sexta-feira, 2 de abril de 2021

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



 A FEBRE TIFOIDE E OS SEUS PROTAGONISTAS

 

I – EPIDEMIA

 

     Ao longo dos séculos as doenças infeciosas, que alastram como rastilho inflamado, foram surgindo no concelho de Melgaço. Uma das razões principais era, sem quaisquer dúvidas, a falta de higiene. No século XX duas epidemias levaram à cova centenas de melgacenses! Vou tentar, através dos jornais da época, dar uma ténue ideia do que se passou.

     Em Dezembro de 1913 escrevia o correspondente do “Correio de Melgaço” em Castro Laboreiro: «Grassa com grande intensidade, no Rodeiro, o tipo exantemático, que tem produzido numerosas vítimas. Morreram perto de vinte pessoas e estão atacadas umas treze. O subdelegado de saúde já lá foi em companhia da autoridade administrativa a fim de tomar as providências que a gravidade do caso requer

     No mesmo número do jornal noticia-se que existe também a doença nos lugares de Teso e Campelo, não se sabendo ainda se era o tifo. Desde o dia 11 até 18/12/1913 faleceram no Rodeiro onze pessoas de diferentes idades, vítimas da moléstia. Era grande a quantidade de pessoas atacadas por essas febres «de mau carácter», receando-se que a maior parte acabasse por morrer, pois pouca esperança havia em salvá-las. Lamentava-se o jornalista: «Dentro de pouco tempo ficarão muitas crianças órfãos de pai e de mãe, sem terem quem as ampare, sem uma mão carinhosa que as guie nesta vida de misérias.» Na reunião de 31/12/1913 a Câmara Municipal de Melgaço concedeu 10$00 para desinfetantes e medicamentos a castrejos afetados pelo tifo. Contudo, só seriam concedidos esses benefícios «aos que apresentarem atestado de pobreza, passado pela Junta de Paróquia, mas vindo as receitas à Câmara para lhe ser posto o visto.» O correspondente do Correio de Melgaço voltava ao assunto a 31/12/1913. Dizia que a febre tifóide continuava a invadir toda a freguesia, tendo falecido já bastantes pessoas. O Dr. Vitoriano visitava os doentes, fazia o que podia, mas os recursos eram escassos. Pode ler-se no Correio de Melgaço n.º 82, pela pena do seu correspondente em Castro: «A terrível febre tifóide continua na sua marcha destruidora, roubando todos os dias a esta populosa freguesia novas vítimas que eram o amparo de suas famílias, ficando muitas criancinhas sem uma única pessoa que se compadeça da sua triste situação. Desde o dia 31/12/1913 até hoje (9/1/1914) faleceram mais sete pessoas, entre as quais António Fernandes, do Rodeiro, que ainda há poucos dias sofrera a perda da esposa, vítima também desta terrível epidemia. (…) Deixa três meninos de tenra idade, e um deles, o mais novinho, que apenas conta quatro anos, está também atacado da mesma moléstia, e entregue aos cuidados de seus tios

     Na sessão da Câmara Municipal, ocorrida a 10/1/1914, leu-se um ofício da Junta de Paróquia de Castro, juntando cópia da ata da sessão extraordinária da mesma Junta, levada a efeito a 6/1/1914, na qual se pede a ida permanente de um facultativo, a fim de tratar os doentes atacados pelo tifo, que tantas vítimas está causando naquela freguesia, e pedindo à Câmara medicamentos para os doentes pobres. Esta resolveu fornecer medicamentos só aos pobres que provassem, com atestado, passado pela Junta de Paróquia, a sua indigência, indo as receitas à Câmara para serem visadas! Sobre a ida do médico, resolveram, os vereadores, dar conhecimento ao Governador Civil para ele tomar as decisões convenientes.

     O Correio de Melgaço recebeu uma carta de Manuel António Fernandes, natural de Castro, na qual contava os horrores que a epidemia estava causando naquela freguesia. No mesmo jornal lia-se que na sexta-feira, 16/1/1914, fora a Castro, em visita oficial, o administrador substituto, Cícero Cândido Solheiro, acompanhado do subdelegado de saúde, Dr. Vitoriano, a fim de conhecer as necessidades da freguesia e ordenar os meios necessários para impedir a propagação da doença. (Não pensem os leitores que eles iam de automóvel. Não! Iam de cavalo, mula ou burro, por Fiães, visto não existir nenhuma estrada para Castro, isso só aconteceria muitos anos mais tarde). Constava, na altura, que a epidemia estava localizada, existindo apenas oito casos. Não era verdade, como teremos a oportunidade de verificar.

