quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
 
Por Joaquim A. Rocha





XXI

O homem não nasceu para o trabalho; foi a preguiça que o inventou para ele!
 

     Recuemos vários anos no tempo. No mundo rural os rapazes e raparigas seriam forçosamente camponeses; nas Vilas os jovens sem recursos, ou mesmo remediados, teriam de aprender uma arte – sapateiro, alfaiate, barbeiro, etc., ou arranjar emprego ao balcão da mercearia ou de outro qualquer estabelecimento comercial. Eu teria gostado de ser alfaiate, mas essa profissão era monopólio de duas ou três famílias – os mestres alfaiates só ensinavam os seus parentes próximos. Daí terem-me encaminhado para a profissão de sapateiro, que por ser pouco asseada ficava reservada aos mais humildes. Se querem ouvir a conversa, ouçam:

- Mamã, não há quase fazenda nenhuma, nem dinheiro para pagar à fornecedora, o que vamos fazer?

- Vais aprender um mester, acabou-se o negócio, a fornecedora de Braga que leve o que ainda resta, sobraram uns aventais e meia dúzia de lençóis, para a prisão não me leva, vamos lá ver se aquelas a quem vendi fiado me pagam, coitadas, o São Miguel este ano não foi grande coisa, o milho foi uma desgraça, não se aproveitou nem a metade, a chuva veio antes da época própria, se calhar não vai haver vinho, um ano ruim meu filho, um ano para esquecer.

- E nós é que pagamos as favas; se não tinham dinheiro por que é que compraram?!

- Que queres! Nunca soube dizer não; tenho pena dessa gente, são todos bons para mim, não me fazem mais porque não podem.

- Nós não podemos viver disso, precisamos de dinheiro para pagar a quem nos vende as mercadorias; vai ser uma vergonha, eu nem quero estar presente quando vier a senhora Angelina receber, até fujo.    

- Digo-lhe para não trazer mais nada, depois pago-lhe quando puder, que tenha paciência, os negócios não correram bem.

- Por sua culpa, eu bem a avisei, mas não, fiava, fiava, depois malga aqui, malga acolá, às tantas nem se sabe a quem vendemos.

- Tens tudo apontado.

- Tenho, tenho; mas muitas dizem que não devem nada, que já lhe pagaram, se não foi com dinheiro foi com géneros, nós é que não riscamos!

- Se calhar têm razão, esqueço-me muito. Vais para alfaiate, falo com o filho da senhora Carmezinda, leva-te para lá, eu cá me arranjo; a cozinhar nos pequenos restaurantes, nos casamentos, pelas aldeias, à fome é que não morremos. Olha que os teus irmãos nem um tostão mandam!

- Coitados, o mais certo é também não terem para eles, na cidade deve gastar-se tudo que se ganha, mercam tudo, até dizem que se compra a salsa! Nós aqui temos couves, batatas, cebolas, quase tudo, e a hortaliça até no-la dão.

- A mim dão-me muita coisa; é certo que também lhes trabalho de graça, faço as vindimas, as desfolhadas, cozinho, ajudo em tudo, até a lavar os defuntos, não fazem demais dar-me o que me dão.  

- Dizem que o filho da senhora Carmezinda nunca está na alfaiataria, é porque não precisa, se precisasse que remédio se não vergar a mola, anda ele e o filho do senhor Fernandes a vagabundear, na borga até às cinco e seis da manhã, não perdem um serão nem um baile, não sei se irei aprender alguma coisa com ele.

- Experimentas; se não der resultado vais para outro lado, eu ainda hoje vou falar com a mãe dele, se ela quiser fico a cozinhar na taberna dela nos dias de feira, que ela tem muitos fregueses do monte.

*

- Na segunda-feira já podes ir para a alfaiataria do Guilherme, tens é que passar pela taberna da mãe para ela te dar a chave; ele levanta-se sempre tarde, parece que se deita todos os dias quase de madrugada! Um verdadeiro estroina!

- Mas se ele não está na oficina o que é que eu vou lá fazer, quem me ensina?

- Ele aparece, mas não passa lá muito tempo, segundo me disse a mãe; tu experimentas, se vires que não aprendes peço para ires para outro patrão.

- Está bem; na segunda-feira lá estarei, mas tenho a impressão que aquilo não vai dar certo.

*

- Eu não lhe dizia? O senhor Guilherme nem lá pôs os pés; esperei, esperei, ali feito parvo e ele sem aparecer, as pessoas que moram ali perto até se riram de mim, disseram-me que é raro verem-no, por outro lado nem sequer lhe entregam trabalho, nunca dá conta dele, e consta até que não é grande alfaiate, tem uma fama terrível.

- Então vais para sapateiro; vou pedir ao Hilário, ele aceita-te, ainda é da família, um tio dele foi casado com a minha falecida irmã Marília, esse é trabalhador, e serviço não lhe falta, não podes é esperar que te dê alguma coisa, é um forreta, um unhas-de-fome.

- Preferia a arte de alfaiate, é mais asseada, mas os mestres não aceitam aprendizes, só se forem filhos ou sobrinhos, são todos da mesma família, paciência.

- A profissão de sapateiro também é boa, não se apanha sol nem chuva, é da maneira que começas a andar calçado com sapatos, esses tamancos estão a dar-te cabo dos pés e descalço já não podes andar, já estás a ficar crescidinho, tens doze anos de idade, e agora também saiu para aí uma lei a proibir a gente a andar descalça! Mas olha que calçado não nos o dão eles, canté!

- Eu até não me importava de andar descalço, só que os dedos dos pés andam sempre esmurrados, uma lástima…

- Por causa do jogo da bola! Sabes o que podes fazer para ganhar algum dinheirinho?

- O quê?

- Podes ir engraxar sapatos para o terreiro nos dias de feira e domingos de manhã, sempre ajudava.

- Acho boa ideia; vou arranjar uma caixinha e escovas; compro a pomada e tinta na loja do senhor Landeiro. 

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