quinta-feira, 17 de agosto de 2017

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
 
Por Joaquim A. Rocha



caixa de Pandora


XVI

No vício chafurdam alma e corpo


     Se eu tivesse um caráter violento poderia, perante uma situação destas, tomar uma atitude agressiva. Mas não, lamento-me, desfaço-me em lágrimas, imploro, interrogo-me: porquê este sofrimento?! Já sei que muitos leitores opinarão que eu deveria ter deixado há muito a casa da minha mãe, ir para a cidade, para o estrangeiro, sei lá. Eu tentei emigrar, mas não consegui o dinheiro necessário, dez contos de réis, quantia astronómica para o meu magro bolso; dentro de pouco tempo irei para a tropa, lá abrirei os olhos, pelo menos assim o espero. Bem, mas isso é outra história. Ouçam esta conversa e tirem dela as ilações convenientes:

- Vem da aldeia a esta hora? E bêbeda como um cacho! Que lástima! A cambalear como um borracho! Qualquer dia fica pelo caminho, atolada em algum barranco, sem que ninguém saiba onde se encontra para a socorrer, maldita vida esta, que mal eu fiz para ter uma mãe assim, valia mais não ter nascido, ou então ter morrido quando vim a este mundo, não sofria tanto, pode crer, não passaria por tantas vergonhas, tantos vexames, para que quero eu esse vinho, esses chouriços, não quero nada disso, vai tudo para a retrete, para o entulho, para o lixo, eu não quero nada disso, borrachona, borrachona é o que você é, tanto lhe tenho pedido, deixe as aldeias, fique em casa, faça-me o comer, trate-me da roupa, eu ganho para os dois, não precisa de nada, dessas coisas, de levar essa vida desleixada, mata-me de vergonha, já não vou aos bailes, ao cinema só vou à noite, escondo-me, tenho vergonha, as raparigas não me querem, nem em mim reparam.

- Olha que a neta da Cidália, a Bera, bem te quer, canté, o meu filho, sou bêbada, isso sim, mas não sou ladra, canté, se eu lhe dava o meu filho, canté, tens vergonha da tua mãe, olha que as outras bebem-lhe bem, mas metem-se em casa, os coirões, passam por senhoras, as putonas, que eu bem sei quem elas são, canté, se sei, badalhocas, metem-nos em casa às escondidas, são dois garrafões todos os dias, até acordam para beber, e eu é que sou a borracha, coirões, sem vergonha, que me chamem a mim bêbada, eu é que sei, depois passam por senhoras, porcas, bebem mais do que eu, sou borracha mas sou livre, não ponho os cornos ao meu marido, esses coirões, metem-nos em casa, um há dias até pela capoeira entrou, e os cornudos não sabem, eu é que lhas canto… A Georgina, quando tinha a pensão, até a filha Eulália vendeu a um caixeiro-viajante, vê lá tu, uma rapariga com apenas quinze anos de idade, meteu-a na cama com ele, um homem casado, depois ele foi obrigado a dar aos pais dela vinte contos de réis, nesse tempo era uma pequena fortuna. Que gente! Gastaram-no depressa, só luxos, e eu é que sou isto e aquilo, eu nunca faria uma coisa dessas, minha rica filha.

- Só sabe dizer mal das outras mulheres, se cuidasse da sua vida, se tivesse juízo, tino, se respeitasse os seus filhos e a sociedade, mas não, cada dia que passa se abandalha mais, afocinha na lama até não mais se poder levantar, só vive para a vinhaça, eu não sei se vou aguentar esta vida por muito mais tempo, são quase dez horas da noite, ainda não ceei, vou para a cama sem comer, fartinho de trabalhar, das oito da manhã às oito da noite, jantei à pressa, tenho tanto calçado para entregar, não sei o que vou fazer à minha vida, apetecia-me fugir daqui, deixá-la entregue ao seu destino, já sei que passado algum tempo davam-me a notícia da sua morte, é uma desgraçada e faz-me a mim desgraçado, os meus irmãos foram-se embora, eu é que tenho de aguentar este maldito viver, este martírio, este suplício sem fim.

- Borrachas, canté, queriam o meu Candinho, eu dou-lhes o arroz, uma até quer que a tratem por dona, canté, dona do que é dela, borracha, mas não sai à rua, emborracha-se em casa, eu conheço-a bem, querem passar por gente fina, nasceram tão pobres como eu.

*

- Já se sente melhor?

- Ontem foi de mais, que carraspana, foi na casa da Adosinda, estive a ajudá-la a preparar o fumeiro e depois pôs-me vinho à vontade, estava cheia de sede, comer não comi quase nada. Eu sei que podia beber água, mas não gosto, faz-me criar rãs no estômago.

- Então ouça com atenção: peço-lhe pela alma dos seus pais e dos seus irmãos, pelo que tiver de mais sagrado, que não volte às aldeias, eu já ganho umas moedas, as engraxadelas também vão dando uns patacos, as coisas estão a correr bem, esfalfo-me, é certo, mas vale a pena, prometa-me que não vai mais para as aldeias.

- Não posso dizer se serei capaz de lá não ir, são muitos anos, conheço aquela gente toda, precisam de mim para lhes cozinhar, para as vindimas, para as esfolhadas, para preparar o fumeiro, para tudo, eu sou assim, tenho pena daquela gente, se eu não for vêm-me buscar, olha se eu não aparecesse, amanhã já mandavam recado, eu vou ver se lá vou menos vezes, se não bebo tanto, não sei se me controlarei, tu daqui a três anos assentas praça, depois casas-te, a tua mulher já te fará o comer, agora eu sempre aqui fechada, sentia-me prisioneira, infeliz, sei que tens vergonha de mim, mas isto é superior às minhas forças, é o meu destino, cada qual tem o seu, e não o podemos mudar.

- Como é que me vou casar se fujo das raparigas, fiz dezassete anos de idade, sou um homenzinho, tenho vergonha, não quero que elas se riam na minha cara, ainda há dias uma se riu às gargalhadas quando você caiu ali na rua; não repara no pai dela, que é um borracho igual ou pior do que você, basta beber um copo de vinho e já fica bêbado, já não deve ter fígado, há quem diga que tem uma cirrose, anda sempre a cair de bêbado, qualquer dia fica estendido no caminho, mas a filha riu-se à gargalhada, senti imensa vergonha e raiva. É verdade que a Bera gosta de mim, eu também simpatizo com ela, mas só tem catorze anos de idade, é uma menina, você tem de se emendar, não pode continuar assim, que raio, faça isso por si e pelos seus filhos, pela família; os meus irmãos nem vêm passar aqui as férias, coitados, da última vez que cá vieram ficou-lhes de emenda, juraram para nunca mais, ficaram com a alma penalizada. Eu que aguente, sou o mais novo, mas não sou nenhum mártir para sofrer tanto, você tem de mudar os seus hábitos.

- «Burro velho não aprende línguas nem tem emenda.» Não é com esta idade que vou alterar a minha maneira de viver, posso tentar, mas acabarei sempre por cair no mesmo, a tentação é demasiado grande.         

- Disseram-me que há um medicamento na farmácia que acaba com esse vício, se quiser vou comprá-lo.

- Remédios da botica! Toma-os tu. Ainda me matavam, canté, medicamentos nem morta, nunca os tomei, não sou doente, o que tu queres é ver-me defunta.

- Que vantagens, diga-me, teria eu, seu filho, com a sua morte?!

- Vias-te livre de mim, da peçonha…

// continua...

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