sexta-feira, 10 de novembro de 2023

OS NOVOS LUSÍADAS (...)

Por Joaquim A. Rocha 



// continuação de 7/08/2023


83

 

Em Angola nada era diferente:  

Imensas tribos de gente guerreira,

Orgulhosos do chão e continente,

Usando dialetos “chiadeira”,

Que transmitiam ao seu descendente.

Corpos sãos, viris, alma verdadeira.

Tinham pátria, longos territórios,

Os seus rituais, os seus purgatórios.

 

84

 

Tinham chefes, guerreiros destemidos,

Capazes de seu solo defender;

Tinham pouca roupa, quase despidos,

Casas não eram coisa de se ver.

A natureza dava-lhes os vestidos,

Inúmeros manjares para comer.

Tinham imensa pesca, muita caça,

Para beber tinham água e cachaça.

 

85

 

Tudo muda ao chegarem os lusos,

Aventureiros e conquistadores;

Cabeças loucas, sem dois parafusos,

Fidalgos, camponeses, pescadores;

Habituados a praticar abusos,

Querem ser de África os senhores.

Com os negros iniciam a guerra,

Pela posse dos corpos e da terra.

 

86

 

Será luta longa, muito renhida,

Com altos e baixos de ambas as partes;

Ali a piedade não tem guarida,

Mata-se com furor e várias artes...

Nenhuma força se dá por vencida,

Todos têm por seu chefe o deus Marte.

Artur de Paiva e Paiva Couceiro

São símbolo máximo do guerreiro.


87

 

Forçosa campanha a do Bailundo,

Em que brilhou Massano d’Amorim;

Tremeu a terra, todo este mundo,

Sofreu Manel, António, Joaquim,

E até o transmontano Raimundo

Viu chegar a sua vida ao fim. 

A seguir enfrentam-se cuamatas,

Caras pintadas, assanhadas gatas.

 

88

 

Couceiro, João Maria d’Aguiar,

Enfrentam-nos com muita coragem;

Mosquetes, canhões, balas pelo ar,

Espadas compridas, sacanagem;

Ódio e raiva, ordens para matar…

Corpos bailando na leve aragem.

Tudo na vil guerra é permitido,

Ai do desgraçado que é vencido.

 

89

 

Alves Roçadas dá golpe final,

 

Nos ditos cuamatas angolanos;

O seu génio e arte é-lhes fatal,

Não lhes vale a fuga ou enganos.

A sua derrocada é total,

Falecem como se foram garranos.

Ai, tanta vida ali se ceifou,

Tanta palhota, capim, se queimou.

 

90

 

Devido ao ultimato inglês

O povo vibrava de indignação;

Acusava o governo português

De permitir essa aberração.

Desejava o modelo francês,

A monarquia não deseja não.

Revolta de trinta e um de Janeiro

Serviu, dizem, de ensaio primeiro.

 

91

 

O monarca casou com Dona Amélia,

Filha dos nobres condes de Paris,

Descendente d’antiga «gens» Cornélia,

E do monarca santo, Dom Luís.

Era linda, como uma camélia,

Nas unhas das mãos usava verniz…

Foi fundadora do Museu dos Coches

Perfilados na pista tal fantoches.

 

92

 

Criou no nosso país sanatórios,

Permitiu aos doentes assistência;

Evitando assim muitos velórios,

Dando ao vírus menos resistência...

Com a ajuda dos santos Gregórios,

De muito dinheiro e paciência.

Não merecia aquilo que sofreu

Vendo morrer marido e filho seu.


93

 

Dom Carlos recebeu muita visita:

Eduardo Sétimo, rei inglês,

Afonso Treze, de face esquisita,

Loubet, digno presidente francês,

Guilherme Segundo, o rei da guita;

E ainda um nobre escocês…

Era um verdadeiro diplomata,

Agradando a grego e croata...

 

94

 

Porém, é severamente acusado

De governar mal, esbanjar dinheiro;

Viver como um rico potentado,

E o povo como um aguadeiro;

Poucos ricos, alguns remediados,

 Fome grassava no país inteiro.

Os progressistas, regeneradores,

Alimentavam fraudes e favores.

