quinta-feira, 28 de julho de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
 
Por Joaquim A. Rocha
 
IX capítulo - continuação (ver 15/6/2016).
 
 
 

- Muito me ri à tua custa; eras um autêntico saloio! Pensavas que na cidade ninguém dormia, tinhas medo de pinchar dos carros elétricos em andamento, ficavas boquiaberto com tantas luzes, com tantos reclamos luminosos.

- E lembras-te daquela vez que penetrei na casa dos vizinhos da Susana?

- Já não me recordo bem, conta.

- Ainda na rua, toquei à campainha do terceiro andar quando devia ter tocado para o quarto; de cima abriram, deviam ser seis horas da tarde, e fui subindo as escadas, que nunca mais terminavam; logo que vi uma porta aberta entrei; sentei-me no banquinho que se encontrava na cozinha e esperei tranquilamente como era hábito. Às tantas começo a ver caras totalmente desconhecidas para mim. Então pensei: «olha que este não deve ser o apartamento onde reside a tua irmã!» Sem me denunciar, ergo-me sorrateiramente, saio porta fora, galgo mais uns degraus, e fui bater à porta do andar de cima – reconheci de imediato a pessoa que me veio abrir a porta.

- Eras mesmo um labrego! E tiveste sorte, pois aquelas pessoas na sua maioria eram hóspedes; se fosse uma família mandavam-te prender, pensando que eras um ladrão!

- Normalmente os irmãos mandam ir os outros para a cidade ou para o estrangeiro, mas tu a mim nunca me disseste para ir trabalhar perto de ti!                      

- Ainda pensei nisso, mas tu não tinhas corpo nem energia suficiente para aguentar aquela vida, borravas-te todo, não aguentavas uma semana, ias-te logo abaixo das canetas; aquele trabalho de carregar às costas cestos com quilos e quilos de mercadoria só para gajos fortes, possantes como bois, por outro lado tu estavas a aprender um ofício, embora não desse muito sempre ia dando para a comida, casa não pagavam e o bruxo sempre ia desembolsando alguns escudos.

- Não sabes que a mamã se zangou com o feiticeiro no ano seguinte à tua ida para Lisboa? Zangaram-se, mas depois ele começou a rondar a porta, o que ele procurava sabia eu, era velho, mas para isso não! A tua mãe pouco tempo lhe resistiu, fez logo as pazes, mas aí intervim eu, apanhei os dois na cama, eles pensavam que eu só aparecia à noite, que tinha ido ao rio, eu costumava ir todos os fins-de-semana à pesca, era o meu desporto favorito, além do futebol, levava um livro para ler, o que me fascinou mais foi o Don Quixote de la Mancha, fartava-me de rir, é uma obra extraordinária, muito bem escrita. Sabes que eu até falava com as águas que, lenta ou velozmente, corriam para o mar? Serviam-me de amigo e confidente. Nesse domingo de verão à tarde, e como já havia tempo desconfiava deles, não fui à pesca. Nesse dia resolvi andar ali por perto. A porta da casa estava trancada, era para eu não entrar caso aparecesse de surpresa, mas eu engendrei outro processo, outro método de entrar. Ágil como era, qual esquilo jovem, entrei pela varanda, peguei na machada, aquela que levava para o monte para cortar a lenha, e gritei-lhe: «saia imediatamente dessa cama, seu velho porco, e ponha-se na rua, se o vejo cá outra vez mato-o!» O filho da mãe viu que eu estava a falar a sério, a mamã chorava, não era certamente de vergonha, que essa já a tinha perdido há muito tempo, mas de raiva por ver que eu já estava crescidinho e jamais lhe aceitaria estas jogadas sujas, enquanto esteve amigada com ele era uma coisa, agora ele entrar na casa como se ela fosse uma prostituta, talvez pagando-lhe, isso não.

- E o bandido, como reagiu?

- O patife meteu o rabo entre as pernas, como fazem os cães cobardes, e nunca mais entrou na nossa casa, grande besta, tinha-lhe uma raiva, um pó, que nem para a cara lhe podia olhar.

- Pensava que te davas bem com ele!

