domingo, 14 de maio de 2023

 ENTRE MORTOS E FERIDOS 

(DOIS ANOS DE GUERRA NA GUINÉ BISSAU)

Por Joaquim A. Rocha



// continuação de 9/02/2023.

6.º Capítulo

 

SANTA MARGARIDA

 

       Naquela tarde calma, serena, nem sequer uma folha das árvores do Rossio bulia. O calor começava a apertar, convidando as pessoas a ingerir mais líquidos. Toda a gente procurava uma sombra, a fim de fugir à torreira do sol. Na mesa do Café Suíça, onde já tanta gente se sentara antes, os dois amigos cavaqueiam animadamente. Dizia Cândido:

 

- Da Academia Militar parti, ai de mim, triste e cabisbaixo, mais infeliz do que uma viúva, para Santa Margarida, freguesia do concelho de Constância, distrito de Santarém. Nome de santa e de flor, nome lindíssimo, mas sem nenhuma santidade, além da capela inaugurada em 1959, e com cheiro a pólvora e a gasolina, não a capela, claro está, essa cheirava a incenso, unidade bem conhecida nos círculos castrenses, por ser palco de manobras militares.

     Estávamos em Novembro. O outono, nesse ano de 1965, mostrava-se mais agressivo do que em anos anteriores, segundo a meteorologia e informações de militares que ali já estavam desde 1964. A chuva e o frio, coniventes, de uma cumplicidade demoníaca, davam as mãos na sua luta sem tréguas contra o desgraçado do magala que não possuía meios suficientes para deles se defender. Ainda, por cima, os treinos eram longos, fastidiosos, e pouco ortodoxos: simulavam-se ambientes de guerra; saíamos à noite nas viaturas, luzes apagadas, pelos montes da região.

     Não havia estradas, mas sim caminhos de cabras, íngremes, e até regatos sinuosos tínhamos de atravessar! Numa terrível noite, mais negra do que o breu, tombei o meu «Unimog», viatura mais feia do que um dinossauro carnívoro. Não houve feridos graves, pois a velocidade a que íamos não o justificaria, contudo não pudemos tirá-lo do buraco onde caiu. Somente no dia imediato, pela madrugada, o guindaste arrancou aquele monstro pré-histórico da ridícula posição em que ficara.

- E foi castigado? – perguntou Henrique, com dó do amigo.

- Querias maior castigo do que ir para a Guiné-Bissau? Para uma luta armada? Eu, que só usara a fisga para caçar pássaros, e mesmo assim sem qualquer pontaria, rindo-se eles de mim, sobretudo os pardais e os melros, velozes, desconfiados – não conseguindo apanhar nenhum.

- Bons tempos! – comenta Henrique, sonhando tempos que não vivera.

- Em parte, sim; brincava, trabalhava, andava na escola, mas havia muitas carências…

- A riqueza em Portugal esteve sempre muito mal distribuída – lembra Henrique, com pesar.

- É verdade. Desde Afonso Henriques que isso acontece no nosso país. Poucos têm muito, e muitos pouco ou nada têm! Mas continuando: o campo de treinos de Santa Margarida lembrava, nessa ocasião, o verdadeiro inferno. Escassa comida, e mal confecionada, hostilidade, atmosfera psicológica pesada. O medo pairava à nossa volta, anunciando o próximo futuro: violento e incerto. A guerra, esse mostrengo de sete cabeças, esperava-nos ansiosamente.

     Santa Margarida: fome e frio, ódio e desprezo. Antro de duros, estéril, árida. Aí não havia lugar para a ternura. Os soldados, mesmo querendo sair nas suas curtíssimas folgas, não tinham para onde, embora os mandões dissessem que existia perto um barracão no qual se exibiam uns filmes – nunca lá fui. Provavelmente seriam fitas de propaganda corporativista, onde se destacariam as caras sinistras dos governantes: Salazar, Tomás e companhia.         

- Parece que esses rostos o marcaram!

- Bem podes crer. Ainda hoje sinto náuseas quando vejo aquelas caretas horríveis, cujos olhos espalham ódio e vingança.

