segunda-feira, 30 de abril de 2018

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha




... continuação...

- O meu amigo Cândido perde-se em considerações, desliza pelo tempo e pelo espaço… Eu gostaria de saber como as coisas lhe correram.

- Desculpa. As palavras são como as cerejas: vêm em cachos! Pois bem: partimos então para o patrulhamento. Andámos, andámos, sob sol, sob calor abrasador. A água do cantil depressa se esgotou, apesar do super controlo que exercíamos sobre ela. Os lábios começavam a ficar gretados. As águas dos pântanos, dos lagos nascidos das chuvas, não serviam para beber. Mesmo assim, o enfermeiro dizia-nos que enchêssemos os cantis, pois misturaria na água um comprimido que já trazia consigo para esse efeito. Não sei que raio tinha a pastilha, só sei que de imediato tornava claro aquele líquido sujo e nojento! Contudo, a água ficava com um sabor esquisito.

- Era tudo contrariedades!

- É verdade. Estávamos a chegar ao nosso destino. De súbito, o capitão mandou-nos parar: «As armas em posição de fogo; bazucas aqui para a frente; a dois passos de nós há uma tabanca que tem dado abrigo e alimento aos turras; vamos destruí-la completamente. Os tipos podem oferecer resistência; cada pelotão vai tentando rodeá-la; quando eu disser, começam a disparar.»

     Saímos da floresta e entrámos numa clareira. O capim rivalizava connosco em tamanho. O calor da tarde tornava-se insuportável. Não me lembro bem em que mês do ano se estava – talvez Junho – mas isso também não era importante, pois na Guiné há temperaturas elevadas durante todo o ano.

     Aproximámo-nos do local o mais possível. Da tabanca chegavam, imperceptíveis, os murmúrios de algumas vozes masculinas e femininas. “Estranhas vozes e estranha gente”, disse para com os meus botões.

     Chegado a este ponto, meu caro amigo Rique, apetece-me sonhar. Imaginar-me em Melgaço, ouvir as vozes amigas dos meus conterrâneos, convidando-me: «Vem beber uma malga de vinho da última colheita e comer um pedaço de pão com presunto – este é do especial.»

- Fantasias! Saudades! A vontade de rever a sua família, a sua casa, o rio Minho. Tudo! – atalha o rapaz, na esperança de apaziguar o ânimo exaltado do amigo.






- Talvez! O primeiro tiro: pum! A seguir as bazucadas, com o seu som aterrorizador – armas e pessoal em movimento acelerado. As labaredas irrompem tenebrosas e belas, os gritos lancinantes destroçavam o coração do mais empedernido.


    As cubatas, feitas de barro amassado e cobertas de capim, não resistiram às granadas das bazucas e às chamas: uma a uma, foram tombando como tordos sob o fogo do exímio caçador.

     Os moradores, com os seus parcos haveres, fugiam o mais rapidamente possível em direção à mata cerrada, que distava dali uns bons cem metros.

     Avançámos mais. Contra nós, pelo menos fiquei com essa impressão, ninguém disparou! Dentro das habitações, das poucas que restaram, não se vislumbrava vivalma. «Ainda bem» - congratulei-me, aliviado. Esperava ardentemente, juro-te, que não se encontrassem corpos carbonizados, esturricados: seria um horror para mim.

- Foi uma razia! – indaga Henrique, numa tentativa de adivinhar o que se passou.                

- Podes crer! E quando já se pensava estar tudo resolvido, tudo acabado, eis que surge uma velha mulher, alta, esguia, de um negro muito negro, quase nua, gritando como uma louca. Na cabeça, oval, sustentava uma cabaça e na mão direita tinha um objeto de barro. Barafustava, gesticulava, e ninguém – nem mesmo os nossos guias – compreendiam essa língua tão exótica! A mulher pousou as coisas no solo e com os olhos vermelhos de raiva e com gestos de fera ferida pronunciava frases terríveis contra nós, mesmo sem as entendermos! Então, um dos alferes da Companhia, não me recordo qual deles, agarrou-lhe no braço direito e disse-lhe, num tom de voz seco, que não admitia réplica, acompanhando as palavras com olhares convincentes: «Vai-te embora! Ninguém aqui te quer fazer mal. E parte enquanto é tempo. Quando nós estivermos longe, tu voltas para reconstruir a tua palhota.»

