quarta-feira, 18 de abril de 2018

LEMBRANÇAS AMARGAS
 
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha






XXII

Enquanto a chuva cai, o carrasco aguarda, impaciente, o condenado.

      Como repararam, o tal Guilherme era um vadiote e assim eu vi-me forçado a escolher outra atividade. Neste momento vamos os dois, eu e a minha mãe, a caminho da oficina do senhor Hilário, pedir-lhe que me aceite como aprendiz.

- Hilário, o meu Cândido pode ficar aqui a trabalhar contigo, ensinas-lhe a arte?

- E tenda?

- Isso acabou; quem sabe daquilo é o tio Acúrsio, já não vivo com ele, como sabes. Eu nunca entendi nada de negócios, cada qual nasce para o que nasce, eu não nasci para tendeira. 

- Então ele pode ficar a trabalhar comigo, mas não lhe posso pagar nada, quando souber alguma coisa da arte logo se vê.

- Só te peço é que o deixes ir engraxar aos dias de feira para ganhar algum dinheiro.

- Está bem, até pode levar daqui essa caixa, enquanto não manda fazer uma, é raro servir-me dela, e na primeira semana dou-lhe a pomada e a tinta e empresto-lhe as escovas; até lá, vai treinando.

- Obrigada; que Deus te pague. E tu já sabes: ficas aqui com o senhor Hilário, obedeces às suas ordens, e não lhe faltes ao respeito; fazes tudo o que ele mandar. 

- Está bem, mamã; até logo.

*

- Chega aqui, rapaz; senta-te ali naquele banquinho. Tens de estar na oficina às oito da manhã, largamos ao meio-dia e depois voltamos a pegar ao trabalho às duas da tarde até às oito da noite. Se te portares bem não perderás nada comigo. Agora vais endireitar essas tachas, cuidado com os dedos, agarras aí no seixo e no martelo e com jeitinho vais endireitando, olha como eu faço, vês, não custa nada.

- Já dei cabo dum dedo!

- Ah! Ah! É assim que se começa, agora vais ter mais cuidado.
 
                                       *

- Tens catorze anos de idade, estás a trabalhar comigo há dois anos, não te dei nada até agora, a não ser esses sapatos que já não me serviam, malditos calos, estão-te grandes, mas que se pode fazer, tens os pés pequenos, sais à tua mãe. Bem, acho que chegou a hora de te dar qualquer coisa, tu merece-lo, vou começar a pagar-te 2$50 por dia, não é muito, mas é melhor do que nada, eu estive quase três anos como aprendiz sem receber um centavo, é certo que me davam de comer e me deixavam dormir no palheiro, mas isso era porque estava longe de casa.

- Obrigado, senhor Hilário, já ajuda, sabe que a minha mãe, coitada, anda sempre na aldeia, lá vai trazendo o que lhe dão.

- A tua mãe se tivesse juízo ganhava bem, é uma boa cozinheira, a melhor do concelho, faz um arroz de lampreia e um cabrito no forno que é de se lhe tirar o chapéu, é comer e chorar por mais, um cozido à portuguesa como nunca comi igual, mas a pinga dá cabo dela, o maldito vício, eu também lhe bebo, mas só nos fins-de-semana, sobretudo ao domingo de tarde, ai não, nos outros dias tenho de governar a barca, que ninguém dá nada sem trabalhar, mas a tua mãe é parecida com a minha, umas desgraçadas, um homem faz muita falta numa casa, não casaram e acabaram assim, que o vinho não tem espinhas, escorrega pela goela baixo que é uma maravilha, um mimo, tem de se lhe pôr travão, mas elas não são capazes.

- Sabe que às vezes nem ceio, tenho de ir esperá-la, nem sequer sei por onde vem, quando a encontro vem a cair, ralho-lhe, mas ela nem me ouve, se eu tivesse pai seria diferente, mas não tenho.

- Eu também não tive, a minha mãe dizia que eu sou filho de um tal doutor António, nessa altura era criada dele, aproveitou-se, o vilão; eu nunca o vi, nem sei se era gordo ou magro, mas olha, vamos ganhando para a bucha, não preciso do filho da mãe para nada, se agora aparecesse nem lhe falava, bandido.

- Por que é que os homens fazem os filhos nas mulheres e depois não casam com elas?

- Por vaidade, bazófia, para dizerem aos outros que são machos, eu também fiz uma filha à Cremilda e não casei com ela, mas olha que a culpa não foi minha, foram os pais dela que se opuseram, disseram que eu era muito pobre, e insultaram a minha mãe, muita tareia dos pais a rapariga levou por minha causa, uma vez iam-na matando, eu afastei-me para não haver mais chatices, ainda hoje gosto dela, e a filha é minha, olha que é muito bonita.

- E parece-se com a sua mãe, é a cara dela.

- Aí tens razão, é a cara chapada da minha velhota. O que me custa mais, até tenho remorsos, é saber que ela ficou aleijada por causa do parto, não correu nada bem, a criança estava numa posição esquisita, a parteira viu-se grega para a tirar cá para fora.

*

- Senhor Hilário, há três anos que trabalho consigo, tenho quinze anos, acho que já é altura de ganhar mais do que 2$50 por dia, o senhor Cerdeira encontrou-me e disse-me que se eu quisesse ser empregado dele que me dava 5$00, eu respondi que primeiro teria de falar com o meu patrão.

- Eu não te posso dar esse dinheiro, se ele to dá é lá com ele, é rico, dar a um aprendiz 5$00, onde já se viu, tu se quiseres ir vai, és livre, não mando em ti, ensinei-te o melhor que pude e soube, tu até tens jeito para a profissão, mas essa quantia não te dou. Quando começas a trabalhar com ele?

- Se o senhor Hilário não se importasse começava já no princípio da semana que vem. E desculpe.

- Primeiro acaba esse serviço que tens aí; põe os saltos nesses sapatos de senhora. Vai-me custar, já estava habituado contigo e ainda somos parentes afastados.

- Depressa arranja outro, não falta quem queira aprender a arte.

- Não é bem assim, agora os pais vão para França e já todos pensam que são lordes, mas vem para cá o Crispim, a mãe já outro dia me falou, morreu-lhe o pai há pouco tempo, a mãe está a servir na casa do senhor Octávio; coitada, ficou viúva muito nova, o que vale é que só tem aquele filho, mas ele parece que não gosta muito de vergar a mola, só porque o padrinho é comerciante…

- Ouvi dizer que é doente, por isso é que não aprendeu uma profissão até agora.

- Para trabalhar são todos doentes, mas para gozar a vida e encher a pança estão saudáveis, olha que ele não tem cara de doente.  

- Esperemos que se adapte; é importante na vida ter-se uma profissão, mesmo que não dê para enriquecer.

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