terça-feira, 21 de junho de 2016

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha


MELGAÇO E REMOÃES


     Como disse em artigo anterior (ver A Voz de Melgaço n.º 957) o nome Melgaço deve provir de Melkart, deus fenício. Os fenícios, povo de comerciantes, inventores do alfabeto a partir de outros sistemas de escrita, percorreram toda a península ibérica, trocando e vendendo os seus famosos produtos, sobretudo tecidos de lã e seda, cuja cor púrpura a todos impressionava. Os ricos e nobres usavam-nos com grande requinte. A propósito da púrpura existe uma lenda curiosa. Certo dia um fenício vai com o seu cão até à praia. Como estava calor, o cão correu para a água. Feliz com o seu banho, voltou alegremente para junto do seu dono, fazendo-lhe copiosas festas. O homem vestia uma túnica branca, quase até aos pés. O focinho do animal manchou a túnica. Quando o homem se apercebeu do que tinha acontecido, bateu no cãozito. Depois seguiu para casa a fim de tirar as nódoas da roupa. A mancha, porém, teimou em ficar. O homem volta à praia com o seu companheiro de quatro patas e verifica que ele tinha estado em contacto com uma variedade de moluscos, cuja tinta se impregnava nos tecidos, sendo quase impossível tirá-la. Estava descoberta a púrpura. Ficou famosa a púrpura de Tiro, cidade fenícia, junto ao mediterrâneo.
     Segundo alguns olisipógrafos, Lisboa deve também o seu nome aos fenícios. O seu alfabeto não possuía vogais. A escrita deles era silábica; limitava-se «a anotar a sílaba, isto é, uma realidade sempre pronunciável e fácil de isolar», embora «da sílaba só anote a consoante, elemento essencial para indicar o sentido, deixando que a vogal seja fornecida pelo leitor», segundo escreveu o Professor Meillet. Foram os gregos, seus rivais no comércio do mediterrâneo e costa atlântica, que as acrescentaram com caráter permanente. É através deles, gregos, que os latinos, e outros povos europeus, vêm mais tarde a tomar conhecimento do código escrito.
     Melkart, com esta forma, é pois palavra grega. Na sua Gramática Histórica o Professor Doutor Ismael Coutinho ensina-nos que «nos empréstimos tomados ao grego, representava o latim o K por g: gummi <grego kómmi; gobius <kóbiós; gubernare <kubernân.» Logo, o k de Melkart deve ter desaparecido ainda no latim. Quanto à permanência do nome deve referir-se que os romanos respeitaram, de uma maneira geral, os topónimos, o mesmo aconteceu mais tarde com os suevos e visigodos. Os árabes não tiveram nenhum papel relevante nesta zona da península ibérica.
     Como estamos em maré de nomes, hoje vou fazer uma tentativa para explicar o topónimo Remoães. O padre Aníbal Rodrigues, pároco de Castro Laboreiro, ao elaborar um pequeno roteiro turístico-cultural do concelho, em 1983, referiu-se a Remoães do seguinte modo: «Este nome é pouco usual. A sua origem deve relacionar-se com os remos do rio (remoanes) – passagem de barco no rio – os homens que dirigiam os barcos.» Embora esta asserção peque por vaga, o padre Aníbal dá-nos uma pista para se chegar à provável origem: «Num monte de forma pirâmide, a norte da igreja paroquial, à distância de uns quinhentos metros aproximadamente, encontram-se vestígios de uma antiga povoação castreja – antigo castro, de há dois mil e quinhentos anos.» Esses castros foram construídos, como se sabe, pelos celtas, povo oriundo do centro da Europa. Uma das suas tribos chamava-se precisamente Remi (Remos, em português moderno). Foram eles que fundaram Reims, cidade francesa no Departamento de Marne. Informa-nos a Enciclopédia Verbo que Reims era a «principal cidade dos celtas Remi» e que «quando da ocupação romana era uma das povoações mais florescentes da Galácia.» Pois bem, os habitantes de Reims designam-se rémois, cuja pronúncia é remuá.
     Não há qualquer dúvida que os celtas estiveram no território que é hoje a freguesia de Remoães por volta de quinhentos anos antes desta era, há dois mil e quinhentos anos, portanto! Aí devem ter permanecido durante séculos, isolados ou agrupados com outras tribos, até à chegada dos romanos. Com a vinda destes para a península ibérica, os celtas tiveram de se romanizar, pelo menos adotando a língua (embora com uma pronúncia algo alterada) e a escrita dos vencedores. A língua celta e a língua latina têm muitas afinidades, pois ambas provêm do remoto indo-europeu. Se foram eles que deram ou não o nome a esta localidade só a arqueologia e a linguística nos poderão tirar essa dúvida, mas que as hipóteses são muitas, isso são. A terminação «anes» é consequência da passagem do latim para o português. Compare-se Chaviães que, no foral dado a Melgaço por Afonso Henriques, aparece escrito Chavianes (de Flavianus).
     Remoães esteve sempre no plural (Remoanes = a terra dos Remos?), nunca se escreveu ou pronunciou, segundo me parece, no singular, pois se assim tivesse acontecido daria Remoão e não Remoães.
     Acerca do antigo dialeto galeziano (galaico-português) já alguém disse que «não é desarrazoado afirmar que o tratamento diferente que teve o latim nessa região compreende-se, por ter sido ocupada pelos celtas e suevos, e haver constituído um feudo, que mais tarde se tornou independente
     Que os romanos estiveram em Remoães também não há dúvidas; demonstra-o claramente o nome Folia, que significa, folha, folhagem. Quando os romanos construíram a ponte da Folia certamente haveria nesse local muitas árvores frondosas, daí o nome.
     Se quiséssemos especular ainda sobre o nome Remoães poderíamos fazê-lo derivar de remolares, homens que fazem ou consertam remos. Em catalão, remolar tem o mesmo significado! O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, transcreve a seguinte passagem de 1434: «… fazemo-lo mestre dos remolares, assim e pela guisa que o ele havia…» O que prova que esta profissão existiu. Aliás, Lisboa tem uma rua com esse nome. Não custa, pois, acreditar que nesse sítio, hoje Remoães, houvesse há alguns séculos atrás uma oficina, na qual se fabricariam e consertavam remos. O rio Minho era, em tempos idos, mais navegável do que é hoje; e, portanto, ver-se-iam no seu leito muitos mais barcos do que atualmente.
     Sem achados de vulto na área da arqueologia, e de outras ciências afins, nada poderemos afirmar sem corrermos graves riscos de fraude científica. Estamos ainda no campo das hipóteses. Esperemos que um dia Melgaço suscite curiosidade à comunidade científica, portuguesa e estrangeira; se assim acontecer, esclarecer-se-ão certamente muitas dúvidas que ainda e teimosamente persistem. Os remoanenses que me desculpem por eu não lhes dar certezas.                                    



Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1006, de 1/5/1994.

Sem comentários:

Enviar um comentário