domingo, 4 de outubro de 2020

                                                                       O FIM DE UM SONHO

                                                                                    (Conto)

 

// continuação...  

 

   A estrangeira chegou meia hora mais tarde do que o previsto, às dezoito horas em ponto. Aurora pediu-lhe que fizesse o favor de entrar. A brasileira não se fez rogada. Estava habituada a estes rituais, ao pavor dos clientes, quando penetrava em casa, àquele medo que jamais se extingue. Conduziu-a à sala de estar. Uma mesa, com quatro cadeiras, um sofá, e pouco mais. No meio da mesa jazia um jarro com flores naturais: rosas, orquídeas, etc. A brasileira pediu licença à dona da casa e sentou-se numa das cadeiras. O jarro das flores foi retirado, pois aquele espaço seria necessário para os fins em vista. A mulher colocou as mãos sobre a mesa, umas mãos grandes e magras, brancas como a cal, e disse à cliente:

 

- «Minha senhora, antes de mais nada vai tomar um comprimido a fim de se acalmar. Eu estou pronta para começar a sessão; não se assuste. O que vai ouvir seguidamente são vozes de outro mundo, de pessoas que já morreram, mas em princípio não fazem mal a ninguém. A senhora limita-se a fazer as perguntas e ele, ou eles, responderão. Já sei que a senhora, por causa do novo vírus, ou corona vírus, como é designado, não tem podido visitar o seu defunto marido no cemitério, limpar a campa, pôr-lhe flores, mas agora, caso o queira, vai falar com ele. A voz não será cem por cento igual, apenas semelhante, porque eu sirvo de intermediária, empresto-lhe as minhas cordas vocais, mas pode crer que se trata do seu marido. Quando a senhora quiser, diga; eu estou preparada

     D. Aurora Germana hesitou. Tremia de medo, apesar do comprimido servir para a acalmar. Se ainda tivesse ali alguém conhecido, uma pessoa da sua inteira confiança, mas não; estava ali sozinha com uma estranha, forte como um touro, embora simpática. Estaria ela a meter-se num grande sarilho, cujo resultado não se podia prever? Mas como recuar neste momento? Fora longe de mais. Nada planeara, fora tudo feito em cima do joelho; agora estava ali, indecisa, medrosa, aterrorizada. Falar com um morto? Com o seu Rodolfo? Ela, provavelmente, não aguentaria tal sensação. No entanto, decidiu-se:

- «Vamos para a frente; quero que isto termine o mais rápido possível

     A vidente arregaçou as mangas da camisola, ou blusa, passou as mãos na garganta, afinou a voz, e disse:

- «Ó vós, que estais pairando sobre oceanos e mares, sobre montanhas intransponíveis, espíritos poderosos, companheiros dos anjos, trazei até nós o marido de Aurora Germana, de seu nome Rodolfo

     A brasileira pousou sobre a mesa os seus longos braços e mãos… e esperou. Às tantas, a mesa começou a bulir, como se alguém a estivesse empurrando. Uma voz, quase sumida, vinda de um túnel ou de uma profunda mina, diz:

- «Eu sou quem invocaste. Que me queres

     Aurora, até ali calada, pergunta-lhe:

- «Rodolfo, és mesmo tu? Onde estás? Eu posso ver-te

     Comovida, as lágrimas a escorrem-lhe pela cara abaixo, aguarda a resposta às suas perguntas. A voz de outro mundo, responde:

- «Sou eu, em vida chamado Rodolfo. Eu estou em toda a parte e em nenhuma. Os vivos não me podem ver, porque habitamos espaços diferentes

     Estava terminada a sessão. A médium estava exausta. Esta atividade dava cabo dela, mas o dinheiro que recebia era compensador. Aurora chorava. A voz do defunto era de facto parecida, mas não aquela voz que ela adorava ouvir. Quando sonhava com ele, e isso acontecia amiúde, ouvia a sua voz, a genuína, aquela de antigamente, antes de ele ficar doente. Esta, vinda não se sabe de onde, podia ser uma reles imitação. Talvez não contratasse mais a brasileira. Quem sabe se ela não seria uma atriz de segunda categoria, extorquindo dinheiro aos ingénuos clientes? Vozes de outro mundo!                      