- O somítico, quando eu fiz a quarta classe, em Julho de 1955, ofereceu-me um fato de macaco, de ganga, de cor azul, daqueles que usam os mecânicos nas suas oficinas, e umas alpercatas, para levar ao exame, parecia uma miniatura de operário, até os outros alunos se riram de mim, que vergonha, valia mais ter ido com a minha roupinha rasgada e o cinto e corda, era assim que eu sempre andava, e já ninguém se ria de mim.

- Depois ficaste sozinho com a mamã.

- Ficámos com alguma tenda e fomos pelos lugares do concelho tentar vendê-la. Muito calcorreámos: léguas e léguas de veredas, caminhos de cabras, por vezes tudo encharcado. Claro que foi um autêntico fiasco: a mamã embebedava-se e perdia a conta aos artigos que se vendiam, eu ia apontando, mas que queres, tinha pouco mais de onze anos de idade, sem experiência de vendas, ela era uma analfabeta pura, o velho é que sabia vender, até parece que nascera tendeiro o raio do homem. Passado uns meses já não tínhamos tenda nem dinheiro para pagar aos fornecedores, foi um autêntico caos, um desastre absoluto. A seguir fui aprender o ofício de sapateiro, engraxava sapatos nos dias de feira e aos domingos, dez tostões cada engraxadela, alguns ainda achavam caro! Ia ganhando para a bucha, a mamã continuou a percorrer as aldeias, agora sem tenda, conhecia muita gente, ajudava aqui e acolá, iam-lhe dando umas malgas, algum milho, uns pedaços de broa, feijão, umas chouriças, coisas que estavam muitas vezes já a estragar-se, que eles receavam comer, nós éramos o caixote do lixo, a cloaca; ela aproveitava tudo, eu não podia ingerir essas coisas, já tinha o estômago estragado, fartava-me de vomitar. Lembras-te quando estive internado no hospital?

- Lembro-me perfeitamente, foi quando viemos para a Vila, tinha eu quase nove anos, tu andavas muito enfezado, não comias nada, amarelinho, parecias tuberculoso, a tua mãe foi pedir ao médico para te internar no hospital da Santa Casa da Misericórdia, estiveste lá uns dias, depois fugiste, não sei porquê!

- Fugi porque não gostava de lá estar; parecia-me uma prisão, tu cá fora a brincar e eu lá preso, a comer sopa de galinha, sem sal, aquilo não prestava para nada, as enfermeiras é que eram simpáticas, sobretudo a Maria do Céu, nunca a esquecerei, era o meu anjo da guarda, tratava-me como se eu fosse o menino querido dela, tão bondosa, eu pinchei as grades, pronto, não gostava de lá estar, nem da comida, dormia junto com velhos, morreu lá um à minha beira, apanhei um susto dos demónios, nem queiras saber, nunca tinha visto um homem morrer, tinha os olhos esbugalhados, parecia um fantasma, muito branco e amarelo, meterem-me ali, com aqueles idosos doentes, aquele cheiro a remédios, eu vomitava, até desejava morrer, saltei aquele portão, aquelas setas de ferro apontadas ao céu, podia ter ficado ali espetado, coitado de mim, mas eu também não me importava, o que eu não queria era lá estar, queriam dar-me óleo de fígado de bacalhau, que nojo, ainda vomitava mais, saía-me da garganta um líquido verde, viscoso, aquilo vinha das tripas, porque eu não tinha no estômago nenhum alimento.

- Sofreste muito, eu na altura ainda te batia, estou cheio de remorsos.

- Escusas de estar, eras uma criança, só mais velho do que eu cerca de três anos, não compreendias o meu tormento, pensavas que eu fazia tudo aquilo por maldade.

- Depois a mamã, quando soube, andou à tua procura, tu não aparecias, ninguém sabia onde te meteras, levaras sumiço! Até se pensava que tinhas ido para o rio, que te afogaras… Pensaram-se imensas coisas. Eu, apesar de tudo, de seres refilão, de brigares com todos, de seres um rebelde, apesar disso, gostava de ti, mas claro, andavas atrás de mim, eu tinha os meus amigos, tu eras uma formiga à nossa beira, nós íamos à fruta, eu não queria que nos acompanhasses, devias andar com os da tua idade. Tu insistias e eu tinha que te bater, casquei-te bem, um dia até desmaiaste! Fiquei com medo, o soco fora muito forte, mas passado pouco tempo abriste os olhos, que alívio para mim.  // continua...

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