     Na sessão da Câmara Municipal Melgaço de 21/1/1914 apresentaram-se Domingues Rodrigues e José Bento Monteiro, de Bico, Castro Laboreiro, a pedir providências para debelar a epidemia que grassava naquela sofredora freguesia. O vogal Aurélio Azevedo aproveitou essa sessão para dar conta aos seus pares daquilo que presenciara na sua visita a Castro no dia 16, juntamente com Cícero Solheiro e o subdelegado de saúde, Dr. Vitoriano; apresentou várias razões para demonstrar que os castrejos não cumpriam as prescrições médicas. O administrador distribuíra esmolas aos doentes pobres, e chamara a atenção das famílias dos enfermos para irem à vila de Castro a fim de levarem os medicamentos e desinfetantes necessários. Até àquela data nenhum doente pobre reclamara medicamentos, o que era de estranhar, segundo ele.

     O correspondente do Correio de Melgaço em Castro escreve a 16/1/1914: «A febre tifoide, apesar de continuar na sua marcha destruidora tem, contudo, declinado bastante nos últimos dias. Desde o dia nove até hoje houve quatro casos fatais. Portanto, não está tão assustadora como para aí dizem! O Dr. Vitoriano tem visitado os enfermos, amiudadas vezes, tentando, por todos os meios, debelar esta terrível doença, sendo credor do reconhecimento dos castrejos. Não podemos deixar de o elogiar pelos serviços prestados. Entre os doentes achava-se Maria Rosa Afonso Alves, esposa de António José Rodrigues Alves, de Adofreire

     Mas nem tudo eram tristezas. O mesmo correspondente, diz-nos que Maria Augusta Esteves Monteiro, mulher de Delfim Gonçalves, de Queimadelo, deu à luz, a 11/1/1914, uma criança do sexo masculino, a quem deram o nome de José Luís. Conta-nos, também, que o mercado do dia 15 estivera pouco concorrido. E como despedida segredava-nos: «Faz muito frio em Castro

     No Correio de Melgaço n.º 85, de 1/2/1914, lê-se: «A instâncias da autoridade administrativa foi autorizada uma brigada da delegação da Cruz Vermelha de Viana a partir para Castro Laboreiro, onde há tempos grassa, com mais ou menos intensidade, a epidemia do tifo. Na passada segunda-feira chegaram de automóvel (à Vila de Melgaço) o Dr. Francisco José Barbosa Gonçalves, chegando depois o restante pessoal no automóvel do Sr. Cícero Solheiro, administrador substituto, que os tinha ido buscar a Lapela (à estação do caminho de ferro). Os primeiros seguiram logo para o monte, indo os outros no dia seguinte acompanhados pelo administrador do concelho, Dr. António Durães. O Dr. Barbosa visitou mais de cinquenta doentes; dos quais trinta e cinco, atacados de tifo, tendo sido já organizados cinco hospitais (de campanha) em diversos lugares, onde os doentes são tratados com o maior desvelo. Não podemos deixar de frisar o procedimento de todo o pessoal, que com uma abnegação rara em nossos dias tanto se interessa pelo sofrimento alheio, sendo todo ele digno dos maiores louvores, e em nome do povo de Castro Laboreiro aqui deixamos expresso o nosso reconhecimento, especialmente ao Dr. Gonçalves, ao comandante do destacamento, Sr. Túlio Augusto Morais da Mota, e farmacêutico Jaime Silva, que deixaram os seus interesses da cidade para numa humanitária obra se exporem às agruras da serra. Também é digno do reconhecimento do povo castrejo o seu professor, comendador Matias Sousa Lobato, cujos serviços foram bem apreciados pelo Dr. Gonçalves, que lhe teceu os maiores elogios. E (…) foi o comendador nomeado provisoriamente enfermeiro da Cruz Vermelha, sendo de crer que em breve o seja definitivamente.» Mais à frente informa-se de que o Dr. Gonçalves fora substituído pelo Dr. Francisco de Araújo.

