Tu és um despassarado. Ela era criada doméstica de um velho, o senhor Mário César, conheces, e à noite, para o aquecer, deitava-se com ele; às tantas diz ao idoso que estava prenha. Encheu a barriga com uma almofada e foi comprar uma criancinha à aldeia por quinhentos escudos, vê lá! Arrancou as pestanas à criança para parecer ainda mais nova e disse ao homenzinho que era filho dele; e o velhinho, palerma, acreditou; queria apanhar-lhe a fortuna, mas os parentes e herdeiros dele começaram a investigar, viam a herança a fugir-lhes das mãos, até que acabaram por descobrir tudo.



- Ai a cabrona; que ladina ela é. E esteve presa?

- Esteves presa, fugiu da cadeia, depois foi apanhada e esteve lá cerca de dois anos, agora cometeu este crime.

- Nunca mais sai da prisão.

- Há quem diga que vinte, ou vinte e tal anos, apanha de certeza. Só tenho pena de uma filha pequena que ela tem, vai ficar durante muito tempo sem a mãe, esperemos que tenha avós.

- Também para ter uma mãe daquelas vale mais não ter nenhuma.

- Estas mulheres geralmente são muito boas para os seus filhos, são como alguns animais, defendem-nos com unhas e dentes.

- Tenho a impressão de que ela se vai baixar.

- Ai a cabrita; conseguiu fugir aos guardas. Como é que o conseguiu?!

- Não reparaste? Atirou-lhe com areia aos olhos.

- Nunca mais a apanham, meteu-se pelos campos de milho que está quase da altura de um homem.

- Fantástico; é mesmo uma mulher-diabo! Olha: eles ainda lhe atiram fogo, valerá de muito.

- Eu não te disse que era divertido virmos ver isto, que grande aventura; os outros vão cair de cú quando lhes contarmos.

- Os guardas estão furiosos, bem feito! A nós, por roubarmos fruta das árvores, levam-nos para o posto, cascam-nos, e ainda por cima nos ameaçam com a Casa da Correção; a ela, que matou uma mulher honrada, deixam-na escapar!

- Agora não vão descansar enquanto não a apanharem; eu não lhe queria estar na pele. 

- Desta vez ela é capaz de fugir para Espanha ou para França; sabe que se a pilham verá o sol aos quadradinhos o resto da vida.

- Que se lixe a mulher, é fogo; vamos mas é jogar a bola, que os outros já devem estar impacientes e a interrogar-se por nós ainda não termos aparecido.  


 

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