 

95

 

O rei devia dinheiro ao Estado,

Muitas centenas de contos de réis;

Pedira-o aos cofres emprestado,

Para alimentar amantes e corcéis.

Tinha o seu iate aparelhado,

Frequentava tabernas e bordéis.

Bebia que nem um grande camelo,

Comia como esfomeado vitelo.


96

 

Lutava-se no grave Parlamento,

Ninguém acredita nas eleições;

O dia a dia é um tormento,

Agitam-se as almas, corações...

O zé povinho julga-se jumento,

Carregando no lombo ilusões.

Dom Carlos diverte-se, vai à caça,

Ignora, fecha os olhos à desgraça.

 

97

 

Tudo isto é um regabofe,

Uma farsa, autêntica orgia;

Coisas que não cabem numa estrofe,

Nem em bela peça de fantasia…

Mesmo que o ousado autor nos mofe,

 Numa sala do Porto ou Leiria.

Quem me dera a mim estar presente

Para correr do trono aquela gente.

 

98

 

Depois de tanta coisa acontecer,

Depois de tantos êxitos, vitórias,

Começa quase tudo a morrer,

São inglórias atrás de inglórias;

Monarquia está a perecer…

Assuntos para futuras histórias.

João Franco governa em ditadura,

Mas creiam, será sol de pouca dura.


99

 

Mil novecentos oito, Fevereiro,

No seu regresso de Vila Viçosa,

O rei, sua mulher, filho primeiro,

Em seu peito uma bonita rosa,

Chegavam finalmente ao Terreiro,

À espera, multidão ansiosa.

Tudo corria às mil maravilhas,

Guerras, tumultos, estavam a milhas.

 

100

 

Triste dia, no Terreiro do Paço,

Quando gaivotas cruzavam o ar,

Carlos encostado ao doce regaço,

Janelas abertas de par em par…

Um assassino, cheio de bagaço,

Começa, maluco, a disparar.

Morre o rei e seu filho Luís,

Fica cismado o povo, o país.

 

101

 

Ninguém esperava cena assim,

Uma morte tão cruel, violenta;

Como se fora bandido, ruim,

Homem zangado, prenhe de tormenta.

Teve alegre vida, triste fim… 

Como a papoila, folha de menta.

Portugal ficou de eterno luto,

E o pobre coração devoluto.


102

 

O seu filho segundo, Manuel,

Moço, obviamente impreparado

Para desempenhar esse papel,

Senta-se no trono, mui acanhado...

Veste a farda, monta no corcel,

Atira-se ao mundo desamparado.

Pede ajuda ao povo, aos partidos,

Mas já estão derrotados, vencidos.

 

103

 

Tenta fornecer bem o seu farnel,

Mas sem experiência nem saber

Não se pode produzir cera, mel,

Para isso é necessário aprender.

Não adianta ser bom ou cruel,

É fatal ganhar guerras, não perder.

Partiu chorando da sua cidade,

Morreu no estrangeiro de saudade.

 

104

 

Em África continua a campanha

Contra os territórios dos Gambos,

Tribos do Pocolo e Guanhama;

João Almeida e Amorim, ambos,

Chafurdam-nos a todos na vil lama...

Os negros fogem, com os membros bambos.

Em Moçambique, Angoche já cede,

Tudo isso a borrasca precede.


105

 

A monarquia está agonizante,

Ninguém se entende na hora derradeira;

Vende-se cordão de ouro, o brilhante,

Hipoteca-se a quinta e a leira.

E tudo estiola num instante,

Seja no Douro, Minho, ou na Beira.

Cresce o partido republicano,

Com a propaganda de muito ano.

 

106

 

Cai o antigo regime monárquico,

Ninguém o lamenta, ninguém o chora;

Volta-se ao velho tempo autárquico,

O liberal foi levado pela nora

Para os lados frios do antártico,

Comendo tristemente sua tora.  

Não se critique o liberalismo,

Pois foi melhor do que o absolutismo.

 

107

 

Mil oitocentos vinte é História,

Orgulho desta antiga nação,

Patriotismo, garra, alta glória,

Nascimento da constituição…

Promotores fugiram da vanglória,

Lutaram com certeza por paixão.