- Mas não houve nenhuma personagem simpática durante aqueles anos todos?!

- Quanto a mim, a figura mais simpática do regime saído da ditadura militar de Maio de 1926 talvez tenha sido Duarte Pacheco, que morreu em 1943, ainda eu não nascera, com apenas quarenta e quatro anos de idade. Era um homem de iniciativas, dinâmico, com personalidade vincada. Não obedecia cegamente ao «Chefe» e talvez daí a sua morte prematura.

- Está a insinuar que foi assassinado?!

- Quem sabe…; há mortes e mortes! Mas voltando a Santa Margarida: era, nessa altura, um lugar ermo e sombrio. Matagais e mais matagais; fardas e mais fardas; manobras e mais manobras! Mas, mesmo que houvesse zonas de divertimento ou lazer, o cansaço não convidava ao passeio, nem as moedas tilintavam em nossos vazios bolsos. O pouco que havia era para enganar a fome.

- Custa a acreditar naquilo que estou a ouvir!

- Tudo isso é a pura verdade. Corpos mal alimentados, exercícios que se prolongavam pela noite dentro, obrigavam-nos a esquecer o exterior, o outro “mundo” – nós tínhamos sido selecionados pelo tenebroso deus Marte: deveríamos tudo fazer para merecermos essa distinção.

- Todos sofremos ao longo da vida… - filosofa Henrique – mas...

- Uns mais, outros menos. Muitas pessoas minhas conterrâneas, alguns anos mais tarde, contaram-me que muito padeceram e aguentaram em França, na Alemanha, no Canadá, e noutros países, a esgalhar dez e doze horas por dia, nas obras de construção civil, nos caminhos-de-ferro, aeroportos e autoestradas, nas minas, nos vários trabalhos pesados, que lembravam os tempos da escravatura, e até antes já tinham padecido, quando tiveram de ir a “salto” para lá chegarem. Eu, a esses, falei-lhes assim: «Acredito sinceramente que tenham passado maus momentos, isso não está sequer em causa; mas o vosso sofrimento estava impregnado de esperança, visionavam o futuro e iam enchendo o peteiro. Nós, não! O nosso futuro durava apenas um minuto, uma hora, quando muito um dia! Esfumava-se! Vós sofrestes para ganhar a vida; o nosso padecimento servia para merecermos, segundo a ideologia dominante – militarista /corporativista – a morte com “honra”. Talvez tenhais sido escravos, mas de seres humanos, de capitalistas; nós fomos escravos robots de uma poderosa máquina, de um pensamento ignominioso, de um sistema cruel e ultrapassado! Os vossos músculos tiveram de enrijecer para poderdes assim construir; os nossos tornaram-se fortes para poderem desse modo melhor destruir! Além disso, vocês podiam voltar para Portugal, para junto da família, ou mudar de trabalho, caso não aguentassem o esforço, ou bem assim por um outro motivo qualquer; nós só regressaríamos no fim da comissão. Se viéssemos antes era mau sinal: tínhamos sido gravemente feridos ou então estávamos mortos, dentro de um caixão de chumbo

- Discurso inflamado, mas realista. Permita-me, contudo, que discorde de si num pormenor – solicita o amigo.

- À vontade. Entre nós não há cerimónias. Diz tudo o que te vai na alma.

- É o seguinte: quando diz que os emigrantes podiam voltar a qualquer momento não é cem por cento verdade. Por um lado, tinham de cumprir os contratos que assinavam com a entidade patronal; por outro lado, a maioria deles, se regressasse a Portugal, teria de cumprir o serviço militar!

- Tens razão. Reconheço que me falhou esse pormenor; no entanto, penso que estavam numa situação mais vantajosa do que a minha. Por outro lado, desde que pagassem uma determinada taxa, ficavam livres para virem a Portugal. Isso posso eu garantir, pois sei de casos desses: um rapaz da minha idade emigrou para França a salto em 1963 e em 1966, estando eu na Guiné-Bissau, a combater em pleno mato, estava ele a casar-se na igreja matriz da terra natal! A notícia está publicada no jornal concelhio. Ainda existe outro pormenor interessante: a idade. Um homem mais velho, caso quisesse voltar para Portugal poderia faze-lo sem sofrer quaisquer consequências.

