terça-feira, 16 de agosto de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS
romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha


desenho de Rui Nunes

// continuação (ver 10/7/2016)


     Mamadu, talvez analfabeto, apercebia-se do conflito. Não sabia História, nem sequer Geografia; sabia, isso sim, que Alá significava o Deus e Maomé o seu profeta; que o Corão era o grande livro sagrado dos muçulmanos e que nele se ensinava: «dente por dente, olho por olho», ao contrário do cristianismo, que sugere que se dê a outra face a quem nos bate, mas na prática tanto uns como outros, se puderem, arrancam dentes e olhos aos seus inimigos.

- O rapaz acaba por ser uma figura exótica, uma espécie de extra-terrestre, do seu ponto de vista…

- Talvez. Foi em Bolama que o vi pela primeira vez, naquela ilha bela e estranha, a ilha das noites serenas e dos amores adiados. Ao princípio imaginei que se tratava de um prisioneiro, mas não: era a mascote! Nunca soube como o encontraram ou como ele encontrou a Companhia. E logo naquela operação que faltei – a minha febre subira aos quarenta graus! E por causa daquelas feridas, a que dão o nome de impigem, na virilha, entre pernas, provocadas sem dúvida pelas lamas asquerosas das intermináveis bolanhas. Pensei morrer.

     Caramba! Como eu gostaria de ter assistido a tudo; não teria o mesmo encanto, o infinito mistério, mas saberia. E os meus camaradas apenas me informavam: «surgiu!»

     Durante muito tempo permaneceu na Companhia. Só a abandonou, desaparecendo misteriosamente, como surgira, como o vento depois da procela, quando a destacaram, no ano de mil novecentos e sessenta e sete, para Contuboel, uma zona mais pacífica.        

     Parecia alheio ao mundo que o rodeava: as cubatas incendiadas; os corpos desfeitos; as fugas rocambolescas; o medo e a morte, os feridos, tudo o deixavam indiferente. Mamadu era feito de aço e acção! E aquele sorriso de anjo guerreiro, apocalíptico, permanecia, teimoso, no seu fidíaco rosto. Sem desfalecer, sem jamais dar parte de fraco, continuava a sua justa luta.

- Andava fardado?

- Mais ou menos. Vestiu camuflado do exército luso e teve direito a G-3, a metralhadora que então se utilizava. Deixou de ter idade, de ter família, de ter chão. Estava onde estivesse a Companhia, pensava militarmente, pensava guerra, respirava e vivia tempestade!

     Teve medalhas, qual atleta vitorioso nuns quaisquer jogos olímpicos, louvores mil; tornou-se herói nacional! Um exemplo a seguir. Os antigos escultores gregos teriam de ser ressuscitados para produzirem a sua estátua: a colossal e eterna estátua do pequeno grande Mamadu!

- Está a exagerar – farfalhou Henrique.

- Talvez… Medalhado, e já com a arca cheia de troféus, não parou – isto eram coisas de somenos. O seu objectivo pairava alto, residia na sua mente obcecada. A sua tribo… tinha-se esquecido dela! Mamadu lutava em nome dos fulas, mas estes já não o reconheciam.

     Se tivesse olhado com atenção à sua volta verificaria que todas as etnias da Guiné tinham esquecido as suas antigas rixas e, unidos, combatiam o colonizador. Não olhava! Estava fora do tempo e do espaço. Os chefes tribais compreenderam finalmente que o ódio cansa e que o seu inimigo nunca poderia ser o seu irmão de cor, de raça, de estirpe.

- O gaiato ficou, desse modo, isolado!

- Completamente sozinho. A sua guerra terminara no dia em que todas as etnias se abraçaram e decididas lutavam contra o regime opressor. Encontrava-se entre a espada e a parede. Passou a ser um alvo a abater!

- E o que é que ele fez?

- Quando toma consciência da situação desaparece: «Desapareceu o Mamadu» - comentavam com emotividade os meus camaradas. «Ninguém sabe para onde foi!»

     «Ele não era deste mundo» – disse-lhes eu por graça.

    «Mamadu reencarnava Farang, herói dos Sorcos», brincava o alferes Briosa, amante dos mitos e das lendas.

     «Farang?» - perguntaram todos a uma só voz.         

     «Querem saber quem foi essa importante personagem?»

     «Sim, meu alferes; conte» - pediram alguns soldados.