- E ela… – foi-se embora?!

- A velha, mistura de leão e tigre, assanhada, sem ter percebido uma única palavra do que ouvira, liberta-se do roubador de liberdades e vidas, do incendiador cruel, e tenta vingar a afronta, atirando-se com desespero ao oficial. Este, colhido de surpresa, não esperando o forte impacto, cai. Um furriel, vendo que a situação teria de ter um fim rápido e eficaz, um desfecho digno de um exército dominador, agarra a irreverente mulher e atira-a com ímpeto a metros de distância. Sem sequer lhe dar tempo de se erguer, sobre aquele corpo indefeso e antigo, numa fúria jamais vista, olhos fora das órbitas, qual exterminador bíblico, deus sanguinário destruindo Sodoma e Gomorra, imaginando-se numa guerra entre dois mundos, descarrega todo o arsenal da sua G-3. Quase duas dezenas de balas puseram fim a um espírito livre e selvagem.

- Inqualificável! Matar uma mulher indefesa! Isso não se faz! Nada o justifica! – diz Henrique, com alguma tristeza.

- Para mim, aquela valente não morreu em vão. Pode ter sido loucura ou ingenuidade, um acto irreflectido; pode ter sido também acto assumido, um sacrifício ao deus da honra e da liberdade. Sinceramente não sei.

- Você ficou chocado. E que fizeram ao corpo – enterraram-no? – pergunta o jovem, na esperança vã de obter uma resposta positiva.

- Não! Quem iria perder tempo com isso? Seria devorado por animais, por aves de rapina, por abutres. Esta cena, que para os meus companheiros não teve um significado especial, fazendo parte da rotina da guerra, comoveu-me até às lágrimas, feriu a minha sensibilidade e marcou profundamente o meu carácter; a partir daí, posso afirmá-lo, houve de facto uma alteração no rumo da minha vida. Aquela imagem esquelética, aqueles olhos de trovão, os seus gestos de guerreira, gravaram-se para sempre no meu cérebro, no meu espírito, no subsolo da minha alma. Às vezes vale a pena morrer!

- Depois desse acontecimento pavoroso, retiraram?

- Sim. Já não estávamos ali a fazer nada. O capitão mandou retirar imediatamente. A morte da heroína, o calor intenso, a falta de água, estavam a produzir em mim o seu efeito nefasto e demolidor. Comecei a sentir algo estranho, a ter visões. Uma nuvem pairava sobre a minha cabeça e libertava uma chuva miudinha que os meus ressequidos lábios saboreavam com prazer. Que rica água: fresca e pura como a das nascentes; saborosa como uma limonada em pleno verão. Porém, uma cotovelada viril veio interromper esta visão irreal e maravilhosa. O meu camarada de especialidade, o Beja, diz-me: «Eh, pá! Estás branco como a cal. Que se passa? Aguenta, que agora já estamos de volta.»

     Aos vinte e um, vinte e dois anos de idade, os milagres de resistência acontecem. Soube, a partir desse inesquecível dia, que o ser humano é mais rijo do que aparenta. Se me tivessem contado todas estas peripécias, sem eu as ter amargamente vivido, dificilmente nelas acreditaria: dias sem ingerir qualquer alimento, sem descansar, sem beber, calcorreando matas e pantanais, trilhos e mais trilhos tenebrosos, sob um sol escaldante, enfrentando perigos visíveis e ocultos, eram razão mais do que suficiente para derrubar ciclopes homéricos ou Aquiles de frágil calcanhar. E nós, rapazes portugueses deficientemente treinados e pessimamente alimentados ali estávamos, como olímpicos imortais!

- Parece tudo um sonho; estou abismado com tanta resistência – confessa Henrique.

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