Tomás, José Borges, Silva Carvalho,

Juntos, provocaram o reviralho.


108

 

Tanta coisa se podia contar

Deste período tão agitado;

As lutas, estórias de encantar,

Naufrágios no bravo mar salgado...

Costumes, namoricos ao luar,

Um pequeno coração destroçado.

Falta-me a tal veia criadora,

Uma alma viva e sonhadora.

 

109

 

«Somos um povo de brandos costumes»,

Diz-se por aí, mas sem qualquer razão;

Houve três guerras civis, azedumes,

Assassínios, a cruel inquisição…

A maldade atingiu altos cumes,  

Roubaram ao nosso povo o pão.

Mesmo assim somos gente com sorte,

Pois temos belo sol de sul a norte.

 

110

 

Temos muitas praias maravilhosas,

Um país lindo, as ilhas, ar puro;

Temos obras de arte graciosas,

Rico vinho verde, e o maduro…

Temos imensas árvores frondosas,

Belos rios, a vida com futuro.

Também temos alguns incendiários,

E governos bastante perdulários.


111

 

Temos o futebol e muito fado,

Turistas de todo canto do mundo;

Alguma pesca, fruta, algum gado,

Um teatro cativante, fecundo...

Cinema nasceu bem e mal fadado,

Mas aguentou-se, não foi ao fundo.

A ciência é nosso ponto forte,

Quer no sul, ilhas, no centro ou norte.

 

112

 

Temos o ótimo queijo da serra,

Sável e lampreia do Rio Minho;

O bom presunto da nossa terra,

A doce ginjinha, o alvarinho…

O cabrito está sempre na berra,

O fiel amigo, o «cozidinho»…

Rica feijoada à transmontana,

A famosa sopa à Juliana.

 

113

 

Temos saboroso queijo de cabra

Produzido no Minho, em Melgaço;

Coisas boas da Quinta do Seabra,

O licor beirão, o rico bagaço…

E para que a porta do céu se abra

Grelhe-se do porco o seu cachaço.

E por fim lampreia à bordalesa

Ficava otimamente à mesa.


114

 

Junto às praias, uma caldeirada,

De peixe muito fresco e marisco;

Apetitoso leitão à bairrada,

E javali, agressivo, arisco…

Truta marisca frita ou grelhada,

Apanhada com amostra ou isco.

Tudo servido com  ótimo vinho,

Seja branco, tinto, ou palhetinho.

 

115

 

Faltava a rica sopa de pedra,

O suculento bacalhau à Brás,

Que até ressuscitaria Fedra,

Que no reino de Perséfone jaz.

Tudo com uma pitada de ajedra,

E a bela pinga de Monsaraz.

Não esquecer a canja de galinha,

Se ela for do campo e bem gordinha.

 

116

 

E por fim, tripas à moda do Porto,

Também amêijoas à Bulhão Pato;

No natal um peru bastante torto,

E uma lebre caçada no mato…

E depois de tudo ficar absorto,

Eu nessa mesma tecla jamais bato.

Falemos do famoso Barrigana,

Ou das cartas de soror Mariana.


117

 

Regue-se tudo com o nosso azeite,

O melhor de todo o cosmos, talvez;

Azeitonas pretas, verdes, são deleite,

Das papilas do povo português…

Não me peçam que mais a vós receite,

Se não zanga-se o grego, o francês.

Não esquecer a rica doçaria,

Feita em Guimarães ou Trafaria.

 

118

 

À sobremesa coma-se arroz doce,

Ou deliciosos pastéis de nata;

Bolinhos de jirimu, mais que fosse,

As rabanadas, não muitas que mata…

Bolo-rei, rainha, mesmo precoce,

Figos maduros, pêssegos sem lata.

Para finalizar um vinho fino,

Mas pouco, para não perder o tino.

 

119

 

Depois dum bom repouso a leitura,

De lusos autores de preferência;

Os bons livros trazem-nos a cultura,

Dão ao cérebro mais resiliência…

Deles, nem miséria nem fartura,

Se não os há notamos sua ausência.

