quinta-feira, 24 de novembro de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance) 
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
 
 
XI
 

As formigas também descansam

 

     Voltemos atrás no tempo; as verduras da idade ainda vestiam o meu cérebro, a realidade e a ficção ainda não tinham fronteiras nítidas. Como tinha ouvido dizer que era costume antigo os sapateiros não trabalharem às segundas-feiras, eis-me a fechar a porta da loja e a ir banhar-me para o rio Minho. Porém, o meu patrão, que para fugir ao calor excessivo que se fazia sentir também ele fora dar um mergulho nas águas límpidas do rio, não gostou nada que eu por lá aparecesse. Venham vocês também tomar um refrescante banho:

 
- Eu não te disse para ficares no estaminé?

- Mas senhor Hilário, você também veio, ontem engraxei sapatos até às três horas da tarde, estou cansado, hoje é segunda, às segundas os sapateiros não costumam trabalhar, você deixou-me lá sozinho, com este calor, e eu vim tomar banho ao rio, eu nem sabia que você estava aqui, se soubesse não tinha vindo, juro-lhe.

- Então toma um banho rápido e vai abrir a oficina, não quero a porta fechada, podem aparecer clientes e depois veem tudo fechado, recebe o calçado que entregarem, que digam para que é, tomas nota num papelinho, eu já vou para cima, não demoro muito, isso de fechar as sapatarias às segundas é com os antigos, eu preciso de ganhar dinheiro, não sou rico, aproveitar é enquanto somos novos, não é com vadiagem e calaceirice que se ganha pilim, eu comecei a trabalhar com dez anos, nem a quarta classe completei, só fiz a terceira, estudar era para os meninos, vós agora sois uns fidalgos, vê lá tu, não trabalhar à segunda, eu trabalhei toda a vida, sábados e domingos, que isto de não trabalhar é para milionários, que até esses trabalham, às vezes mais do que nós, por isso é que eles têm rios de dinheiro, olha o senhor Atílio se não trabalha: às seis da manhã lá vai para o Porto buscar contrabando, é assim que ele se enche, que nós por muito que trabalhemos nunca juntamos nada de nosso, vai-te embora, já te refrescaste.

- E se alguém quiser levar calçado, eu não sei o preço do conserto, não mexo em dinheiro, o que devo fazer?

- Não entregues calçado a ninguém, dizes-lhes que esperem, eu não me demoro, se tiverem pressa que voltem, fiado nem pensar, depois esquecem-se, já tenho alguns calotes, eu não ando a trabalhar de graça, que a sola também a pago, ninguém me dá nada, era o que faltava, que paguem, tu não entregas calçado a ninguém.

- Há um bocado entreguei uns sapatos, vieram para botar meias solas, ao senhor Norberto da Portela, insistiu tanto, disse que precisava deles, que se você lá estivesse também lhos entregava, que confiasse nele, que no dia de feira vinha à Vila e já lhe pagava, eu não pude fazer nada, tive de lhe entregar os sapatos, se não lhos entregasse até me comia vivo!

- Não devias ter feito isso, ai o filho da mãe, nunca mais me paga, agora vais lá e pedes-lhe o dinheirinho, se não to der trazes os sapatos de volta, são trinta escudos, não te esqueças, trinta escudos, vai a correr, tens boas pernas; ai o caloteiro, valeu-se de tu estares sozinho, se eu estivesse lá não os levava, não, que eu não ando a trabalhar para os outros, eu na minha oficina não fio, quem fia é a roca, olha eu a fiar, tenho de pagar a renda, ninguém ma paga, e tenho de comer, ninguém me dá nada, e vestir-me e calçar-me, tudo, eles querem é ver um homem a pedir, vai num pé e vem noutro, ai de ti se não me trazes o dinheiro ou os sapatos.

- É longe!

- Quero lá saber se é longe ou perto, desaparece daqui, mexe-te.        

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