sexta-feira, 25 de março de 2016





O EMBARQUE

     Eram três horas da tarde. Henrique, sentado na esplanada, espera o seu grande amigo Cândido. Sabe que a história ainda está no princípio e a parte mais importante, passada em África, ainda está por contar. Quer saber tudo em pormenor.
     Os ex-combatentes não publicaram, até essa altura, absolutamente nada sobre a guerra colonial, uns por não saberem escrever, outros, quem sabe, por não quererem falar de coisas tristes, de acontecimentos que os marcaram negativamente para toda a vida. Era um privilégio ouvir da boca de um ex-soldado uma narração completa sobre essa satânica guerra que tantos mortos e feridos provocara.
     Por fim chega o nosso Cândido. O amigo, depois de o cumprimentar efusivamente, dispara à queima-roupa:

- Ainda se lembra do dia da partida?
- Recordo-me tão bem! Como se todos os cronómetros do planeta tivessem parado! Ali, naquele infausto dia, naquele local. Vinte de Janeiro de 1966. Cais do Conde de Óbidos. Manhã cedo. O barco estava à nossa espera… Chamava-se Uíge e era gigantesco, semelhante à goela de um monstro que nos queria devorar. Esperava os “mártires da pátria”.
      Eu, que odiava toda e qualquer violência, encontrava-me naquele sítio no papel de belígero para tomar parte activa na contenda! Para ir lutar contra indivíduos que defendiam a autonomia e a independência da sua nação, tal como os portugueses o fizeram no tempo de Dom Afonso Henriques, Dom João I e Dom João IV.

     Henrique, que bebia sofregamente todas as palavras do amigo, interrompe-o a fim de lhe colocar a seguinte questão:

- E no princípio do século XIX, aquando das Invasões Francesas, os portugueses não lutaram, também, pela sua independência?

     Cândido meditou um pouco sobre o assunto, não desejava dar uma resposta precipitada, a História era uma coisa muito séria, merecia todo o respeito. Por fim disse:

- Sim, é verdade. Governava então a França o célebre Napoleão Bonaparte, que andava às turras com a Inglaterra, país nosso aliado desde o tempo de Fernando I. O imperador francês deu ordens a Portugal para não permitir que os barcos ingleses entrassem em portos lusos, mas o regente (futuro D. João VI), que se encontrava no Brasil (a Corte deslocara-se para lá pouco tempo antes das invasões francesas) não acatou tal ordem. Bonaparte manda invadir por três vezes Portugal, mas com a ajuda dos ingleses lá nos livramos de tal gente.
         
     Henrique ouviu tudo com atenção, mas não concordava com uma coisa:

- Há quem afirme que a ida da Corte para o Brasil se justifica plenamente!

     Cândido, democrata por excelência, não contesta essa ideia:

- É polémica essa asserção; é certo que a rainha D. Maria I estava muito débil, já não decidia nada, e o seu filho, futuro rei, não era, segundo dizem, homem de grandes rasgos. Se têm ficado prisioneiros dos franceses não seria bom para eles, nobreza, mas para o país certamente seria melhor, pois os franceses teriam desenvolvido Portugal, ao contrário dos reis que nada fizeram. Na primeira metade do século XIX não havia indústria, nem transportes, o comércio era insignificante, o analfabetismo rondava os 90%.

     Henrique tudo escutava. Gostava de História, sobretudo a de Portugal. Para alimentar a conversa, atirou com mais uma acha para a fogueira:

- E as colónias? Tão ricas, e não produziam nada?
     Cândido, depois de ponderar a resposta, afirma categoricamente:

- Há um lapso na História de Portugal que carece de emenda: os portugueses do século XV não foram, em princípio, conquistar ou descobrir terras, pois a que tinham chegava bem para a população dessa altura, bastante reduzida, mas sim procurar, através dos oceanos, as fontes, as origens, dos artigos necessários ao consumo da nobreza e da alta burguesia, as famosas especiarias, a fim de deixarem, desse modo, de estar dependentes dos mercados venezianos e de outros, que os compravam ao oriente e os vendiam na Europa a preços exorbitantes. Além disso, iam alargando o mercado para os nossos próprios produtos.
- E dilatar a fé… acrescenta Henrique.
- A fé? Por detrás dela há sempre razões económicas, não te esqueças. O infante Dom Henrique, Dom João II, Dom Manuel I, tentaram conciliar ambas. Por outro lado, os mandões da igreja católica eram quase todos nobres, filhos do rei ou do duque, enfim, poderosos. Não te lembras que depois da morte de D. Sebastião foram buscar o cardeal para ser rei?!
- É verdade. Havia uma grande ligação entre a Igreja e o Estado. A 1.ª República acabou com essa promiscuidade, mas Salazar voltou a pôr tudo como dantes.
- Amigo Rique: quando os portugueses chegaram a África, à Ásia, à América, a todo o lado, essas regiões já estavam habitadas, salvo as ilhas de Cabo Verde que, devido às suas condições climatéricas e à sua pequena dimensão, não atraíam quem quer que fosse para aí viver: ninguém as cobiçava.