     Mas continuando: em Santa Margarida encontrava-se também um primo meu, mais velho um ano, já tinha quase todo o tempo militar cumprido. Escapara da malvada guerra! E nem sei como!

- Nem todos iam…

- Sim, isso é verdade. Mas hoje penso que foi por pedido, ou “cunha”. O pai dele, meu tio, trabalhava no Secretariado Nacional de Informação e Propaganda, órgão muito influente no regime salazarista. Já livrara outro filho mais velho.

- E por que não o safou a si?!

- Quando o meu tio saiu da terra onde nascera era eu uma criança, fora residir primeiro para Loures, depois para Lisboa, mal nos conhecíamos. Nem sequer me passou pela cabeça pedir-lhe tal coisa, além disso acho que ele não podia abusar, conseguir esses privilégios para os seus descendentes já era ótimo.

- Fez mal; podia ter dado certo.

- Nessa altura eu era muito tímido, um bicho do mato, não ousaria fazer-lhe um tal pedido. Além disso, quando eu era pequeno disseram-me que o nosso destino já está traçado no berço. Por outro lado, sabendo ele que eu estava na tropa, por que não tomou a iniciativa?

- Não se lembrou – insinua Henrique, ironicamente.

- Ou não quis lembrar-se. Sobrinhos não são filhos, e não digo isto com azedume.

- Mas são do mesmo sangue, pertencem à mesma estirpe.

- Segundo a bíblia, o livro sagrado dos cristãos e dos judeus, somos todos descendentes de Adão!

- E se nós acreditarmos nos cientistas, a nossa espécie descende do macaco!

- Talvez Adão fosse macaco! Mas, sejamos filhos de uns ou de outros, o certo é que os seres humanos estão constantemente a esquecer a origem comum e matam-se com a mesma facilidade e frieza com que se abate um boi no talho. São autênticos magarefes!

- Concordo consigo. E esse tal primo, foi-lhe ao menos prestável?

- Bem, ele era apenas soldado como eu, condutor de tanques. Uma ou outra vez ainda me procurou e juntos comemos toucinho com pão de milho e centeio. Manjar frugal, mas gerador de algumas calorias. Ficamo-nos a conhecer melhor, ganhamos amizade. Mais tarde encontrei-o, já libertos da canga tropeira. Tinha estudado alguma coisa, o equivalente ao segundo ano do liceu, salvo erro, mais por necessidade do que por prazer, e depois ingressou num banco como tesoureiro. Foi colocado na província do Minho. Bom rapaz.

- Quanto tempo esteve em Santa Margarida?

- Deixei para trás, após vinte turbulentos dias, sem qualquer laivo de saudade, meio desfalecido, esse ninho de víboras, covil de chacais, esse malvado, infernal, aquartelamento, antecâmara da morte e do aviltamento.

            

***

7.º Capítulo

 

TOMAR

 

     «O tempo voa!», costumamos dizer. Assim é. Havia já meses que os dois amigos se encontravam. Henrique estava a ficar maravilhado com a história de Cândido. A realidade superava a imaginação. Numa dessas tardes pergunta-lhe:

 

- Qual foi a etapa seguinte? E de imediato, sem esperar pela resposta, com um longo sorriso nos lábios, comenta: - o meu amigo não parava!

    

     Cândido, pensando à velocidade da luz, responde-lhe:

 

- Mandaram-nos para Tomar. A cidade que me encantou. O seu vetusto castelo, mandado construir no século XII por Dom Gualdim, mestre dos Templários, é interessantíssimo. Também o seu mosteiro, velho de séculos, nos seduz. Não nos é difícil imaginarmos os monges na sua labuta diária pelo sustento físico e espiritual; as freiras, moças casadoiras, empurradas pelas circunstâncias para aquela vida sem quaisquer perspetivas de futuro. Enfim, tempos e costumes que tiveram a sua época. 