     [«Então ouçam atentamente:

     Os Sorcos eram pescadores. A sua tribo estava instalada junto do Níger desde há séculos. A tradição diz que eles foram os primeiros homens saídos dos “buracos da terra”, isto é, os primitivos habitantes do planeta, fundadores do “clã dos peixes”.

     Farang, o nosso herói, pertencia a essa tribo. A lenda começa assim:

     «Em Gao vivia Farang. E não havia em toda a terra outro homem que se lhe assemelhasse. Criança, lembrou à mãe: «nunca se viu um filho de Sorco não ter barco! Vou à floresta e cortarei uma árvore para construir uma piroga.»

     A mãe concordou: «está bem, meu filho.»

     De manhã cedo preparou nove medidas de milho e meteu-o num saco de pele de bode. Pegou na machada e meteu-se a caminho da floresta. Começou a cortar troncos. Chegou a noite. Adormeceu. Ao romper do sol recomeçou o trabalho. E assim durante catorze dias. Descascou os troncos, preparou a madeira, iniciou a construção do barco. Pôs as peças em monte e retornou à aldeia.

     «Minha mãe, dê-me uma serra.» A mãe assim fez.   

     Voltou para a floresta. Nos catorze dias seguintes serrou folhas de palmeiras anãs. Entrançou-as para fazer cordas e formou um grande rolo. Sentou-se em cima dele e pensou na maneira de transportar para a beira do rio as peças. Teve uma ideia: iria buscar gente à aldeia para o ajudarem. Procurou os velhos de Gao. Disseram-lhe: «Que Deus te dê tantos bens como deu ao teu progenitor.» E chamaram os rapazes. Foram para a floresta, mas todos juntos não conseguiam levantar a popa.

      «Farang, não será este ano que terminarás a tua piroga. Nunca mais acabarás de a coser.»

      «Esperem.» Enrolou a corda em volta de um braço, pôs à cabeça todas as outras peças, e caminhou pela floresta.

     Quando os jovens se cansaram de transportar a popa, pegou nela, levou-a, e nem por isso os seus passos abrandaram. Chegado à planície colocou toda a madeira em monte e preparou um lugar para a feitura da piroga. Levou catorze dias a unir as peças com as cordas, só faltava fazer uma única costura. Apercebeu-se de que não possuía mais cordas e a mãe aconselhou-o a ir procurar o arpoador Tinamor Farang, seu tio. Ele não lhe deu cordas! Fitou-o e chamou:

      «Albarcá-Babata!»

      «Aqui estou, mestre.»

      «Fomboragali!»

      «Pronto, mestre.»

      «Kusutelge!»

      «Kusu-Djumandi!»

   E continuou a chamar, chegando a trezentos e trinta e três. Disse ao sobrinho: «Aqui estão os pirogueiros: os da popa e os da proa. A gente de Gao será testemunha dos teus actos. Respeita o teu povo.» Virando-se para os homens, disse-lhes: «respeitai-vos mutuamente, a fim de serdes poderosos.» Ensinou-lhes todos os sortilégios que conhecia.

     «Farang, leva sempre contigo o bode preto, a galinha preta, o vaso de terra e leite fresco. Não te esqueças de prestar culto aos deuses protectores dos Sorcos: Karamankoy, Marmamkoy, Kayankoy e Mangasi. É tudo quanto posso dar-te.»

     No dia seguinte foram à floresta cortar palmeiras anãs e terminaram a piroga. Na sua primeira pesca, matou trezentos hipopótamos, trezentos caimões, trezentos manatins, trezentas tartarugas aquáticas, trezentos lagartos aquáticos, além de outras presas. Albarcá-Babata disse aos companheiros: «obedecei a Deus e a Farang.»

     Cansados de tanto ter arpoado, transportaram a embarcação para debaixo de uma árvore. Passaram aí a noite. Farang deitou-se e adormeceu. Djinni, o génio da árvore, perguntou aos homens: «de onde vêm?»

     «Vimos de Gao e vamos para Tigilem.»

     «Não sabem que ninguém pode vir dormir debaixo desta árvore?»

     Farang acordou. «Que aconteceu?!»

     O génio respondeu-lhe: «a tua viagem será a tua desgraça.»

      «Djinni, hoje mesmo cortarei a tua árvore!»

      «E tu morrerás hoje mesmo e todos os teus pirogueiros desaparecerão da face da terra.»

