domingo, 10 de julho de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha 

 

desenho de Rui Marques

12.º Capítulo


A MASCOTE
 

    A tarde estava linda. Pelas ruas da cidade banhada pelo Tejo passeava imensa gente, olhando as montras, algumas com manequins expostos que pareciam mesmo pessoas! As roupas, o calçado, os livros, etc., estavam muito bem colocadas, tudo arranjadinho, atraente! Em tudo se notava a mão do artista, do mestre em decoração. Os saloios ficavam embasbacados com tanta beleza, com tanta arte. Apetecia comprar tudo!
     Henrique fora o primeiro a chegar ao Café. Sentou-se, como já era seu hábito, na esplanada e aguardou pacientemente a chegada de Cândido.
     Este não demorou muito. Tinha almoçado, como habitualmente, num daqueles restaurantes da Baixa lisboeta, quase todos geridos por minhotos ou galegos. Os preços eram acessíveis, o raio do ordenado é que não crescia, e por essa razão tudo parecia caro.
     Sentou-se à beira do amigo, sorriu, e disse:
 
- Deves estar ansioso por saber que tipo de mascote tinha a minha Companhia?!
- Estou mesmo. O que ou quem era?!
- Chamava-se Mamadu. Era um rapaz de raça negra, com um metro e sessenta de altura, aproximadamente, magro, mas com boa aparência, com a pele acastanhada. Parece até que estou a vê-lo! Vinha da misteriosa mata, essa selva imensa e impenetrável, densa, inacessível, traiçoeira. Não teria mais do que quinze anos de idade; era filho da floresta africana e do deus Sacarabu «deus justo, terrível nas suas vinganças e ávido de sangue…» que o gerou numa noite de tormenta e lhe pede apenas que sobreviva; a partir de agora será também filho da tropa.
     «Fula amigo de branco» - dizia-nos ele no seu português criança. «Balanta inimigo, balanta quer independência, balanta quer dominar Guiné!»
     Isso talvez fosse verdadeiro. O homem balanta, de rosto altivo, arrogante, peito de atleta, não desejava o homem branco no sagrado solo guineense; queria ser senhor e não escravo – ele não se sentia, ao contrário de outras tribos, inferior ao europeu. Pensava: «Nenhuma raça é superior a outra, o homem é um ser universal, tem as mesmas capacidades; o modo de viver, os interesses, é que são diferentes uns dos outros.»
     Lamentava que os brancos tivessem ido para África como senhores e não como iguais. Agora era tarde: só através das armas poderiam os negros reapoderar-se das suas antigas heranças, dormir em paz com os seus espíritos avoengos.          
     Os fulas não pensavam assim. O europeu, segundo eles, trazia o progresso: as fábricas, as máquinas, a estrada, os carros, as armas de muitos tiros, e acima de tudo o dinheiro, que tudo comprava! Sabiam que o branco se dava bem com o negro desde que este o respeitasse, fosse humilde, trabalhador, obediente. Reconheciam-lhe superioridade em quase todos os domínios e não punham em causa a sua justa autoridade.
- Isso significava que os fulas e os balantas se odiavam? – pergunta Henrique, admirado, mastigando mais um tremoço.
- De certo modo, sim. Os balantas, porém, não estavam sós. Outras etnias, que antes se guerreavam entre si, uniam agora os seus esforços a fim de expulsar o intruso, o usurpador, que lhes tentava impor concepções e estilos de vida diferentes dos seus; costumes e crenças estranhas e nocivas – a aculturação forçada!
- E o miúdo? Que fazia?
- Mamadu estava radiante. A tropa dava-lhe comida, roupa e uma cama para ele dormir. Dera-lhe também uma arma para combater contra os balantas, essa tribo de homens fortes e orgulhosos que ele odiava. Os fulas eram inteligentes, mas não fortes; com a ajuda do homem branco, sob as suas ordens e orientação expulsariam do seu amado chão esses indivíduos indesejáveis.
- Então não era casual a sua colaboração com a tropa?!
- Os fulas possuíam o seu programa de acção, o seu plano. Todos veriam como eles seriam capazes de o pôr em prática!
     Mamadu tinha sonhos, estratégias, ambições. Na Companhia todos gostavam dele: aqueles dentes branquíssimos abriam-se prodigamente, num sorriso sem fim, às solicitações do soldado – era a mascote. Tudo correria bem daí para a frente: graças ao Mamadu!
- Vocês então acreditavam que ele lhes trazia sorte!
- Com certeza. Como o trevo de quatro folhas.
     Passou a acompanhar-nos em todas as operações. Sem aparente cansaço, sempre atento, um sorriso satisfeito bailando-lhe nos olhos brilhantes e enigmáticos, disparando com o à-vontade do hábil atirador profissional!
     Estava na guerra, estava ali para matar. Era a sua opção: matar, matar sempre, até ao último inimigo. Era um jovem formado na escola da guerra; a sua academia seria o próprio local das operações. A logística, balística, ou quaisquer outras ciências do âmbito militar, a ele nada lhe ensinariam, pois o instinto, o ódio, a determinação e a sagacidade superavam de longe essa carência.        
- Frequentara a escola?
- Suponho que não. No entanto, nunca ninguém soube se ele escrevia, lia e contava. Também de pouco lhe serviriam esses conhecimentos ali: manejar a arma com destreza, destruir sem compaixão, e sorrir, sorrir sempre, eram de longe dotes mais importantes, necessários, imprescindíveis... A guerra não se faz com poemas: faz-se com tiros, com raiva, com sangue, com morte.
     Mamadu não tinha nada de idiota, sabia isso. Ali, no inferno de Dante, não havia lugar para devaneios; as ideias deviam transformar-se em munições e os sonhos em palpáveis realidades. Mamadu, que tinha quinze anos, também sabia isso; adaptou-se à guerra, e esta jamais o desiludiu, o decepcionou.
- Até parece que o Cândido estava lá apenas como observador!
- De certo modo, sim; eu nunca tive espírito de guerreiro. Era civil fardado e não militar. Esses são diferentes de nós: no pensar, no agir, em tudo.
  Todos aqueles anos de lavagem ao cérebro, aboletados, moldam inexoravelmente o seu espírito. Mas vou dizer-te uma coisa: existia, sem dúvida, uma certa harmonia naqueles grupos heterogéneos: a tropa, os amigos da tropa, os inimigos da tropa e dos seus amigos! Lutava-se rijamente: uns, para manter o seu “status quo”; outros, para instituir o seu regime; e ainda aqueles que queriam preservar a tradição, os ancestrais costumes. Duas civilizações, várias culturas, diferentes e antagónicas, frente a frente, numa luta sem tréguas e sem fim à vista!  
// continua....

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