domingo, 9 de outubro de 2016

LINA - Filha de Pã
 
romance
 
Por Joaquim A. Rocha

 
 
verdadeira camuflagem
 
 
 
6.º Capítulo

 

     Lina estava agora quase com trinta anos de idade. A filha já era uma rapariguinha, mas ela poucas vezes a via. Estava com a avó e os tios, no meio rural. À medida que crescia, o seu corpo ficava mais bonito, via-se que era uma menina fina, descendente de gente afidalgada. Os seus cabelos aloirados davam ao rosto uma luminosidade fantástica, e aqueles olhos azuis, de um azul brilhante, tornavam-na quase divina, uma deusa do Olimpo. Um poeta da região, que publicava os seus poemas num dos jornais locais, chamava-lhe «a ninfa do rio Minho!» Para o vate, ela era idêntica às ninfas do Tejo, cantadas um dia pelo inesquecível Camões e outros poetas maiores.  

     Lina sentia orgulho em ser mãe daquela jovem, mas a sua liberdade, ou melhor, libertinagem, estava acima de qualquer sentimentalismo. Tornara-se fria, calculista. Tudo que fazia obedecia a um plano gizado com paciência e rigor. Agora – 1949 –, estava em Castro da Serra, como criada de servir na casa de um solteirão, comerciante, com fama de rico. Soubera que ele precisava de uma empregada, pois a sua mãe, com quem vivera, tinha morrido havia pouco tempo. Um dia, sabendo que ele estava na Vila, por ter ido à feira semanal, foi ter com ele:


- Senhor Manuel: soube que anda à procura de uma mulher que trate da sua casa; se me quiser, eu não me importo de ir trabalhar para si. Levo-lhe o mesmo que levava na última patroa: 350$00.           

- Tu não tens lá grande fama, criatura, mas eu preciso mesmo de alguém que me trate do comer e da roupa. Se quiseres já podes ir comigo hoje; vou ver ainda de uns assuntos e por volta das cinco vamos lá para riba.

- Combinado, vou buscar as minhas coisas.


     A freguesia de Castro da Serra ficava na montanha, a uns vinte e cinco quilómetros da Vila de Melcarte, e tinha de altitude cerca de mil metros, pouco mais ou menos. Era tudo a subir, mas recentemente fora inaugurada uma estrada para lá, prometida há mais de cinquenta anos, e havia camionetas de carga que também transportavam pessoas, juntamente com porcos e galinhas, cujo convívio era pacífico. À hora marcada, lá estavam os dois.

 
- Ainda pensei que desistisses, olha que não é fácil viver na serra.

- Os lobos também lá vivem e não se queixam!

- Tens sentido de humor, mulher; espero que não te arrependas. Viveste sempre na Ribeira, onde as temperaturas no inverno são mais altas e agradáveis. Em Castro as coisas são muito diferentes: no verão, o calor arrasa; no inverno, quase que não se pode sair à rua. A neve atinge por vezes dois metros de altura, bloqueia-nos as portas, ficamos presos, como se estivéramos numa prisão!

- Hei-de adaptar-me. A vida não é fácil para ninguém.

 
     Ele estava a pô-la à prova, mas não sabia ainda com quem se metera. Lina refinara nos últimos anos; tornara-se uma profissional na arte de enganar os outros. O ludíbrio tornara-se para si uma obsessão. Quando davam por ela, já um lar estava destruído, uma família destroçada.  

     A camioneta chegou ao Terreiro, ou Praça da República, onde recolhia os clientes. Todos queriam entrar primeiro a fim de escolherem os melhores lugares. Gerava-se uma confusão tremenda. O dono da carripana recomendava prudência, não tivessem pressa, o que era necessário é que todos coubessem. Ao fim de vinte minutos estava tudo pronto para seguirem viagem, mais ou menos uma hora de caminho. A viatura ia a abarrotar. Os bacorinhos grunhiam, as aves agitavam-se, os patos e os perus mostravam a sua cabeça fora das cestas, nervosos. As pessoas iam sentadas e de pé, encostadas umas às outras, dando azo a certas brincadeiras.
 

- Ó tio Bernardino, veja lá se não se encosta de mais, não se aproveite, olhe que o meu namorado não vai gostar! – dizia, a rir, uma das passageiras.

- Que queres, cachopa? Não há espaço, temos que nos sujeitar a estas reles condições. A viagem também não é muito longa. Por outro lado, o teu prometido está na França, não vai saber. Esta vida tem dois dias: temos que saber gozá-los. 

 
     Os outros passageiros riam-se, tornando a viagem menos cansativa e monótona. Muitos deles nunca antes tinham andado numa viatura motorizada, apenas em burros e cavalos.

     Eram quase dezanove horas quando chegaram ao centro de Castro da Serra. Muitas daquelas pessoas ainda teriam que andar a pé alguns quilómetros para chegarem aos seus lares, sitos em lugares distantes da sede da freguesia. Ainda teriam, pelo menos, duas horas de luz solar, o que lhes permitia ir com alguma segurança e tranquilidade.

     O senhor Manuel pegou na tralha e dirigiu-se a sua casa, ali perto do local onde ficava a camioneta. Apesar de tudo, era um privilégio residir ali, perto da igreja, do padre, das lojas de comércio, uma das quais era dele. Vendia um pouco de tudo: mercearia, tamancos, roupa, bugigangas, o que calhava. A maior parte das coisas que tinha à venda eram compradas na Galiza, mas também comprava na Vila, embora mais caro, mas tinham outra qualidade, outro requinte. Os galegos pouca coisa tinham de interesse: apenas o pão, uma ou outra conserva, o chocolate, uns rebuçados, um ou outro licor, e pouco mais! O calçado galego não prestava, só alpercatas, fabricadas às sete pancadas, e o mesmo se podia dizer da roupa: apenas as calças de pana se aproveitavam. As bebidas nada valiam, salvo raras excepções, mas os castrejos também não eram muito exigentes, não foram criados em grandes luxos, por isso uma qualidade média baixa para eles era o suficiente. // continua... 

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