     Porque estávamos num período crítico da política nacional, as intrigas surgiam aqui e ali, com alguma regularidade. Lê-se no Correio de Melgaço: «Alguns mal-intencionados riem-se por o distinto clínico, Dr. Barbosa Gonçalves, verificar ainda em Castro, em trinta e cinco doentes, de febre epidémica, alguns casos de tifo abdominal, quando o digno subdelegado de saúde tinha dito não haver casos novos de tifo exantemático, que era a moléstia epidémica que ali existia até 20/1/1914, dando assim a perceber que os dois médicos estão em contradição. Ora o subdelegado participou aos seus superiores no dia 24 do mesmo mês a notícia de que não havia já casos de tifo exantemático, mas sim casos de outras doenças. O Sr. Dr. Barbosa Gonçalves verificou no dia 27 que havia casos de tifo abdominal, moléstia também epidémica, mas diversa do tifo exantemático, portanto ninguém tem que rir-se, porque as informações do subdelegado estão de harmonia com o que verificou o Dr. Gonçalves

     E quem é que ria?! – perguntará o leitor. Na altura havia em Melgaço dois jornais: “Correio de Melgaço” e “Jornal de Melgaço”. À volta desses jornais reuniam-se pessoas afetas a partidos políticos. No Correio de Melgaço estava o grupo do Dr. António Augusto Durães, jovem advogado; no Jornal de Melgaço estava João Pires Teixeira e o seu grupo, que governou a Câmara Municipal de Melgaço desde Outubro de 1910 até 1926, quando se verificou o golpe militar, que deu origem ao corporativismo-salazarismo. Pois bem: as pessoas que escreviam nesses jornais atacavam-se mutuamente, como de inimigos se tratasse, embora todos se dissessem republicanos, portanto amigos do regime! Já não chegavam os monárquicos, tendo à cabeça o ativo Paiva Couceiro, para incomodar a República, os próprios republicanos não se entendiam!

     O correspondente do Correio de Melgaço em Castro Laboreiro dá-nos a preciosa informação: «No dia 26 chegou a esta vila uma secção da Cruz Vermelha, de Viana, composta dos senhores: Dr. Francisco José Barbosa Gonçalves (médico); Jaime Silva (comissário, farmacêutico); Túlio Augusto Morais Mota (comandante de pelotão de maqueiros); Alexandre Martins Ramos, Luís do Nascimento e José M. Sousa Lima (enfermeiros); Sebastião M. Passos (ajudante de enfermeiro); António Rodrigues Alves (chefe de maqueiros); Alberto Luís Fernandes, Álvaro dos Reis, Óscar Pereira Rodrigues, José Francisco Barbosa (maqueiros); Hermenegildo Viana, Carlos Baptista Viana (serventes); Aurélio Hermógenes (clarim). Com o pessoal da Cruz Vermelha vieram o Dr. António Augusto Durães, administrador do concelho de Melgaço, e o subdelegado de saúde, Dr. Vitoriano… No dia 27, pelas oito horas, partiram em visita aos lugares atacados pela epidemia, tendo visitado todos os doentes, que são em número de trinta, segundo informou o Dr. Barbosa Gonçalves, mas não estando todos atacados de febre tifóide. O Dr. Barbosa Gonçalves e todas as pessoas que o acompanharam percorreram uma distância de 30 km, prestando toda a atenção aos enfermos, conversando com eles, o que deixou este povo muito satisfeito. Foi instalado um hospital na capela da Senhora da Boa Vista, Cainheiras, encontrando-se ali em tratamento sete enfermos. No Bico também foi instalado um hospital, na casa de Francisco Domingues, conhecido por “Senhorinho”. Talvez se venham a instalar mais alguns hospitais, segundo o que nos disse o Dr. Gonçalves. A farmácia ficou nesta vila, nos baixos da casa da escola. No dia 29 chegaram mais o Dr. Francisco Araújo, que veio substituir o Dr. Barbosa, o qual já retirou para Viana, e o enfermeiro Ernesto Fonseca. Desde o dia 23 até hoje só temos a registar um óbito

     A seguir fala-nos de outras coisas: «… devido às grandes neves que têm caído nesta região temos sido visitados pelos lobos, os quais têm causado bastantes estragos nos rebanhos de cabras e ovelhas, vendo-se os pastores em sérios embaraços para se defenderem desses temíveis animais.» O tempo estava a melhorar, trazendo com ele a esperança. (Correio de Melgaço n.º 85, de 1/2/1914).