     E empolgado prossegue:

        Em quase todas as regiões contactadas pelos portugueses havia um mínimo de organização: tinham um Estado, embora rudimentar e tribal (como esquecer Gungunhana, imperador dos vátuas? Os portugueses obrigaram o desgraçado a colocar-se de joelhos e depois trouxeram-no para Portugal, tendo morrido, já no século XX, nos Açores), formavam, ou constituíam, uma nação. É certo que muitos se guerreavam entre si, alimentavam ódios milenários, mas o que se vê hoje no mundo dito civilizado?     

     Henrique estava arrebatado com a conversa. Como repto, lançou a pergunta:

- Não acha que esses povos se identificaram com os portugueses?

     Cândido parece ter ficado desarmado perante aquela pergunta. No entanto, e senhor de um pensamento consistente, respondeu:

- O que me perguntas é pertinente, mas quanto a mim esses povos aceitaram bem os lusos como comerciantes e não como dominadores. Resistiram quando os nossos quiseram ir além do que permitia a hospitalidade. Meu caro amigo: lê, se ainda não o fizeste, o maravilhoso livro de Fernão Mendes Pinto, com o título «Peregrinação». Nele se descreve, com certa minúcia, o deambular dos nossos antepassados por terras da Ásia, e como eles foram vistos por essas gentes de costumes e mentalidades tão diferentes dos nossos.  

     Henrique respirou fundo. O tema da conversa interessava-o imenso. Na escola não aprendera assim a História. Mas quem teria razão?! Faz um reparo:

- Quanto a Fernão Mendes Pinto já li alguns excertos do livro e na escola disseram-me que metade do que escreveu é mentira. No entanto, vou tentar ler a obra completa e depois já falaremos dela.
- Nem tudo que ele escreveu corresponderá à verdade; contudo, ele participou em muitas aventuras, percorreu muitas terras, conviveu com gente de outras latitudes e com culturas e religiões diferentes da sua. Mas com toda esta conversa ia-me esquecendo de te contar o que de facto aconteceu aquando do meu embarque para a Guiné-Bissau.
     Foi assim: antes do embarque, que ocorreu mais ou menos ao meio-dia, houve um grande desfile e depois disso ouviu-se um longo e fastidioso discurso, proferido por um oficial de alta patente. Duvido que os familiares dos soldados, ou os próprios, prestassem atenção àquilo (eu nem sequer sei de que falava); o que ouviam (e eu ouvi) era o bater forte de corações despedaçados; as lágrimas caindo estrepitosamente no chão; os gritos de mães, esposas, irmãos. O distinto militar não discursava para ninguém – representava o apagado papel de pobre declamador sem público!
     As senhoritas do Movimento Nacional Feminino por lá andavam, como abutres agoirando, pressagiando a desgraça, distribuindo sorrisos cínicos e de circunstância e alguns maços de tabaco aos meus parceiros de armas, cujo vício já carregavam, infelizmente, desde crianças!
     Uma banda militar tocou o hino nacional: «heróis do mar…», e o barco a afastar-se, a afastar-se… Nossos olhos, embaciados pelas lágrimas, procuravam sofregamente os rostos queridos dos familiares e amigos, das namoradas… Nunca mais voltaríamos a vê-los, pensávamos!

     Henrique estava profundamente emocionado. O que ouvia não era uma pequena história romanceada. Aquilo acontecera! Ao seu amigo e aos outros, a milhares de jovens portugueses. Após um prolongado silêncio, por fim reagiu:

- O que importa é que o Cândido voltou, e com saúde.
- Com saúde… nem por isso! Fiquei sem alguns dentes, com problemas de estômago, com… Enfim! Não vale a pena falar disso. Vou-te ler um soneto que escrevi recentemente sobre a partida, a que dei o título A Caminho da Guerra.
      
Naquele triste vinte de Janeiro,
Com correntes fortes, amordaçado,
Cabisbaixo, o peito destroçado,
Parte sofrendo o fraco guerrilheiro.

Manhã fria, manhã de nevoeiro,
Desenha a silhueta do soldado:
Estatura média, adelgaçado,
Um andar pacato, olhar ordeiro.

Sobe, a chorar, os degraus do paquete,
Do bolso das calças um branco lenço
Agita num gesto de despedida;

Com a mão esquerda brande o barrete.
Depois, já no navio, perde o senso…
E cai sobre a intermitente vida!

 

 

 






















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