 

     Nessa belíssima cidade histórica, situada no distrito de Santarém, com cerca de sete mil habitantes, já se encontrava a Companhia de Caçadores, à qual eu doravante pertenceria. O comandante, com o posto de tenente, tinha obtido a sua formação militar na Academia de Lisboa, possuindo também um quartel na Amadora.

     Indivíduo ainda novo, vinte e cinco, vinte e seis anos de idade, rosto aparentemente duro, inexpressivo, mente insondável, um metro e setenta e cinco de altura, mais centímetro menos centímetro, setenta quilos de peso bem musculados, moreno, cabelo cortado à escovinha, olhos escuros, quase pretos, atlético, mentalizado para enfrentar a luta armada «contra os inimigos da pátria e do seu lídimo chefe

     O segundo comandante, homem esbelto, cabelo aos caracóis, olhos castanhos-claros, sorriso cínico, olhar esquivo e irónico, apesar de ser um alferes miliciano dava ares de mercenário, de profissional da guerra. Enquanto os outros oficiais tentavam disfarçar a pistola que traziam à cintura, ele exibia-a com gestos infantis e parolos, convencido talvez de que era o maior pistoleiro das planícies americanas, do tempo dos chamados peles vermelhas, ou índios.

- Era vaidoso, petulante!

- Muito! Usava fardas justas a fim de realçar o seu físico, que não aparentava, mesmo assim, ser muito musculoso. Era só aparência!

- As pessoas são diferentes umas das outras, não se esqueça. Espero que essa fanfarronice toda não se transformasse em opressão.

- Vim a saber mais tarde que esses exibicionismos andavam estreitamente ligados a dolorosos complexos, pois apenas podia apresentar como habilitações literárias o quinto ano dos liceus! Os outros alferes eram todos licenciados, tinham um curso superior.

- Então como chegou a segundo comandante da Companhia?! – pergunta, admirado, perplexo, Henrique.

- A Academia Militar (Amadora e Gomes Freire) não formava muitos oficiais. Eram cursos de vários anos e alguns cadetes, como eram designados, ou alunos, desistiam e outros não ficavam classificados. Assim, e devido à guerra colonial, foi necessário ao regime promover civis, depois de uma permanência curta nas Forças Armadas. Tratava-se de professores, empregados de escritório, bancários, etc., ligados quase todos à mocidade portuguesa e à legião, preparados por esses tais oficiais de carreira. Os melhores (embora sem curso superior), passavam de furriel a aspirante e logo depois eram promovidos a alferes. Aqueles que tivessem curso superior não passavam pela classe de sargentos. Desse modo, o regime conseguiu milhares de oficiais milicianos, alguns dos quais seguiram depois a carreira militar, combatendo nas várias frentes, atingindo patentes nunca antes imaginadas.

- E os profissionais, como reagiram?

- No princípio da guerra aceitaram a coisa, a incongruência, pois não havia quaisquer alternativas. Eles sabiam que eram poucos para fazer face ao que lhes era solicitado. Três frentes de batalha: Guiné-Bissau, Moçambique e Angola, não é brincadeira nenhuma. Mas depois, nos anos setenta, começaram a reagir. Alguns milicianos estavam a passar-lhes a perna. O 25 de Abril é, em parte, consequência dessa constatação.

- Então o 25 de Abril de 1974 não teve como objetivo principal derrubar o salazarismo?!

- Não, meu amigo. Serviu de pretexto, mas a causa principal tem a ver com aquilo que te disse. Os militares já não suportavam serem superados pelos civis.

- Então qual foi o papel dos partidos políticos na revolução? – pergunta Henrique, algo confuso.

- Os partidos: PCP e PS, além de outros menos importantes, estavam no estrangeiro. Em Portugal tinham alguns elementos, mas na clandestinidade.

     O governo, tanto da ditadura militar (1926-1932), como do Salazar (1933-1968), assim como o de Marcelo Caetano (1968-1974), não permitia quaisquer forças políticas contrárias ao regime designado por Estado Novo.

- Então os partidos tiveram pouco peso na revolução?

