quarta-feira, 21 de novembro de 2018

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

                                                                  Por Joaquim A. Rocha





NO SÉCULO XIX

 

     Em 1881 tinha o meu avô materno, Belchior Herculano da Rocha, apenas quatro anos de idade e reinava em Portugal, já havia vinte anos, Luís I; a minha avó Libânia já tinha onze anos e estaria provavelmente a admirar o esboço do portão que seu pai, João António Alves, serralheiro, estava a gizar para o cemitério que se começava a levantar, portão esse que ainda hoje lá se pode ver. Portugal tinha então quatro milhões de habitantes, e Melgaço teria uns quinze ou dezasseis mil. Há muito que o comboio transportava pessoas e mercadorias por esse país fora, mas a nossa terra permanecia esquecida e desprezada pelo poder central. À estrada Monção-Melgaço, que começara a ser construída em 1870, ainda faltavam cerca de doze quilómetros para a sua conclusão. Um cavalheiro de Monção, cujo nome ignoro, por lá passou nesse longínquo ano e escreveu para o redator de «O Valenciano»: «Chegado de Melgaço, vou dar-lhe notícias daquela vila que parece separada completamente do país e como esquecida. Não faltaram ali sustos alaridos motivados pelo violento temporal do dia 27 do mês findo (27/1/1881), das 8 para as 9 da manhã daquele dia. O vento fortíssimo que então soprava levantou telhados, claraboias, chaminés, quebrando árvores e arrancando outras; foi pequena a sua duração, de contrário deixaria muitas casas apenas com as paredes. Em uma janela da casa onde se acha a repartição telégrafo-postal daquela vila, quebrou vidros e caixilhos, sendo para lamentar que ainda esteja sem eles e assim continue se o digno director da estação não pedir providências porque, segundo dizem, o dono do prédio esmera-se tanto com as casas que tem alugadas como se esmera com a sua; é como aqueles que estragam na farinha e poupam no farelo. O tempo de rigoroso inverno que ali tem havido, muito tem prejudicado os povos daquele concelho, que estará dentro em pouco a braços com a miséria se mão divina não melhorar o tempo e mão humana não puser termo aos actos de perfeita insensatez praticados pela municipalidade daquele concelho, que secunda a intempérie do tempo com a rigorosa inflexibilidade com que lhe exige o que ao tempo consegue escapar. A Câmara Municipal, para que os habitantes daquele pobríssimo concelho, onde só prospera a calúnia, a vingança e a miséria, não sintam tanto os males que a maior parte deles sofreram, exige-lhes mais de quatro contos de réis, derrama de cinquenta por cento! A medida não é má e pouco incomodativa. A criação de uma barca de passagem no rio Minho, em frente à estação do caminho-de-ferro (Arbo, Galiza), disso não trata, porque dá trabalho, e o rendimento da exploração é mais sólido e não fere os interesses dos compadres. Todos os meios indirectos de aumentar a receita são postos de parte para só os conseguir directamente, da algibeira dos contribuintes, que não podem, se não mal, adquirir meios de subsistência. Em outros concelhos recorre-se sempre, em último caso, àquele extremo e isto é não só conforme com a justiça como com a lei. Mas a lei suprema daquela corporação é o querer e poder; aquele meio directo, é o mais produtivo e o menos incomodativo. Pague o povo e não bufe! Não tenha estradas, nem melhoramentos, nem regalias algumas das que são concedidas aos outros povos, mas pague, como eles ou mais do que eles! Melgaço, na escala das povoações, é sem dúvida a última; conhece a civilização por ouvir falar nela; sabe que há estradas, caminhos-de-ferro, todos os elementos de prosperidade, enfim, porque o ouve dizer. Quanto a possuir, nem um desses elementos: ignorante e apática, os seus deputados, em vez de a ligarem com o resto do país pela civilização e pelo progresso, ligam-na pelo sofrimento e pelos sacrifícios!»

     Em 1881 o presidente da Câmara Municipal era nada mais, nada menos, do que José Cândido Gomes de Abreu, nascido na vila melgacense em 1825. Acerca dele alguém escreveu no Jornal de Melgaço, em 1908: «trabalhador infatigável, pôde criar em Melgaço uma casa comercial de primeira ordem, onde consumiu a sua actividade, dando-lhe um nome honesto. Cidadão prestimoso, sabendo zelar os interesses do município e à sua frente, como vereador, devem-se-lhe o que de útil possuímos em melhoramentos locais, não havendo quem até hoje o pudesse igualar, imitar sequer                

     E muito mais se disse no «Jornal de Melgaço» n.º 765, de 24/12/1908, oito dias depois da sua morte. Até «pai dos pobres» lhe chamaram! Seja isso verdade, ou não, o que ninguém pode negar é que foi graças a ele, ao seu esforço e entusiasmo, que se ficou a dever a construção do hospital na vila, em nossos dias uma ruína. Hospital esse de onde eu fugi quando tinha à volta de seis anos de idade; não gostava da comida, daqueles caldos de galinha sem sal, nem daquele cheiro a medicamentos, por isso saltei o portão de ferro, com aquelas setas apontadas ao céu, correndo o risco de me espetarem a barriga!

     O seu funeral revestiu-se de um aparato nunca visto: «Pelas dez horas da manhã celebrou-se o ofício e missa de requiem». A música ficou a cargo da «orchestra de Monsão com a assistência de trinta e dois eclesiásticos». Velando o cadáver esteve a fina flor da sociedade melgacense. No seu testamento contemplou muita gente: aos pobres da vila mandava distribuir 25$000 réis; ao hospital, em inscrições de assentamento de 3%, o valor nominal de 3.000$000 réis e ainda 49 obrigações da Companhia das Águas de Lisboa e 18 ações do Banco Comercial do Porto, e 300$000 réis em moeda corrente, para capitalizar para fundos e rendimentos do mesmo hospital. Deixou aos seus parentes joias e propriedades; com ele nada levou, à exceção da roupa do corpo e da cerimoniosa capa da Santa Casa da Misericórdia.

     Acerca deste senhor encontrei uma notícia de 1896, que passo a transcrever: «A José Cândido Gomes de Abreu foi roubada na estação de Nine, quando se dirigia para Braga, no dia 9 (Outubro), uma carteira com 115$000 réis e vários documentos». Os carteiristas acharam-no com aspeto de rico e pensaram certamente que mais cem ou menos cem não lhe fariam muita falta! Para se ter uma ideia do que representava esse dinheiro, dir-vos-ei que um presbítero foi nesse ano aposentado com a pensão anual de 401$370 réis, ou seja, 33$447 réis por mês! Nesse ano as lampreias do rio Minho foram vendidas a 1$500 réis cada uma, e o litro do vinho verde rondaria os 50 réis!

     Era assim no século dezanove: meia dúzia de indivíduos viviam à grande e à francesa, e o resto da população trabalhava de sol a sol para se alimentar, mal, a si e aos seus.             

 

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1056, de 1/8/1996.

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