domingo, 4 de setembro de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
 
Por Joaquim A. Rocha



desenho de Sílvia Neto (a confirmar)

... continuação.

- São águas passadas. Lembro-me que quando fugi do hospital escondi-me nos campos, apareci somente à noite, sempre tive receio da noite, sobretudo por causa dos espíritos dos mortos, a nossa mãe levava-me aos velórios, o defunto ali na sala, estendido no caixão, aquele cheiro a cadáver, aqueles panos brancos a cheirar a água da colónia barata nos olhos vítreos, que algumas pessoas tiravam para lhe ver a cara. Aquelas histórias de espíritos malignos que se contavam durante aquelas horas intermináveis: «não se deve andar pelo meio da rua depois da meia-noite, é a partir dessa hora que passam os funerais, os mortos afastam violentamente os vivos…»; eu a querer dormir mas não tendo um local para o fazer, tão pequenino e naquelas andanças, a mamã oferecia-se sempre para lavar os corpos dos que tinham falecido, não sei se era para os familiares ficarem agradecidos ou se ela era mesmo assim, sempre pronta a ajudar os outros, ou porque gostava daquilo, é difícil saber ao certo, isso está no íntimo da pessoa, os outros não sabem, nem mesmo os filhos, o mais provável era ela ajudar desinteressadamente, eu não gostava dos velórios, mas não podia ficar em casa sozinho, não suportava a solidão, preferia ir com ela, se calhar nem sequer teria alternativa, andava todo borrado de medo, já via fantasmas em todo o lado, tinha horror da escuridão, ficava triste, arrepiado, completamente aterrorizado. No velório do tio Catão foi uma comédia: o morto na urna e por baixo, na corte, o porco a grunhir, até parece que estava a lamentar-se pela morte do dono, toda a gente riu, pudera, já estavam cheios de café e bagaço, por volta das cinco íamos ao forno comprar pequenos pães, chamados petins, ou moletes, quentinhos, para barrar com manteiga, até anedotas se contavam junto ao defunto! Noutro velório, o do tio Fabião, entrou o neto, uma criança de quatro anos de idade, e perguntou: «o que é que o meu avô está a fazer ali deitado no caixote?» Calculas a risada que foi! A mamã ia para as aldeias, aparecia altas horas, eu assobiava para enganar o espantalho do medo, no inverno era pior, os dias são curtos, há pouco sol, a noite cola-se ao dia, quase que nem se dá por nada, é tudo escuro, a nossa alma é escura, cinzenta, o receio oprime e invade o nosso coração, ainda hoje detesto a noite.

- A mamã quis levar-te outra vez para o hospital…

- Eu disse-lhe então que preferia matar-me, preferia desaparecer para sempre, que me importava? Que me batesse, que me arrastasse pelas ruas, eu fugiria sempre, iria para o monte, para junto dos lobos, das feras, não queria estar na «cadeia», com aquela gente esquisita, a comer somente caldos de galinha, a cheirar permanente aqueles químicos, a apanhar todos os dias aquelas injeções assassinas.

- Ficaste em casa, foste melhorando pouco a pouco.

- Naquelas idades ou se melhora ou se morre; é verdade que nunca fiquei completamente bom, tive sempre problemas na barriga, de vez em quando bichas pelo rabo, até pela boca, mas as coisas evoluíram favoravelmente; graças a Deus, e talvez àquele chã de ervas amargas, que todos os dias tomava, comecei a comer melhor, a engordar um nadinha. Lembro-me que até alfarrobas comi! Tinham vindo do Algarve para alimentar os cavalos dos guardas-fiscais; apanhei-os de costas, saltei para dentro da camioneta e tirei um punhado cheio – que grande barrigada! E eram doces como o mel.

