quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Por Joaquim A. Rocha

porta fechada, destino adiado

VI

     A curiosidade é como uma doença: umas vezes cura-se, outras vezes não!

     Estou novamente com o meu irmão na cavaqueira, relembrando tempos passados, bons e maus momentos, quase sempre maus, pois quem vive no limite da pobreza, desamparados, carentes de comida, de roupa, e até de carinhos, não tem com certeza momentos bons para relembrar. Ponham então o ouvido à escuta:

- Por que é que viemos para a Vila? Não seria melhor para nós morar em Cendre?
- Tu és um idiota, não estás a compreender. A nossa família é da Vila, só nascemos em Cendre porque a tua mãe estava lá, fora para esse lugar tratar uma idosa, sogra de um soldado da guarda-fiscal. Os nossos avós maternos eram da Vila e foi na Vila que lhe nasceram todos os filhos, só que a tua mãe precisou procurar emprego e teve de arranjá-lo em Tronços, depois foi para São Bernardo, lá conheceu o Olavo Meliças, nosso pai, e por lá ficou, quando ele se pôs a mexer para a Galiza, com a tal galega, a tua mãe ficou desesperada, começou a beber, a emborrachar-se, e já nem dinheiro tinha para pagar a renda da casa; então o dono, o senhor Silva, às tantas disse-lhe para ficar de graça, não teve coragem de a pôr na rua com dois filhitos de tenra idade, teve bom coração, mas também a casa não valia dez réis, quem é que quereria ali habitar? Agora já nem telhado tem, só possuía uma divisão com pouco mais de vinte metros quadrados de área! Depois de tu nasceres ainda lá estivemos cerca de seis anos, depois fomos os três para a Vila, tínhamos direito a metade da casa, os avós já tinham morrido e a tua mãe era dona de metade. Ficámos nos baixos, em cima morava o tio Aurélio com a mulher, a Gertrudes, e a filharada, ele era barbeiro, mas as coisas não estavam a correr bem, estava-se a passar por uma grave crise e então resolveram ir para Lisboa, os dois filhos mais velhos, a Tânia e o Adolfo, já lá estavam. Acho que foram para os arredores, havia lá conterrâneos, julgo que os meteram em casa, claro que lhes pagavam parte da renda, mas assim já ficava mais barato a todos.
- Olha que eu passei maus bocados com eles!
- Passaste tu e eu. A mamã ia para as termas cozinhar, entre Junho e Setembro, e deixava-nos ficar com a tia, ela só nos dava caldo de farinha, os petiscos, se é que os havia, duvido, eram para os seus filhos, e se não comêssemos obrigava-nos a ficar de castigo na mesa, eu comia, que sempre tive bom estômago, tudo que vem à rede é peixe, mas tu vomitavas tudo, não conseguias ingerir aquela mixórdia, coitado de ti.
- E segundo parece a mamã não lhes ficava a dever nada, pagava-lhes e bem pago.
- Sim. Nessa ocasião ela ganhou algum juízo e trazia dinheiro e comida para casa; claro que a tia recebia parte, mas com tantos filhos… E que amizade eles nos tinham? Nunca tínhamos vivido juntos, éramos como que desconhecidos, só o sangue nos unia, mas não é suficiente, é preciso crescer juntos, eu gostava mais dos rapazes de Cendre do que deles, eram como nossos irmãos, estes não, se pudessem até nos batiam, que a mim não conseguiam, que eu sou forte desde criança, mas a ti, coitado, um “lingrinhas”, eras o bombo da festa, até eu te chegava às vezes! Mas tu também eras mauzinho, não obedecias a ninguém, eras um selvagem, um anarquista, um rebelde, andavas sempre a atirar pedras às pessoas, até parece que eram todos teus inimigos! Uma vez rachaste a cabeça ao filho do Nelo Santos, o guarda-fiscal, por vontade dele matava-te, tiveste sorte, que ele não era para brincadeiras, até se dizia que tinha abatido a tiro um contrabandista, quando ele ia a atravessar o rio com contrabando, disparou uma data de balas e atingiu-o mortalmente; olha que não se arrependeu, dizia que tinha sido em serviço, malandro, o desgraçado andava a ganhar a vida, olha que aos contrabandistas poderosos, àqueles que lhe pagavam bem, a esses não perseguia, deixava-os passar livremente.
- Os guardas também ganhavam mal, coitados.
- Defende-los porque o teu padrinho é guarda, mas olha que eles não eram boa rês, prejudicaram muita gente, sobretudo os mais pobres, que os outros sabiam defender-se, tinham rede montada, mas o coitado, aquele que só levava uma saca de café para Espanha, a esse, quando o apanhavam, não perdoavam. Deviam ser todos como a famosa «Ana Home», essa era tesa, até coça lhes dava, uma altura prendeu um carabineiro a uma árvore e tirou-lhe a espingarda, olha que lhe foram logo pedir para a devolver se não o desgraçado perdia o emprego, era uma mulher de armas, uma mulher de pelo na benta, dessas é que devia haver muitas.
- Eu não defendo ninguém, apenas faço um esforço para compreender aquela época, aquela gente, a sua maneira de viver, de agir. Dizias que os tios e os primos foram para Lisboa, então ficamos com a casa toda para nós?!
- Bem, ainda ficaram connosco duas primas: a Antónia e a Laura, que acabaram por se zangar com a tua mãe e irem morar, provisoriamente, com o Evaristo, um amigo chegado do tio Aurélio. Esse Evaristo, não sei porquê, por que cargas de água, veio cravar tábuas no rés-do-chão da casa, alegando que metade lhes pertencia, e que nós não a podíamos habitar na totalidade. A mamã reagiu de forma violenta, pegou numa machada e rebentou com as tábuas, eles também tinham lá estado sozinhos e a mamã não recebera nada, e jamais lhes exigiu fosse o que fosse; por outro lado, ainda não tinha havido partilhas, por isso ninguém sabia qual era a sua metade.
- Foram para tribunal?
- Não. Parece que o Evaristo meteu as pernas entre o rabo, como fazem os rafeiros, ou então recebeu instruções do tio, e as coisas ficaram por ali. As primas depois foram para Lisboa também e nós ficámos com a casa toda.
- Tu foste à escola…
- Em 1950 matriculei-me na primeira classe, passados quatro anos, em Julho de 1954, tinha a quarta feita.
- Eu matriculei-me no ano seguinte e acabei a quarta em 1955. E a asma, como é que te passou?
- A Santa Casa da Misericórdia de Melgaço enviava todos os anos para a praia de Âncora às suas custas crianças necessitadas e com dificuldades respiratórias; eu fui uma delas.
- E a praia fez-te bem.              
- Embora não acredite em milagres, o que aconteceu é de facto extraordinário – a partir desse ano nunca mais tive problemas de respiração!
- Foram os ares do mar e os banhos de sol. // continua...

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