- Vejamos: o que aconteceu no 25 de Abril não é uma revolução, mas sim um golpe militar. Logo a seguir, e tendo em conta a adesão do povo, sobretudo os das principais cidades, e com a vinda de Mário Soares e Álvaro Cunhal do estrangeiro, deu-se início a uma revolução, que (a pouco e pouco) foi criando o regime democrático burguês – mais conhecido por «social-democracia».

- Estavam todos fartos da ditadura…

- Isso facilitou imenso a mudança. Mas voltando a Tomar. A minha Companhia estava, a bem dizer, quase completa. Apenas aguardava os inúmeros especialistas: enfermeiros, mecânicos, radiotelegrafistas, amanuenses, condutores, cozinheiros, vagomestre, etc.

- O que é propriamente uma Companhia? – quer saber Henrique, com o objetivo de compreender melhor a história que o amigo lhe vinha contando.

- Uma Companhia faz parte de um Batalhão (corpo de infantaria com cerca de seiscentos homens), e subdivide-se em quatro pelotões, à frente dos quais se encontra um oficial subalterno, geralmente com a patente de alferes. Os pelotões por sua vez ainda se desdobram em setores, comandados por segundos-sargentos e por furriéis.                

     Nós (os fracos especialistas), digo fracos porque mal preparados, íamos sendo, à medida que chegávamos, integrados nos respetivos pelotões e logo se começava, a partir daí, a conviver com todos aqueles que iriam ser os nossos camaradas de África durante a campanha, que normalmente durava dois longos anos, e companheiros provavelmente de hospital e de morgue. Seríamos cobardes ou heróis, mártires ou desertores – não sabíamos ainda. Os dados estavam lançados, mas não por nós, meros paus mandados, mas sim por eles, governantes e generais.

- Você lamenta-se, mas graças à tropa conheceu vários sítios – ironiza Henrique, para não estar calado.

- Preferia tê-los conhecido como turista; mas quanto a Tomar, agradou-me sobremaneira, apesar de ter um clima inóspito quando ali estive. A sua população dimanava simpatia e jamais hostilizou o soldado. Ainda cheguei, antes de partir para a Guiné, a fazer algumas guardas no convento, e nem o capote nem a manta chegavam para me aquecer! O mercúrio do termómetro descia muitos graus abaixo de zero!

- Tudo passou; agora deve tentar recordar-se apenas das coisas boas – diz Henrique, em uma tentativa para apaziguar o espírito amargurado do amigo.

- Sim, tudo passou… Tudo passa!... Mas não se esquece com facilidade. No entanto, também tenho lembranças positivas: o rio Nabão, que nessa altura, Dezembro de 1965, ainda não estava poluído, proporcionava-nos agradáveis momentos de ócio. As suas águas corriam límpidas, murmurando canções de embalar, algumas aves brincavam no seu leito, apesar de estarmos na época fria, tudo numa harmonia natural, sem artifícios.     

- Você gosta muito da natureza.

- Desde criança que sinto essa atração por ela. Tenho imensa pena quando vejo um curso de água ou uma floresta serem maltratados. Infelizmente o capitalismo cego, e selvagem, tudo destrói, alegando que é para o bem da humanidade! Um dia até eles próprios vão ver que estão errados.

- E Dezembro escoava-se…

- O dia da partida aproximava-se vertiginosamente. O tenente reuniu a Companhia e informou que o embarque seria no dia vinte de Janeiro. Antes disso teríamos direito a uma curta licença para podermos passar o natal e dizer adeus à família e aos amigos. Quantos de nós os tornariam a ver novamente?

- Já voltou a Tomar?

- Ainda lá regressámos, não todos, infelizmente, em finais de 1967 para entregar as execráveis e carcomidas fardas, e despedirmo-nos da vida militar, vestir a calça e o casaco, colocar ao pescoço a gravata domingueira, calçar sapatos, passar à disponibilidade, ou peluda, como então se costumava dizer.