- Podias ter rebentado, dizem que a alfarroba é muito indigesta. Depois a escola…

- Entrei para a primeira classe aos sete anos, era tão pequenino, tão raquítico, um fuinha; o professor nem queria acreditar que eu tivesse aquela idade, parecia um anão, magrinho, lanudo, descalço, que calçado só aos treze ou catorze anos é que tive umas sandálias que a mulher de um carabineiro me deu, estavam-me grandes, mas era melhor do que nada, pelo menos não trazia os pés no chão, que olha: os meus pés já pareciam de sola, eram mais duros do que as pedras, tu também passaste por isso, sabes do que estou a falar, mas olha que mesmo com fome e sem agasalho era dos melhores alunos, o professor Romano gostava muito de mim, chamava-me o Candinho, tinha uma grande simpatia por mim, ai não!... Que eu levava a escola a sério, sabia a tabuada de cor, não era como alguns, desertavam, não gostavam das aulas, depois o professor batia-lhes, os pais iam reclamar, acusavam, diziam que os filhos tinham as costas todas doridas das canadas que o professor lhes dava, daquela cana-da-índia sempre encostada ao quadro-negro, até parecia que nos olhava com ar zombeiro! Mas eles não estudavam, os mandriões, só andavam na escola porque eram obrigados, nunca estavam atentos ao que o mestre ensinava, depois não sabiam nada, nem a tabuada dos dois! Um chegou a ir à cama por causa das canadas e reguadas que apanhou, coitadito, mas o professor fazia aquilo para bem deles, pensava que batendo-lhes eles se dedicariam mais aos estudos, mas não resultava, só alguns, poucos, é que começaram a portar-se melhor, com receio de apanharem!                              

- Tu ainda chegaste a estudar mais alguma coisita…

- Tinha eu dezassete anos, apareceu aqui na Vila curso designado “Curso Elementar de Aprendizagem Agrícola”, teria a duração de quatro anos, mas só fiz os dois primeiros, era necessário haver um determinado número de alunos, todos do sexo masculino, as raparigas não eram aceites, foi pena, porque os rapazes não gostavam de estudar, preferiam o trabalho pesado da lavoura ou da construção civil, assim só davam o corpo ao manifesto, não esforçavam o cérebro, e por essa razão acabou por falta de estudantes, ao cabo de dois anos éramos somente três, eu ainda cheguei a ir buscá-los a casa, mas eles, calaceiros, arranjavam quase sempre uma desculpa infantil para não irem. O professor era o senhor Salomão, boa pessoa, viria a morrer atropelado na cidade por um automóvel anos depois, gostava muito de dar as aulas, aprendia-se bastante, eram matérias interessantes: português, matemática, desenho profissional, ciências…; foi quando eu comecei a trabalhar por conta própria, o meu patrão tinha ido para França – não ganhou nada com isso, acabou por morrer estoirado, ele era trinca espinhas como eu, foi à procura dos francos, mas o que ele encontrou foi a maldita morte. Coitado, deixou dois filhos pequenos e a viúva, ele aqui até ganhava mais ou menos, mas viu os outros irem e não resistiu, a ganância, queria enriquecer, mas olha que eu nunca vi ninguém enriquecer com o trabalho, seja em França ou noutro país qualquer, só se for com negócios, e por vezes sujos.     

- Isso é verdade, eu também nunca vi ninguém ficar rico a trabalhar, claro que os emigrantes juntam algum dinheiro mas é à custa de muitas horas de trabalho, quase que não descansam, e cuidam eles próprios da alimentação e da roupa, além disso vivem em barracas de lata, nos chamados bidonvilles, porque se morassem numa casa verdadeira já não amealhavam tanto, os carros que trazem são alugados ou comprados em segunda ou terceira mão, porque os novos são muito caros, não são para a sua bolsa, os usados é que são baratos, ouvi dizer que os franceses mudam de carro como quem muda de camisa, ganham bem, podem comprar bons carros, os portugueses comparados com eles são uns pelintras, uns pobretanas. 