     No Correio de Melgaço n.º 86, de 8/2/1914, pode ler-se: «Comendador Matias Sousa Lobato. Foi nomeado enfermeiro de 1.ª classe das ambulâncias da Cruz Vermelha de Viana, com um voto de louvor, e reconhecimento dos relevantes serviços que em várias epidemias tem prestado, com grave risco da sua vida, aos povos de Castro Laboreiro, sendo os seus serviços bem apreciados pelos facultativos que têm tratado as mortíferas febres que por diferentes vezes lá tem grassado

     O ofício a nomeá-lo é esclarecedor: «Viana, 31/1/1914. Senhor Comendador Matias Sousa Lobato: tenho a honra de comunicar a V. Ex.ª que a Direcção da Delegação Distrital da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha, nesta cidade, em sua sessão de ontem, e por proposta do Dr. Francisco Barbosa Gonçalves, resolveu nomear V. Ex.ª enfermeiro de 1.ª classe das ambulâncias da mesma Delegação. Em virtude das boas referências do nosso médico chefe para com V. Ex.ª quer com respeito ao auxílio poderoso que prestou a todo o pessoal desta Delegação, quer na prática do bem e no exercício da caridade para com os doentes, a mesma Direcção resolveu exarar na acta um voto de louvor a V. Ex.ª pelo seu alto patriotismo e elevada benemerência. Saúde e fraternidade. O presidente da Direcção – Gaspar de Azevedo Araújo e Gama, General. O médico chefe das ambulâncias – Francisco José Barbosa Gonçalves

     No dito número do jornal o correspondente informava que a epidemia continuava estacionária, havendo a registar, de 1 a 5 de Fevereiro, mais cinco óbitos. A Cruz Vermelha enviara duas barracas hospitais, pertencentes ao ministério da guerra, que se destinavam a hospitalizar cem doentes, além de 200 enxergas, 200 lençóis, 100 cobertores e 10 capotes para o pessoal da coluna que ali fazia serviço.

     Na sessão da Câmara Municipal, de 11/2/1914, lê-se um telegrama do Governador Civil: «consta que o médico Pereira de Sousa está restabelecido devendo, nesse caso, seguir para Castro Laboreiro.» Nessa sessão estavam presentes os dois médicos municipais: Sousa e Vitoriano. Este último faz uma longa exposição da epidemia, das providências que pediu à Câmara Municipal de Melgaço e às autoridades superiores; das visitas que todas as semanas tinha feito àquela freguesia serrana; das condições de limpeza e higiene em que vivia o povo castrejo e finalmente afirmava que a verdadeira epidemia que podia vitimar não só o povo dessa freguesia mas o do concelho inteiro – por ser contagiosa e muito mortífera, tifo exantemático – já desaparecera, havendo ali atualmente várias doenças endémicas próprias da região e para as quais entendia que hospitalizando os doentes, com dois enfermeiros e duas enfermeiras, e com os seus serviços clínicos uma vez por semana, facilmente desapareceriam essas doenças. O Dr. Francisco Araújo confirmara-lhe essas declarações, ao mostrar um boletim que nessa ocasião enviara ao Delegado de Saúde. E lembrou à Câmara que a epidemia estava a ser aproveitada para fins pouco louváveis, quando era certo que já não existia a tal epidemia de tifo exantemático, mas sim outras doenças endémicas. Disponibilizou-se para continuar a fazer as visitas semanais a Castro, ou as que fossem necessárias, mesmo com prejuízo da sua saúde, pois que elas eram muito trabalhosas, atendendo a que os doentes se achavam muito dispersos e a grandes distâncias, que era necessário vencer a pé, por entre a neve! Dando por concluída a sua exposição, falou de seguida o Dr. Pereira de Sousa. Disse que se no princípio da epidemia tivessem intervindo no assunto as autoridades competentes, isto é, a classe médica do concelho, as autoridades administrativas e a Câmara Municipal, não se teria dado a desordem existente, como os vereadores ouviram da boca do seu colega, subdelegado de saúde. Era sua opinião, tendo em vista que os lugares estavam distanciados uns dos outros, instalarem-se na vila de Castro todos os enfermos, que poderiam ser tratados no quartel da Guarda-Fiscal, na casa do antigo tribunal e da escola, não sendo precisas as barracas da Cruz Vermelha. Que tudo o mais que se fizera e estava fazendo «são fantochadas»! O seu estado de saúde não lhe permitia fazer serviços violentos, e avisava desde já que não contassem com ele para se instalar em Castro. Depois de ter escutado com a máxima atenção os dois médicos, a Câmara decidiu oficiar ao Governador Civil, informando-o de que a epidemia já estava extinta e que apenas existiam doenças próprias da região; que o subdelegado de saúde fizera e continuaria a fazer as visitas semanais àquela freguesia, e que o Dr. Sousa não podia, devido a doença, seguir para Castro Laboreiro.