                                       

*

8.º Capítulo

 

EM VÉSPERAS DA PARTIDA

  

     Naquela tarde de domingo, e devido a terem chegado depois da hora habitual, os dois amigos não acharam nenhuma mesa vazia no Café Suíça. Nem na esplanada, do lado da Praça da Figueira, conseguiram arranjar um lugar. De mútuo acordo dirigiram-se ao Café Gelo, também na Praça do Rossio. Poderiam, caso essa fosse a opção, ter ido ao Nicola, mas esse estava sempre cheio. Depois de sentados, e aguardando a sua vez para serem atendidos, Henrique, roído de curiosidade, tudo querendo saber, interroga:

 

- Os seus passos encaminharam-se para Melgaço, suponho.

- Não, meu amigo. Na minha terra já não tinha familiares chegados, apenas primos em terceiro grau. Fui para Lisboa, para um lindo bairro chamado das Laranjeiras, pertinho do Jardim Zoológico, para casa da minha irmã Ludovina; se tivesse ido ao Minho provavelmente desertaria – não me agradava nada a ideia de ir combater para as matas dos cafres. Medroso como eu era, amedrontado como andava, pessimista como poucos, não me seria difícil passar a fronteira, dar às de vila-diogo.

  

     O amigo ficou com algumas dúvidas e pergunta, meio atarantado:

 

- Mas, se não possuía dinheiro, ia para onde?!

 

     Cândido, apercebendo-se da contradição, responde:

 

- O drama era esse. O maldito metal. Sempre a atrapalhar a minha vida. Enfim, sonhos! Durante esses dias pouco mais fiz do que meditar. Ia de vez, em quando, até à janela, olhava o exterior como em uma despedida definitiva. Uma manhã ouvi alguém a cantar. Parecia ser a voz da sopeirinha, cujos patrões moravam ali defronte. Não me recordo nitidamente do seu rosto, mas aquele som entrou em mim como um canto de sereia e apaziguou o meu ânimo, acalmou a minha ira. Podia ser coincidência, mas até parece que a melodia fora feita só para mim.

- Você é um romântico!

- Talvez seja. Sensibilizou-me tanto, tanto, que peguei num papel e em uma caneta e escrevi os versos seguintes:

 

Rosa Maria

minha linda flor

eu a ti daria

todo o meu amor;

lindos olhos teus Maria

minha rosa em flor

eu por eles capaz seria

de matar, morrer, amor;

se ouvires dizer, Maria,

que uma bala me deu fim

reza sempre um padre nosso

em cada dia por mim;

vou partir para combater

em favor desta nação

vou à minha obrigação

desta pátria defender;

posso ter vida ou morrer

ter tristeza ou alegria

posso ainda voltar um dia

à minha terra natal;

não creias de mim o mal

se ouvires dizer, Maria;

eu um dia voltarei

à minha terra tão querida

cheio de força e de vida

e feliz ainda serei;

parto a cumprir uma lei

à qual fugir não posso

vou defender o que é nosso

o que é teu e da nação

e tu à noite, ao serão,

reza sempre um padre nosso;

posso muito tempo estar

sem te poder escrever

mas eu juro, podes crer,

que contigo hei de casar;

se uma bala me matar

ou tiver um outro fim

só por isso, só assim,

não cumpro o meu juramento;

tu reza sempre um momento

em cada dia por mim.

 

     Henrique ouviu com algum assombro estes versos. Comenta:

 

- Não lhe conhecia essa faceta, essa veia poética. Ela adorou…

- Qual quê! A sopeira nunca leu este ingénuo poema, o mais certo também era ela não saber ler, nem sequer soube da minha presença naquele local. O nome que lhe atribuí podia ter sido outro qualquer, simplesmente este soou-me bem ao ouvido e é ótimo para rimar.

- E depois, o que aconteceu? – interroga, enternecido, o nosso Henrique.