- Quando apareceu a televisão já tu estavas em Lisboa quase há três anos. Nem fazes ideia o que foi por aqui: as mulheres e os homens, velhos e novos, acorriam ao único Café com aparelho de TV; o dono não tinha cadeiras e espaço para todos, alguns, muitos, ficavam em pé, chegava a haver zaragatas; era obrigatório consumir, pelo menos um café ou um leite com chocolate. Nos primeiros tempos era uma borga, interrompiam constantemente os programas, havia um interlúdio, um gato de um lado para o outro, as pessoas desesperavam, a tia Ernestina dizia alto e bom som que preferia a rádio novela, pelo menos não havia interrupções nem gatos; é verdade que ela deixava passar em claro o facto de se ouvir mal a rádio, era só ruídos, pois a corrente elétrica espanhola não era suficientemente potente para os aparelhos funcionarem bem.

- Em Lisboa também foi uma paródia, um pandemónio, todos os Cafés rivalizavam entre si, compraram aparelhos enormes, pareciam caixas, queriam atrair mais clientela, as ruas a certas horas da noite permaneciam desérticas, toda a gente ficava horas especada frente ao televisor. Um grande acontecimento, um fenómeno!     

- Ainda me lembro dos primeiros programas, com o Artur Agostinho, o Camilo de Oliveira, etc.; muito nos ríamos com aquelas palhaçadas! Passados que foram os meses iniciais, voltou tudo à normalidade. Além dos Cafés as pessoas começaram também a adquirir televisores, o espantoso evento vulgarizou-se.

- Quem deve ter perdido clientes foram os donos dos cinemas e outras casas de espetáculo.

- Sem dúvida. Aquelas casas cheias: quintas à noite, sábados e domingos, tarde e noite, deixaram de se verificar. O dono do Cine-Pelicano já dizia que por aquele andar mais tarde ou mais cedo teria de encerrar as portas, os alugueres dos filmes eram elevados, tinha de pagar aos guardas-republicanos e aos bombeiros, consumia muita eletricidade, havia que pagar aos empregados, a receita já não cobria a despesa.

- Tantos filmes lindos, eu vi naquela Sala!

- Lembras-te dos filmes de Charlot, do Cantinflas, do Bucha e Estica, do Fernandel, do Totó? E o Costinha, Vasco Santana, o extraordinário António Silva?! Fizeram-me rir até às lágrimas.

- Eu gostava mais dos filmes de cow-boys e peles vermelhas, do Búfalo Bill, dos Três Mosqueteiros, e também dos policiais.

- Também apreciava esses, mas os meus preferidos eram os filmes bíblicos. Por exemplo «Moisés», «Dez Mandamentos», «Ben-Hur», etc. Um filme que nunca esqueci, e não me importava de ver outra vez, foi «A mulher que viveu duas vezes»! Grande filme. «A Senhora de Fátima e os Três Pastorinhos» teve aqui muito êxito; muitas pessoas saíram do cinema a chorar, de tão comovidas.    

- A mim vinham-me as lágrimas aos olhos com os filmes de Joselito e de Marisol, que comoventes, e que vozes, pareciam rouxinóis a cantar! Também gostava de «Robin dos Bosques». O Errol Flynn fazia um papel extraordinário em «O Gavião dos Mares». O «Corcunda de Lagardère» encheu-me as medidas. Tantos! 

- Por causa dos filmes de espadachins perdeu um olho o “Vesgo”.

- É verdade. Brincávamos com espadas feitas de madeira e o “Zé Pirete” furou-lhe um olho. 

- Podia ter havido mais incidentes. Lembras-te quando andávamos a atirar setas uns aos outros?

- Se lembro! Uma altura o “Nesgas” fez um buraco na perna do “Pinchas” – o rapaz gritava como um doido.

- Velhos tempos! Apesar da fome que rapámos, do frio, de toda aquela miséria, mesmo assim sinto saudades desses anos, desses incríveis momentos que jamais voltarão, do meu pião, do meu arco, do meu carro de madeira, de todos aqueles brinquedos que eu tive.  

- A tua vida quase dava um romance!

- Dava, dava; mas logo nas primeiras páginas os leitores desistiriam de o ler – quem gosta de chorar?!  // continua...

Sem comentários:

Enviar um comentário