     O correspondente do “Correio” escrevia a 5/2/1914: «… o pessoal da Cruz Vermelha tem sido incansável no tratamento dos enfermos; todos os dias percorrem os lugares de Cainheiras, Bico, Corveira, Podre, Barreiro, Dorna, Bago, etc. – onde existem doentes em tratamento. O trabalho que levam, extenuante, pela razão dos doentes se encontrarem repartidos e não se poderem instalar hospitais, por se acharem, todas as casas desses lugares, afectadas; esperam-se com ansiedade as duas barracas hospitais e mais material destinado à secção da Cruz Vermelha, para ver se se pode evitar a propagação da epidemia aos poucos lugares que ainda existem sem ela. O povo desta freguesia está deveras satisfeito (…) com os bons serviços que tem prestado toda a coluna, pois além do fatigante trabalho em percorrer os lugares, no tratamento dos tifosos, ainda ajudam a conduzir os cadáveres para o cemitério. Não podemos deixar de exarar aqui os nossos mais sinceros agradecimentos e louvores a todo o pessoal da Cruz Vermelha que aqui tem feito serviço e temos a certeza que neste agradecimento e louvor nos acompanha o povo desta freguesia. A febre, apesar de todos os esforços para a debelar, continua na sua marcha assustadora, tendo vitimado desde o dia 1 até hoje mais cinco pessoas, entre as quais o Sr. José Esteves Caneiro, do Rodeiro, que ainda há poucos dias tinha ido trabalhar para Espanha, no ofício de pedreiro, onde se sentiu incomodado, tentando regressar a sua casa; (…) a doença atacou-o de tal maneira que veio a falecer no lugar de Corbelhe, paróquia de Bande, Galiza. Este homem ficara há anos viúvo e era o amparo de três filhos de tenra idade, tendo-lhe falecido em Dezembro último a filha mais velha!» E remata: «Depois de termos gozado um sol primaveril, vieram visitar-nos as chuvas, fazendo um frio insuportável

     O médico da Cruz Vermelha, Dr. Francisco Araújo, reagiu assim às palavras do subdelegado de saúde: «Tendo lido as declarações feitas pelo Dr. Vitoriano, na sessão camarária de 11/2/1914, em abono da verdade tenho a dizer o seguinte, sobre a epidemia de Castro Laboreiro: – existe ali uma epidemia de febres tifóides, não sei desde que data, tendo eu ocasião de ver vinte e cinco casos, cujos nomes passo a relatar, como já o fiz nos relatórios enviados à Cruz Vermelha, administrador de Melgaço e Delegado de Saúde. Óbitos nos lugares de: BarreiroGertrudes Pires. PodreCatarina Esteves, Ana Domingues, Abílio Esteves, Maria Augusta Alves, Joaquina Alves, Augusto Fernandes e Joaquina Fernandes. DornaRosa Fernandes, Rosa Rodrigues, António Domingues e Francisca Domingues. AssureiraRosa Domingues. CorveiraJosé Gonçalves. BicoMaria Gonçalves. Cainheiras (na capela) – Serafim Rodrigues, Daniel Rodrigues Gonçalves, Joaquina Rosa Esteves e Deolinda Domingues. Cainheiras (fora da capela) – Maria Rosa Alves, Rosa Alves, Manuel Afonso, Albino Afonso e Maria Rodrigues. Bagos de BaixoRosa Alves. Com relação a tifo exantemático nenhum caso encontrei; essa opinião pertence ao Dr. Vitoriano, que me disse terem existido anteriormente. Viana, 19/2/1914. Médico da Cruz Vermelha.» (Correio de Melgaço n.º 88, de 22/2/1914).

     Em sessão da Câmara Municipal de Melgaço, de 18/2/1914, foram lidos dois telegramas enviados pelo Governador Civil, lamentando que só agora se tivessem lembrado da hospitalização dos doentes em Castro, e pedia para lhe dizerem se a coluna da Cruz Vermelha ali destacada devia ou não retirar. O Dr. Vitoriano, que estava presente, informa que não fora ele que requisitara os serviços da Cruz Vermelha, mas reconhecia serem ali precisos. Sustentava a sua opinião sobre a epidemia, que classificava de doenças próprias da região. O Dr. Sousa era de opinião que se devia consertar a antiga casa do tribunal para ser utilizada para hospitalizar os enfermos. Dever-se-ia, segundo ele, aproveitar o quartel da Guarda-Fiscal e a barraca de campanha da Cruz Vermelha para hospitalização dos doentes. Entendia que o pessoal da Cruz Vermelha devia ali continuar enquanto fosse necessário.