    A brasileira abriu os olhos, levantou-se da cadeira, e disse à dona da casa:

- «A senhora hoje teve sorte; nem sempre isto corre tão bem. Por vezes os espíritos zangam-se, e quando isso acontece vai tudo pelos ares: mesa, cadeiras, tudo

     Aurora, agora um bocadinho mais calma, reage a essa notícia.

- «Eu sou católica, nasci nesta religião, cresci acreditando em Jesus Cristo, em seu divino pai e no espírito santo, na sua santa mãe, Maria. Confesso-me regularmente ao senhor abade, rezo todas as noites ao senhor, pratico todos os atos da igreja. O que eu fiz hoje nada tem a ver com a minha religião. Quis apenas verificar, por mim própria, se era possível falar com os mortos. Pelos vistos, é. No entanto, restará sempre a dúvida. A senhora diz que eles pairam sobre oceanos, etc. Como é que a senhora sabe? Esteve lá para ver? São os mortos que o afirmam

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     A brasileira reage:

- Minha cara senhora: eu respondo às suas perguntas, mas quanto às dúvidas permanecerão na sua mente para sempre. O criador do universo, da vida, de tudo que se vê e não vê, incluindo os seres humanos, já existe desde tempos imemoriais. Ninguém, cientistas ou não, pode determinar a sua idade, a sua forma, o seu quotidiano. Antes da nossa espécie, ser algum questionava a sua existência, o seu domínio absoluto sobre as coisas. O homem, cuja criação é recente, cerca de três milhões de anos, foi evoluindo, desenvolvendo o seu cérebro, foi olhando para o céu, interrogando as estrelas, afastando-se cada vez mais das outras espécies, domando algumas delas, descobrindo alguns segredos da natureza, julgando-se um pequeno deus, pondo em causa a sofisticada máquina universal. Através da investigação foi descobrindo remédios para curar certas doenças; inventou barcos para navegar sobre as águas profundas; inventou aparelhos para voar como as aves; e agora tenta deslocar-se até aos longínquos planetas, assumindo-se como o senhor do universo. O supremo Deus, criador do céu e da terra, não permitirá tal coisa. Castigará severamente quem ouse enfrentá-lo; a sua capacidade de destruir é tão grande como a de construir. E como é que eu sei estas coisas? Há seres que foram dotados pelo Senhor para o servir, para serem seus mensageiros, seus porta-vozes. Nós conseguimos ver através do vácuo; os nossos olhos veem mesmo no escuro e as distâncias incalculáveis; os nossos ouvidos ouvem praticamente tudo. Fomos dotados pelo Mestre para ajudar quem precisa, apesar do ser humano ter alguma liberdade de ação, vulgarmente conhecida por livre arbítrio. Deus dá a saúde, mas também a doença, para que os humanos saibam que a liberdade, o bem-estar, o sofrimento, fazem parte de uma vida, que de uma maneira geral é curta, somente Deus é eterno. Criaram-se as religiões a fim de minimizar os efeitos do sofrimento; a submissão dos humanos conta imenso para o Senhor. O homem arrogante torna-se perigoso aos olhos do omnipotente. Esses seres arrogantes, graças às suas fortunas, que cresceram à custa do pobre trabalhador, julgam-se importantes, capazes de enfrentar a força divina. Por isso o grande Deus manda para este planeta pequeninos seres, por exemplo vírus, a fim de mostrarem a esses senhores arrogantes, que são frágeis, incapazes de sobreviverem a um bichinho tão minúsculo, que só por meio de grandes lentes se conseguem ver. A força de Deus, o seu poder ilimitado, não concede benesses a quem não as merece, a quem não crê na sua grandiosidade. A senhora é católica, acredita em Jesus, cumpre todos os preceitos, as regras, leis emanadas do Vaticano, mas isso por si só não chega. Submeta-se ao Senhor, à sua Vontade, siga as suas instruções, e o seu espírito ficará sossegado. Existem transformações, ao longo da vida e depois da morte física; ninguém o pode negar. As estrelas, com o tempo, extinguem-se; outras nascem para iluminarem os planetas, os quais não têm luz própria. Está tudo otimamente organizado, tudo perfeito. E isto é obra de Deus                

     Aurora ofereceu algum dinheiro à cidadã brasileira e ambas se despediram. A brasileira diz-lhe:

- «Agradeço a sua oferta, a sua generosidade. Se precisar de mim, sabe onde me encontrar. Estarei sempre às suas ordens // continua...

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