      Lutaram. Farang invocou as suas divindades, agarrou Djinni, lançou-o ao ar e depois atirou-o violentamente ao chão. Quis apoderar-se do seu coração mas o génio suplicou-lhe: «não me mates; dar-te-ei todos os meus feitiços.»

     Susteve o braço. «Deste-me tudo?!»

     Encostou-lhe a faca ao pescoço. «Não me mates; ainda tenho mais feitiços.» Deu-lhe mais trezentos e trinta e três sortilégios. «Toma o vaso com todos eles.»

     Ora aquele génio era o filho do chefe de todos os génios Djinnis. Choraram amargamente os sortilégios perdidos.

     Farang tornou-se poderoso. Lutou com gigantes, monstros de muitas cabeças, deuses de outras galáxias. Casou com Fatimata, uma bela mulher que não o amava. Para se libertar dele, um dia solicitou-lhe: «Farang, se me amas verdadeiramente, traz-me a gordura tirada do ventre do hipopótamo de Denderá-gusu.»

     Exclamou: «tu queres destruir a minha casa: ninguém pode combater com ele; pede outra coisa, mas isso não.»

     «Podes dar-me todo o ouro da terra, tudo o que estiver ao teu alcance, mas eu dir-te-ei: traz-me a gordura tirada do ventre do hipopótamo.»

     «Maldita sejas; queres destruir a minha casa! Matar-te-ei quando regressar.»

     «Não me importo, se me fizeres esta vontade.»

     Contou a seus homens e a sua mãe e todos o aconselharam: «manda-a embora, ela quer a tua perdição.»

     «Não! Lutarei até à morte; o meu amor por ela é muito superior ao ódio – lutarei.»

     Agarrou o hipopótamo e quis atirá-lo ao chão, mas o sítio onde ele bateu com a pata transformou-se num pântano! O hipopótamo agarrou Farang e esforçou-se por abatê-lo, mas o sítio onde ele tocou transformou-se numa grande duna! A poeira que eles levantaram estendeu-se sobre toda a terra e escureceu o céu!

     O marabuto de Farang apareceu. Chamava-se Alfa Mahalmudu. Bateu nos dois com o seu bordão: caíram como fulminados.

     «Deixa-me; tenho de matar o hipopótamo ou ser por ele morto!»

     A luta recomeçou e o marabuto regressou a Gao. Farang pediu protecção aos seus ídolos. Vieram sem demora. Agarraram o hipopótamo e lançaram-no por terra. Farang degolou-o e extraiu-lhe a gordura. Chegou a casa.

     «Bom dia, meu esposo; estou muito contente por te ver vivo!»

     «Aqui tens a gordura, vai untar os cabelos.»

     Pegou nela, mandou que a penteassem, entrançou os cabelos com fios de oiro e prata, pôs argolas nos tornozelos, um labadjur e um bakawel em volta dos rins, enfiou braceletes nos braços e adornou-se com todas as suas jóias. Farang ficou sete dias a contemplá-la. Não comeram, nem beberam, durante esse tempo. Por fim, ordena:        

     «Fatimata, deita-te; vou degolar-te.»

     «Não me degoles; bem vês que estou penteada e bela.»

     «Deita-te!» - insistiu ele, com veemência.

     Ela deitou-se; ele pegou na faca e brandiu-a, mas não foi capaz de a degolar. Então o seu filho, num ímpeto de fúria, cortou o pescoço à madrasta.

     Farang ficou triste. A partir daí lutou incansavelmente contra todos os génios e deuses contrários. Mandou construir uma guitarra e começou a tocar. Ouvindo a música, todos os peixes do rio vêm para a sua beira. É assim que agora pesca e dá alimento ao seu clã.»]
 

*


     «Que linda história, meu alferes; estava um dia inteiro a ouvi-lo» - apressa-se a comentar o “Almada”.
 

*


     Henrique tudo escutava com redobrada atenção. Curioso, pergunta:
 

- E nunca mais viram a vossa mascote?!

- No término de 1967, quando entramos no Uíge para regressar a Portugal, um soldado gritou: «Olhem o Mamadu, é ele, olhem o Mamadu! Está a dizer-nos adeus.» Não sei se alguém o viu além desse camarada, pode ter sido uma alucinação. Eu, só tendo olhos para o mar, não o vi, confesso, mas senti um arrepio pelo corpo todo, o seu forte abraço de despedida, a sua presença ausente! // continua...

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