- Bem, vagueei pelas ruas da cidade de Ulisses, olhar perdido e distante, coração amarfanhado, chocho e só. Podes crer, meu caro amigo, que várias vezes me apeteceu escapulir, desaparecer do mapa: mas iria para onde?! Logo a seguir seria preso, metido num barco ou num avião e atirado na mesma para as matas africanas, desterrado – todos nós tínhamos plena consciência disso. O regime não perdoava àqueles que o contrariassem. Para evitar as fileiras do exército havia apenas duas maneiras: 1.ª - não comparecer à inspeção militar e de imediato emigrar clandestinamente (se a sorte favorecesse o candidato a emigrante este nunca vestiria a farda; se tivesse azar…); 2.ª - ter amigos poderosos no sistema e através de um pedido sair livre da inspeção médica.

- E por amparo de mãe, por doença?

- Nessa época até os coxos e aqueles que tinham falta de dedos nas mãos, desde que possuíssem o do gatilho, eram considerados aptos! Somente os desprovidos de vista, os privados de pernas e braços, os filhos únicos, cuja mãe fosse viúva e apresentasse uma declaração de extrema pobreza, passada pela Repartição de Finanças e pela Junta de Freguesia, alegando que ele era o seu exclusivo amparo, é que se livravam. De resto tudo servia. Dou-te um exemplo: na minha Companhia havia um colega com a altura aproximada de metro e meio – quase um pigmeu!

- Ouvi dizer que alguns indivíduos, filhos de gente graúda, se safaram da tropa, pagando. Terá algum laivo de veracidade?

- De certo modo, já te respondi a essa questão. Sabes, o vil metal compra quase tudo e a quase toda a gente! É de admitir que alguns pais ricos, e influentes, tudo fizessem, tudo tentassem, para livrar os seus rebentos da maldita e indesejável guerra colonial. Eu dei-te o exemplo do ricaço, filho de proprietários de agências de viagens. Por outro lado, há sempre alguém que aceita dinheiro em troca de favores. A corrupção faz parte de qualquer sociedade. A honestidade, a moral, não é para toda a gente – muitos aproveitam-se do lugar destacado que ocupam para conseguirem obter rendimentos ilícitos. Há uma coisa que eu aprendi: a ideologia, que nos obriga a ser coerentes, é posta de parte por alguns quando lesa interesses materiais.

- Nem sempre o que se diz corresponde à verdade – comenta Henrique, ainda na verdura dos seus anos.

- A corrupção e a chantagem sempre existiram, fazem parte da luta pela sobrevivência. Só se é perfeito quando tudo se alcança, daí não haver ninguém nesse estado de pureza! Há santos nos altares que foram refinados patifes; e alguns seres humanos morreram desonrados sendo eles boas pessoas! Tudo faz parte de um percurso irregular, um caminhar aos solavancos. Até o deus dos cristãos errou, segundo a bíblia: criou o universo, criou o homem à sua semelhança, e o que aconteceu? Adão sentiu-se só e quis uma companheira. Tiveram filhos: Abel e Caim, e, este último, mata, sem dó nem piedade, o seu mano! E chamam a isso, perfeição?!  

- O meu amigo Cândido é um filósofo. Eu estou de acordo consigo em algumas coisas. A cunha, por exemplo: é uma instituição nacional, todos a ela recorrem – uns para conseguir um bom emprego, outros para subirem na carreira, outros até para obterem uma simples consulta médica! Ninguém pode passar sem recorrer à maldita; além disso todas as sociedades geram privilegiados. Os nossos pais ensinam-nos a ser corretos, bons cidadãos, mas depois a vida não permite que a gente se sirva amiúde dessas virtudes! Se nos comportamos sempre bem somos tidos por lorpas e todos nos enganam, porque somos bonzinhos. É complexa a vida.

 

     Cândido, depois de beber calmamente a sua imperial, diz ao amigo:

 

- Caro Henrique, tu és muito jovem. Muita coisa irás contemplar ainda neste mundo belo e diabólico, mas desde já te aconselho: procura sempre o equilíbrio. O radicalismo não nos leva a lado nenhum. Não embarques em fanatismos religiosos nem em ideologias baratas. A vida é o somatório de muitos acontecimentos. Mas não falemos mais nessas coisas, senão esgotamos o assunto e depois ficamos calados como mudos. Até breve. // continua...

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