Devemos ter algum à cabeceira

Repousarmos em paz à sua beira.


120

 

Leiam «Os Maias» d’Eça de Queirós,

De Camilo, «Amor de Perdição»;

Os contos de nossos pais e avós,

A prosa de Ramalho Ortigão…

Leiam em silêncio, os dois sós,

 Ou ouvindo melódica canção.

Leiam o vate, trovador Antero,

Pensador profundo, muito austero.

 

121

 

Os Sonetos d’Antero de Quental

São obra de um artista sublime;

No estrangeiro, ou em Portugal,

Quem o lê a sua alma redime…

As suas odes não têm igual,

Mesmo que um verso coxo não rime.

Foi filósofo, grande polemista,

Místico, romântico, “socialista”.

 

122

 

Por suicídio, buscou a morte,

Desiludido, cansado, descrente;

Homem boémio, sem paz ou sorte,

Na vida sempre triste, descontente…

Caminhando entre o sul e norte,

Num mar de ideias, contra corrente.

Seu espírito vive entre nós,

Consolando-nos com a sua voz.


123

 

E porque não ler Júlio Dinis,

Dramaturgo, poeta, romancista;

Cuja leitura nos torna feliz,

Faz bem ao ego, não cansa a vista.

As figuras, feitas a fino giz,

Surgem num cenário são, bairrista.

Que pena foi ter morrido tão novo,

Deixando a chorar todo um povo.

 

124

 

No teatro do nosso Gil Vicente,

(Cujas peças nos convida a rir),

O humor está aí sempre presente,

É um jardim com rosas a florir.

Alegrou a corte e demais gente,

Partindo deste mundo a sorrir.

Criou uma data de personagens,

Que ainda vivem nestas paragens.

 

125

 

Suas burlescas farsas e comédias,

São sem qualquer dúvida obras-primas;

Tal como na Grécia as tragédias,

Com domínio da métrica, rimas…

Navega em ondas altas e médias,

Para as interpretar usava mimas.

A obra do brilhante Mestre Gil

Jamais será vetusta, ou senil.


126

 

O Doutor Francisco Sá de Miranda

Trouxe de Itália o soneto;

Descobriu-o na longa demanda,

Duas quadras e um duplo terceto.

Nada disso consta por esta banda,

Apenas brincadeiras de careto.

Trouxe também comédia em prosa, 

Fosse ela negra ou cor de rosa.

 

127

 

«Menina e Moça» de Bernardim

É uma novela com mui valor;

Com cheirinho a cravos, a jasmim,

Lê-se com paixão e muito amor…

Nasceu num canteiro de um jardim,

Após um parto com alguma dor.

Os deuses aconselham a leitura,

Porque como esta não há fartura.

 

128

 

De poetas e outros escritores,

Falaria todo dia e noite;

Não para receber fáceis favores,

Ou para evitar o vil açoite…

Mas porque são eles os meus amores,

Contradizer-me ninguém se afoite.

Nos versos e prosa me refugio

Quando o meu ego está frio. 


129

 

Na aldeia tocam sinos a rebate,

Algo de terrível aconteceu;

O maior profeta, o maior vate,

Tombou no duro chão, ali morreu.

Ninguém o solte, ninguém o resgate,

Os anjos levá-lo-ão para o céu.

Seus poemas sulcarão universos,

Por planetas e sóis serão dispersos.

 

130

 

Não sei seu nome falso ou verdadeiro,

Nem o nome de seus progenitores;

 Se era médico, trolha, engenheiro,

Se na vida teve muitos amores…

Sei que era vate de corpo inteiro,

Escrevendo mil versos redentores.

Não deixou viúva, não deixou filhos,

Apenas saudade e novos trilhos.

 

131

 

Legou-nos seu fabuloso tesouro,

Suas palavras sábias, eruditas;

Amava o cristão, judeu e mouro,

Freiras franciscanas e carmelitas…

Espalhava pólen como o besouro,

Dormia em grutas como os trogloditas.

Era filho dum deus muito antigo,

E duma mulher pobre, sem abrigo.


// continua... 

Sem comentários:

Enviar um comentário