     O administrador, Dr. Durães, confessou à Câmara que fora ele que lembrara ao Governador a conveniência de ir para Castro uma coluna da Cruz Vermelha devido às reclamações do povo daquela freguesia, e tivera ocasião de avaliar essa conveniência quando fora informado pelo Dr. Barbosa Gonçalves de que existiam 34 casos de tifo, alguns dos quais ele próprio vira, e tivera depois a confirmação da notícia pelos relatórios que o Dr. Francisco Araújo lhe enviara, muito embora esse médico apenas relatasse 25 casos. Elogiou os serviços prestados pela ambulância da Cruz Vermelha e disse que o povo de Castro estava muito grato a todo o pessoal. Achava que deviam continuar lá, até extirparem o mal, embora esse assunto dissesse mais respeito aos médicos municipais. Informou os presentes de que o quartel da Guarda-Fiscal fora cedido pelo capitão comandante da 3.ª companhia a fim de ser aproveitado para hospital. Lembrava, mais uma vez, que estava pronto a prestar todo o auxílio às autoridades sanitárias do concelho. Era de opinião que se devia pôr de parte a ideia de reparar a casa do antigo tribunal, porque essas obras levariam muito tempo a realizar.

     A Câmara, depois de imensos alvitres, resolveu informar o Governador de que se ia proceder à hospitalização imediata dos doentes nas casas que estivessem em condições e na barraca da Cruz Vermelha, e aconselhá-lo a que mantivesse a delegação da Cruz Vermelha na freguesia de Castro.

      Escrevia o correspondente do “Correio” a 19/2/1914: «A febre tifóide continua na sua marcha, sendo raro o dia em que se não observam novos casos. O número de doentes é cada vez maior, não escapando ninguém sem ser atacado, mais ou menos gravemente, por esta terrível moléstia, que tanta vítima tem causado. No dia 15 chegou a esta vila mais pessoal da Cruz Vermelha para reforçar o que aqui se encontra há tempos em serviço. Esperamos hoje a barraca que vai ficar instalada junto ao quartel da Guarda-Fiscal, o qual já foi entregue ao pessoal da Cruz Vermelha para nele ser instalado um hospital. Não podemos deixar de continuar a louvar todo o pessoal aqui destacado pela maneira digna e altamente humanitária como se tem dedicado ao tratamento dos numerosos doentes da epidemia, não deixando um só dia de visitar os lugares onde os seus serviços são precisos, arrostando com as inclemências do tempo, percorrendo esses lugares debaixo de chuva e neve, nada os fazendo recuar ou esmorecer no sagrado cumprimento da caridade, pelo que o povo desta freguesia lhes ficará eternamente reconhecido.» E depois de uma breve pausa, continuava: «Tem aqui sido muito comentadas as notícias, que alguns jornais publicam, de que não existe epidemia em Castro Laboreiro, ou que já está debelada, quando é certo que desde o dia 5 até hoje temos a registar mais sete óbitos.» E lamentava-se: «Antes fossem verdadeiras essas notícias, mas (…) não o são…»

     O “Correio” publicou uma carta, enviada pelo Dr. Barbosa Gonçalves, médico da Cruz Vermelha, ao diretor do jornal: «Meu prezado amigo e Sr. Dr. A. Durães. Peço a V. Ex.ª a fineza de inserir estas poucas palavras no seu criterioso jornal. Se o “Jornal de Melgaço” deseja saber o que diz o meu relatório, enviado à Cruz Vermelha, pode pedir-mo; mas se deseja deturpar o que escrevi e o que penso sobre a epidemia de Castro Laboreiro pode estar descansado, e trilhar pelo mesmo caminho, que nada me incomoda. Para a gente honesta e digna direi que existe uma epidemia de febres tifóides em Castro e sobre tifo exantemático nada vi e creio que mais nenhum médico, a não ser o Dr. Vitoriano. Viana, 21/2/1914. B.G.» O proprietário do “Correio de Melgaço” era Hermenegildo José Solheiro, comerciante e proprietário no Brasil. (Viria a ser presidente da Câmara Municipal de Melgaço no período da ditadura militar). À frente do jornal, como diretor e editor encontrava-se o Dr. António Augusto Durães, jovem advogado. No “Jornal de Melgaço” militava o Dr. António Francisco de Sousa Araújo, também advogado. A rivalidade entre ambos era enorme! // continua...

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